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As medidas de obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 no Brasil são razoáveis e proporcionais?

RESUMO

Trata-se de um ensaio baseado em decisão judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que desobrigou à vacinação uma professora municipal do estado. A liminar, em Mandado de Segurança, foi cassada por meio de um agravo de instrumento de autoria do Ministério Público. Neste ensaio, são discutidos os fundamentos do julgador para a concessão da liminar e os argumentos apresentados pelo apelante, enquanto faz-se uma análise do ponto de vista da saúde coletiva e do direito sanitário, à luz da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a razoabilidade e proporcionalidade da vacina obrigatória.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Vacinação obrigatória; Direito à; saúde

ABSTRACT

This is an essay based on a court decision handed down by the Court of Justice of the State of Santa Catarina, Brasil, that released a municipal teacher from vaccination. The injunction in a writ of mandamus was overturned at the higher court through an interlocutory appeal authored by the State Prosecutor´s Office. This essay discusses the grounds listed by the judge for granting the injunction and the arguments presented by the appellant, while making an analysis from the point of view of public health and health law, in the light of the decision of the Supreme Court on reasonableness and proportionality of the mandatory vaccine.

KEYWORDS
COVID-19; Obligatory vaccination; Right to health

A CRISE SANITÁRIA ADVINDA com a pandemia da Covid-19 reacendeu discussões sobre a limitação de direitos e liberdades individuais em nome da proteção da saúde coletiva. Entre esses temas, tem-se o da vacinação obrigatória.

Recentemente, veio a público uma liminar em Mandado de Segurança sobre a desoneração de vacinação contra a Covid-19 a uma professora, em face da Secretaria Municipal de Educação de Gaspar, em Santa Catarina, que, por meio do Decreto Municipal nº 10.096/2021, tornou obrigatória a vacinação de todos os trabalhadores da educação.

Segundo dados extraídos da decisão liminar, em Mandado de Segurança nº 5005078-302021.8.24.0025/SC, alegou a impetrante que possuía imunidade contra o Sars-CoV-2, comprovada pelo exame ImunoScov19 - que aponta anticorpos contra a Proteína S IGg: 225 U IB-BR -, com resposta imune de 100%.

Em seus argumentos, o magistrado expõe que a obrigatoriedade da vacinação é inconstitucional, visto tratar-se de insumo que ainda se encontra em fase experimental e que não possui registro definitivo na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), conforme RDC nº 475/2021. Alega, igualmente, ausência de evidências científicas concretas e de pesquisas sobre a segurança e efetividade das vacinas contra a Covid-19, tendo se reportado ao sítio ClinicalTrials.gov, banco de dados mantido pela Biblioteca de Medicina dos Estados Unidos da América, que registra todas as pesquisas privadas e públicas no segmento, no mundo.

Argui, para a concessão da liminar, sobre o Código de Ética Médica11 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM 1931, de 17 de setembro de 2009. Institui o Código de Ética Médica. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf.
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, em seu capítulo I, destinado aos princípios fundamentais, que dispõe que:

No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

E cita, ainda, o art. 24 do mesmo dispositivo, que dispõe que

Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo11 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM 1931, de 17 de setembro de 2009. Institui o Código de Ética Médica. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf.
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.

Para rechear ainda mais os seus argumentos, elenca o art. 15 do Código Civil brasileiro, que define que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”11 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM 1931, de 17 de setembro de 2009. Institui o Código de Ética Médica. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf.
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Em sua decisão, o julgador lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de Ações Diretas de Inconstitucionalidade da Lei federal nº 13.979/202022 Brasil. Lei Federal nº 13.979, de 13 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/about/submissions.
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, definiu a compulsoriedade da vacinação, conquanto que as medidas de obrigatoriedade sejam indiretas, razoáveis e proporcionais.

E, para finalizar seus argumentos, traz à decisão o consagrado Princípio da Precaução, que dispõe que na ausência de certeza científica formal, a existência de um risco de dano requer a implementação de medidas que possam prever esse dano.

Tão logo publicada a liminar em Diário de Justiça, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina apresentou agravo de instrumento, contrariando os argumentos da liminar concedida, discorrendo, embora sem corroborar os dados científicos, que os riscos inerentes à vacina são inferiores aos danos provocados pela circulação desordenada do vírus. Aduz, ainda, que a professora, ao recusar a vacina, colocaria em risco de exposição as crianças, os adolescentes e demais funcionários do sistema de educação do município, além de comprometer a estratégia do estado de Santa Catarina e seus municípios no tocante ao retorno às aulas presenciais.

A liminar foi, então, reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), que anuiu com os argumentos do Ministério Público do estado.

A obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 vem ocupando os espaços de debate dos sistemas político-sanitários e do sistema jurídico, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Contudo, a discussão de fundo é ainda mais remota.

A primeira vacina foi desenvolvida em 1796, pelo médico inglês Edward Jenner, para combater a varíola, que, à época, era considerada um dos maiores flagelos de saúde. E, ao ser adotada como medida de saúde obrigatória para o controle da doença, gerou reação contrária da população33 Pinto Jr VL. Anti-vacinação, um movimento com várias faces e consequências. Cad. Ibero-Am. Direito Sanit. 2019; 8(2):116-122..

Talvez o marco jurídico inaugural da obrigatoriedade da vacinação no Brasil tenha sido a Lei nº 1.261, de 31 de outubro de 190444 Brasil. Lei nº 1.261, de 31 de outubro de 1904. Torna obrigatórias, em toda a República, a vaccinação e a revaccinação contra a varíola. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-1261-31-outubro-1904-584180-publicacaooriginal-106938-pl.html.
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, ocasião em que Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública, no governo de Rodrigues Alves, cargo que se assemelharia ao de Ministro da Saúde nos dias de hoje. A referida lei condicionava a celebração de casamentos, matrículas em escolas e até a formalização de contratos de trabalho apenas àqueles que comprovassem a respectiva vacinação.

Observa-se, portanto, que a carteira de vacinação era uma espécie de passaporte para a prática de atos da vida civil, assemelhando-se aos passaportes vacinais adotados recentemente por alguns estados brasileiros - São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul - para permitir o ingresso de pessoas em determinados recintos. Ou seja, aplicava-se sanção indireta como forma de adesão ao processo vacinal.

Essa medida extrema foi justificada pela resistência da população em aderir ao processo vacinal de forma voluntária. A rejeição era justificada, em parte, por fake news que afirmavam que as pessoas vacinadas para varíola teriam suas feições transformadas, assemelhando-se aos bovinos. Tal fato se daria por ser o imunizante produzido a partir de material coletado das pústulas desses animais.

O fato é que a vacinação compulsória no início do século XX desencadeou uma revolta popular, possivelmente liderada pela Liga Contra a Vacinação Obrigatória, que tornou as ruas do Rio de Janeiro um campo de guerra. Depois de 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos55 Benchimol JL, coordenador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Bio-Manguinhos; 2001., em duas semanas de conflitos, o Presidente Rodrigues Alves se viu obrigado a desistir da vacinação obrigatória.

Uma decisão de governo autoritária e desastrosa, que, mesmo sendo eficaz, do ponto de vista sanitário, fez nascer no povo, já oprimido e ameaçado pela medicina oficial, a repulsa à tirania científica, marcada por uma série de medidas coercitivas contra as liberdades dos civis. Em resumo, a revolta se deu porque as pessoas não aceitavam ver suas casas invadidas e terem que tomar uma injeção contra sua vontade. Lamentavelmente, após a tentativa de tornar a vacina obrigatória, os índices de vacinação contra a varíola despencaram55 Benchimol JL, coordenador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Bio-Manguinhos; 2001., dando ensejo ao aumento abrupto da doença.

A vacinação é considerada como uma das políticas de saúde pública mais efetivas e de menor custo-benefício, utilizada no controle e na prevenção de doenças. Mas é, também, considerada uma das técnicas biomédicas mais polêmicas e controversas, especialmente quando a vacinação é utilizada de forma compulsória em toda a população, até porque as vacinas não são totalmente seguras e eficazes66 Lessa SC, Schramm FR. Proteção individual versus proteção coletiva: análise bioética do programa nacional de vacinação infantil em massa. Ciênc. Saúde Colet. 2015; 20(1):115-124.. Mas, sem sombra de dúvidas, a vacinação elimina ou reduz drasticamente o risco de adoecimento ou de manifestações graves, que podem levar à internação e até mesmo ao óbito.

Segundo Iriart77 Iriart JAB. Autonomia individual vs. proteção coletiva: a não-vacinação infantil entre camadas de maior renda/escolaridade como desafio para a saúde pública. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(2)., a opção pela não vacinação de alguns adultos tem despertado o interesse daqueles que estudam os fenômenos das ciências sociais. A decisão de vacinar ou não expõe a tensão entre o individual e o coletivo e demonstra a erosão da confiança das pessoas nas ações sanitárias promovidas pelo Poder Público, associadas ao sentimento de ganância que move a indústria farmacêutica. Talvez por isso é que a obrigatoriedade da vacinação, por si só, já produza um efeito contrário à intenção de vacinação em massa. Medidas forçadas despertam desconfiança e rejeição nos indivíduos. Há os que apostam na conscientização popular sobre a importância da vacina, muito mais eficaz que a imposição arbitrária.

Do ponto de vista jurídico, vacinar é parte do entendimento do direito à saúde implícito na tríade desenhada na Constituição Federal88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 2022., em seu art. 196: promoção, proteção e recuperação da saúde.

Fica claro, a partir da análise da geração dos direitos fundamentais99 Bobbio NA. A Era dos Direitos. São Paulo: Editora Gen. LTC; 2004., que a saúde é um direito pertencente a todas as gerações. Sua dimensão é transversal às sucessivas gerações dos direitos, porque não há como subtrair desses direitos fundamentais o elemento saúde, sendo a saúde um direito relacionado diretamente à vida.

A Constituição brasileira de 198888 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 2022. elencou os direitos fundamentais de segunda geração, estando a saúde incluída em seu art. 6°, mas não descuidou de sua dimensão individual entre outros artigos correspondentes. Sendo assim, não pairam dúvidas de que a saúde é um direito fundamental de primeira, segunda, terceira e quarta geração, direito esse que deve receber do Estado uma atuação positiva para que seja plenamente usufruído pelos cidadãos. Está configurado na Constituição de 198888 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 2022. como um princípio, significando que não pode ser aplicado na forma do ‘tudo ou nada’, mas na maior medida possível, desde que não suplantado pelos pressupostos fáticos e jurídicos de outros princípios fundamentais.

O art. 196 prescreve que essas dimensões do direito à saúde, em conjunto ou isoladamente, deverão ser alcançadas pelo acesso a ações e a serviços de saúde que devem ser prestados pelo Estado na adoção de políticas públicas sociais e econômicas.

É interessante que, apesar de o tema da promoção da saúde ser bastante prolífico em reflexões e trabalhos acadêmico-intelectuais, podendo-se dizer o mesmo da assistência à saúde, são mais escassas as referências à proteção stricto sensu da saúde, e isso não é coerente com a relevância que o legislador lhe conferiu no texto constitucional.

Por que o legislador constituinte, em um rol de palavras, empregaria esse conjunto de expressões, como no art. 196, in fine - a promoção, proteção e recuperação da saúde -, se não houvesse um sentido próprio para cada uma delas? Teriam tais palavras um sentido jurídico-sanitário?

Em uma análise de mérito, há de se concluir que, sem um conjunto articulado de políticas e ações, impossível será a fruição do direito fundamental, posto que esses elementos são essenciais e complementarmente constitutivos do direito fundamental social à saúde. Além disso, considere-se o princípio basilar da hermenêutica jurídica segundo o qual a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Não se presumem, na lei, palavras inúteis. E se não há inutilidade nas palavras da lei, pergunta-se sobre o conteúdo das expressões inscritas na Constituição Federal de 1988, em especial, no que se refere à proteção da saúde.

Pontes e Schramm1010 Pontes CAA, Schramm FR. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cad. Saúde Pública. 2004 [acesso em 2022 ago 2]; 20(5):1319-1327. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Z7TbPS3dZncsdVsSrmVpYzv/?lang=pt.
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advertem que o princípio da proteção é um resgate do papel protetor do Estado, considerado como fundamento da atuação do Welfare State contemporâneo. Essa afirmação é verdadeira, especialmente no que se refere à saúde. O Estado exerceu e consolidou, durante os séculos XVIII e XIX, o papel de garantidor dos direitos individuais, definindo-se, assim, um primeiro nível de proteção. A saúde pública surge como assunto do Estado nesse período, “controlando epidemias e influindo decisivamente na reforma sanitária dos ambientes urbanos e de trabalho”1010 Pontes CAA, Schramm FR. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cad. Saúde Pública. 2004 [acesso em 2022 ago 2]; 20(5):1319-1327. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Z7TbPS3dZncsdVsSrmVpYzv/?lang=pt.
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, introduzindo outro nível no âmbito do princípio da proteção: o coletivo.

O princípio da proteção assim posto confunde-se com o dever de proteger do Estado (ou não deixar um direito ser violado), que, aplicado à saúde, garante um direito fundamental aos indivíduos e à coletividade, valendo-se de todo o seu aparato institucional.

A proteção da saúde, portanto, é um dever do Estado - e um direito fundamental -, que, por intermédio de ações e serviços prestados, contribui para garantir a fruição da plena saúde. Nessa dimensão, as ações de vacinação em massa concorrem para a garantia do direito à saúde, constituindo-se, elas mesmas, em verdadeiro princípio de proteção da saúde.

Há, portanto, um conteúdo jurídico-sanitário na expressão ‘proteção da saúde’ inscrita na Constituição, que abriga ações e serviços que dão materialidade e constituem um princípio de proteção que deve ser realizado na maior medida possível. Assim, os serviços e ações que visam a proteger a saúde - princípio da proteção - devem ser interpretados como direito fundamental, sendo de observação obrigatória para a formulação e execução de políticas públicas, para a orientação do arcabouço legislativo, inclusive infralegal, e a decisão judicial.

O Brasil, desde 1973, instituiu o seu Programa Nacional de Imunização (PNI), em momento, portanto, anterior mesmo ao reconhecimento da saúde como direito humano social e à criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 1975, a Lei nº 6.2591111 Brasil. Lei Federal nº 6.259, de 30 de outubro de 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6259.htm.
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veio dispor sobre a competência do Ministério da Saúde para estabelecer a vacinação de caráter obrigatório, a ser praticada de forma sistemática e gratuita. Como medida indireta, a lei condiciona o pagamento do salário-família à comprovação do recebimento das vacinas obrigatórias pelos beneficiários.

Ao longo dos anos, o PNI atuou fortemente com estratégias de campanhas vacinais, enfrentando as epidemias de meningite, em 1974, e de poliomielite, em 19801212 Temporão JG. O Programa Nacional de Imunizações (PNI): origens e desenvolvimento. Hist. Ciênc. Saúde Mang. 2003; 10(supl2):601-17..

Com o crescimento da campanha de vacinação contra a Covid-19, apoiada no arcabouço jurídico-normativo já existente no País, acrescido da recente Lei nº 13.979 de 202022 Brasil. Lei Federal nº 13.979, de 13 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/about/submissions.
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- de iniciativa do Poder Executivo e aprovada pelo Congresso Nacional, em regime de urgência, por ocasião da crise sanitária -, o caráter obrigatório da vacinação foi reforçado, sendo sempre uma previsão ex vi legis, ou seja, decorrente da lei.

Desde então, assistem-se a decisões judiciais que alcançam a desobrigação da vacinação, embora a realidade vacinal do País apresente melhores índices que as campanhas norte-americanas, onde o movimento antivacina é muito forte1313 Macaray M. People making decisions about their health deserve honesty from their leaders. Washington Post. 2021 set 15. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/outlook/2021/09/15/natural-immunity-vaccine-mandate/.
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.

O STF, em sede de análise sobre a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.979, de 202022 Brasil. Lei Federal nº 13.979, de 13 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/about/submissions.
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, que tratavam da vacinação compulsória como medida de enfrentamento à emergência de Covid-19, posicionou-se no sentido de estabelecer a diferenciação entre vacinação compulsória e vacinação forçada, sendo o consentimento o grau de diferenciação entre elas.

Contudo, o Tribunal também reconheceu a possibilidade de utilização de medidas indiretas voltadas a incentivar a adesão da população, desde que prevista em lei ou dela decorrentes, justificando as possíveis restrições à autonomia individual, no dever do Estado de conferir concretude ao disposto no art. 196 da Carta Magna88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 2022.. Dever esse que é irrenunciável.

O Ministro do STF, Luís Roberto Barroso1414 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 6.586. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6033038.
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, em seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.586, esclarece bem esses limites

[...] a expressão ‘vacinação obrigatória’ não significa que alguém poderá ser imunizado à força, com violência física, ou qualquer outro tipo de coação.

O que decorre do caráter obrigatório da vacinação é ela ser exigida como condição para a prática de certos atos, como a matrícula de uma criança numa escola, pública ou privada, ou como condição para a percepção de benefícios, como é o caso do próprio Bolsa Família, ou também permite que sejam aplicadas as penalidades em caso de descumprimento. Como regra geral, o Direito não admite que as obrigações de fazer sejam cumpridas à força - manu militari - pelo Poder Público.

Do ponto de vista do direito sanitário, não resta dúvida de que a vacinação se constitui como uma importante medida de natureza preventiva voltada a garantir o direito à saúde, notadamente, na esfera coletiva. Ademais, é menos restritiva de direitos que outras ações, como o isolamento forçado e/ou políticas de lockdown. Nesse contexto é que se justifica a adoção da vacinação obrigatória, onde a sobreposição da vontade do Estado sobre direitos e liberdades individuais tem como escopo proteger o direito da coletividade.

Destaque-se, ainda, que a eficácia da medida está diretamente condicionada à imunização de uma grande quantidade de pessoas, capaz de gerar um escudo de segurança suficiente a reduzir o risco de novas contaminações e propagação da doença com novos surtos.

Em outro giro, a omissão do Estado no enfrentamento de crises sanitárias, como a da pandemia de Covid-19, seria muito mais danosa que a adoção da vacinação compulsória. O que precisa ser observado, quando da adoção dessa importante medida preventiva, são as evidências científicas e informações estratégicas, aliadas ao respeito à dignidade humana. Por isso mesmo, rechaçam-se as medidas coativas.

Portanto, no âmbito do direito sanitário, não é incomum essa tensão entre o individual e o coletivo, já que o Estado tem o dever de atuar para proteger e resguardar o direito à saúde, constitucionalmente reconhecido, e, ao mesmo tempo, deve respeitar os direitos e as liberdades individuais também abrigados na Carta Magna. Por isso mesmo, essa atuação deve ser pautada em critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade1515 Bonavides P. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros; 2013., largamente utilizado para a proteção de direitos fundamentais, nos âmbitos nacional e internacional, considera a existência de relação equilibrada entre meios e fins, ou seja, a intervenção adotada deve ser confrontada com a finalidade que se pretende, de modo a evitar excessos. Esse balizamento pode ser observado a partir da avaliação de três elementos ou subprincípios que o informam: i) pertinência; ii) necessidade; e iii) proporcionalidade em sentido estrito.

A pertinência significa a adequação em si da medida eleita para o fim que se pretende alcançar. A necessidade, por sua vez, determina os limites da medida tomada, que devem ser aqueles estritamente necessários ao alcance da finalidade pretendida. Ou seja, entre as várias medidas disponíveis, elege-se a mais suave e menos nociva aos interesses dos indivíduos.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, que estabelece a própria condição de legalidade do ato, pois repele aqueles que são desproporcionais.

No caso em análise, a aplicação do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios permite extrair a conclusão de que a adoção da vacinação obrigatória enquanto medida de combate ao coronavírus atende aos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade necessários ao enfrentamento de crise sanitária de tal magnitude.

Com o avanço massivo da vacinação gratuita em todas as unidades da federação, observa-se a queda nos índices de casos novos e número de óbitos1616 Fundação Oswaldo Cruz. Boletim Observatório Covid-19. Boletim Extraordinário. 2021 out 6. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_extraordinario_2021-outubro-06.pdf.
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. Esse panorama, por sua vez, também permitiu o desafogamento dos leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais públicos e privados, além da retomada de outras ações e serviços de saúde que foram impactados pelo coronavírus.

Apesar de a obrigatoriedade da vacinação interferir diretamente no campo de escolhas individuais, os resultados alcançados, especialmente diante de um contexto de grave crise sanitária, revestem-se claramente de razoabilidade e proporcionalidade entre meios e fins.

Assim, a proteção e a segurança da saúde individual e coletiva, por meio da vacinação obrigatória, são a expressão da ação estatal voltada a garantir e promover o direito à saúde.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    12 Maio 2022
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