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A gestão política da Covid-19 em Portugal: contributos analíticos para o debate internacional

The political management of Covid-19 in Portugal: analytical insights for the international debate

RESUMO

À medida que a pandemia por SARS-CoV-2 alcança a escala planetária, multiplicam-se as respostas políticas de combate à doença Covid-19. Contudo, não só persiste a falta de evidência sobre os processos de tomada de decisão e os resultados obtidos - incluindo os colaterais - como também a análise de políticas não tem sido capaz de ultrapassar reportes descritivos que pouco acrescentam à compreensão teórica da gestão política dessa doença. Partindo do caso português, este ensaio visa contribuir para corrigir essas lacunas, em concreto: colaborar para a melhoria das respostas políticas e para a consolidação do debate teórico a respeito da tomada de decisão política em contexto de crises sanitárias. A reflexão desenvolve-se em torno da necessidade de clarificar os objetivos de gestão dos contágios (se é erradicar, gerir, ignorar ou se há incapacidade na gestão das cadeias de transmissão), sobre a qualidade da monitorização e limites da comparação internacional (as diferenças de metodologias e a importância dos rastreios) e sobre aspectos de como viver com a Covid-19 e a procura de normalidade (desafios no acesso à vacinação e relações com desigualdades sociais). A reflexão termina com a indicação de como o caso português ilustra as principais teorias de análise dos ciclos das políticas públicas.

PALAVRAS-CHAVE
Infecções por coronavírus; Doenças transmissíveis emergentes; Políticas; Epidemiologia

ABSTRACT

As the SARS-CoV-2 pandemics reaches the entire planet, the political responses to dealing with the coronavirus disease Covid-19 have flourished. However, not only has the evidence on decision-making and outcomes - including the side effects - lacked, but also policy analysis has not been able to overcome an overly descriptive nature that brings too little to the theoretical understanding of the political management of Covid-19. Building on the Portuguese case, this essay aims to contribute to fill in such blanks, notably by contributing to the improvement of political responses and consolidation of the theoretical debate about political decision-making in the context of health crises. The reflection expands on the need to clarify the goal of the management of contagions (whether the aim is to eradicate, manage, ignore or if there is an inability to manage the transmission chains), on the quality of monitoring and limits of international comparisons (different methodologies and the importance of mass screening), and on aspects of living with Covid-19 and the pursuit for normality (challenges in the access to vaccination and connections with broader social inequalities). The reflection ends by showing how the Portuguese case resonates on some of the key theories of the analysis of public policies cycles.

KEYWORDS
Coronavirus infections; Communicable diseases, emerging; Policy; Epidemiology

Introdução

À entrada do segundo semestre de 2020, o vírus SARS-CoV-2, causador da doença Covid-19, tornou-se uma realidade em praticamente todos os países, na maioria dos quais afetando as rotinas diárias há largos meses. Não obstante, o debate internacional continua envolto em controvérsia, desde logo a respeito da origem e timing da contaminação11 Magenta M. Coronavírus em esgoto de 4 países antes de surto na China aumenta mistério sobre origem do vírus [internet]. BBC News Brasil em Londres. 2020 jul. 9 [acesso em 2020 jul 10]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53347211.
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, passando pela genética do vírus e comorbidades associadas22 Fang L, Karakiulakis G, Roth M. Are patients with hypertension and diabetes mellitus at increased risk for COVID-19 infection? The Lancet. 2020; 8(4):E21-E21., já para não falar das muitas opções para mitigar as cadeias de transmissão33 Correia T. SARS-CoV -2 pandemics: The lack of critical reflection addressing short- and long-term challenges. Int. j. health plann. manage. 2020; 35(3):669-672.,44 Ferrinho P, Sidat M, Leiras G, et al. Principalism in public health decision making in the context of the COVID -19 pandemic. Int. j. health plann. Manage. No prelo 2020.. Em suma, à persistência de dúvidas na pesquisa fundamental, acresce a persistência de dúvidas nas abordagens epidemiológicas, o que tem alimentado importantes discussões entre a comunidade científica, mas também conduzido a decisões políticas nem sempre claras ou devidamente fundamentadas.

A essa dupla incerteza científica e política, acrescem duas outras circunstâncias. Uma é a urgência de medidas sanitárias capazes de produzir efeitos imediatos, muitas vezes não sendo possível conferir à decisão política o tempo que esta requer. A outra é a necessidade de perceber até que ponto os processos políticos relacionados com o SARS-CoV-2 desafiam os habituais quadros teóricos de análise da emergência, agendamento, formulação, implementação e avaliação das políticas públicas.

É perante esse cenário que trazemos o caso português para o holofote do debate internacional. Além do objetivo mais concreto de explicitar a gestão política do SARS-CoV-2 em Portugal, pretendemos refletir sobre o modo como várias vicissitudes e aspectos específicos da tomada de decisão permitem alimentar o debate por meio de dois propósitos: contribuir para a progressiva melhoria das respostas políticas nos vários países e para a consolidação do debate teórico a respeito da tomada de decisão política em contexto de crises sanitárias.

Advogamos que a procura desse tipo de enquadramento analítico constitui um passo fundamental perante a multiplicação de abordagens descritivas. Ainda assim, a novidade, a urgência e a variação das decisões nos vários países não permitem ainda consolidar a reflexão sobre a adequação ou sobre a necessidade de revisão dos quadros teóricos de referência. Por esse motivo, neste contributo, procurarmos ensaiar uma primeira abordagem analítica sobre várias vicissitudes e aspectos dos processos de tomada de decisão.

Apresentaremos os traços gerais da realidade epidemiológica e das respostas políticas ao SARS-CoV-2 em Portugal, seguidos de uma reflexão sobre três dimensões decorrentes do caso português que têm relevância para uma discussão mais ampla sobre a gestão política desta epidemia. Terminamos analisando em que medida os contornos do caso português ilustram os principais quadros teóricos de análise do ciclo das políticas públicas.

Uma breve cronologia do SARS-CoV-2 em Portugal

A contaminação por SARS-CoV-2 em Portugal teve início oficial em 2 de março de 2020, por meio de dois casos importados da Itália e da Espanha. O alarme soou após semanas de alguma expectativa de que o vírus pudesse não chegar ao país e inércia na antecipação de medidas. A terem existido movimentações políticas prévias, estas foram de tal modo pouco consistentes e sistemáticas por parte dos vários atores políticos e do sistema de saúde que acabaram por não ter eco no espaço público.

Os casos de contágio, naturalmente, multiplicaram-se nos dias seguintes; e o governo decretou o encerramento das escolas em 16 de março. Na altura dessa decisão, tomada em 12 de março, a soma de infectados no país era de 78 (prevalência de 7,6 casos por milhão de habitantes). A maior incidência ocorria na região de maior concentração da população (área metropolitana de Lisboa) e na região norte. Em ambos os casos, a maioria das cadeias de transmissão teve proveniência a partir do estrangeiro, quer por via da atividade profissional (a ligação ao setor industrial da moda e do calçado), quer por via do lazer (a circunstância de viagens durante as férias do carnaval). Uma cidade na região centro foi colocada sob quarentena obrigatória, o que implicou a restrição das entradas e saídas de pessoas mediante monitorização policial. No dia 18 de março, foi declarado o Estado de Emergência em todo o país, o mecanismo constitucional mais restritivo de direitos, liberdades e garantias individuais e coletivas.

Em termos práticos, as restrições visaram possibilitar o confinamento compulsivo de pessoas no domicílio ou em estabelecimentos de saúde, o estabelecimento de cercas sanitárias, a interdição de deslocações (excluídas as deslocações para o emprego, para assistência à saúde e aquisição de bens de primeira necessidade), a requisição pública da atividade privada, tanto para garantir a produção e o abastecimento de bens e serviços necessários ao normal funcionamento do país como para encerrar ou limitar o funcionamento de atividades consideradas prejudiciais à contenção das cadeias de transmissão. A liberdade de reunião e manifestações foi igualmente limitada, incluindo a celebração de atividades coletivas de culto religioso55 Portugal. Decreto nº 14-A/2020 de 18 de Março de 2020. Declara o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública. Diário da República. 18 Mar 2020.. Os dados disponibilizados pela Google (isto é, Community Mobility Reports) mostram que a população residente aderiu massivamente à redução das deslocações: em abril, registaram-se -83% de deslocações para locais de comércio, restauração e lazer; -80% de deslocações para parques; -79% de deslocações em transportes públicos; -59% em deslocações para aquisição de bens essenciais e em farmácias e -53% nas deslocações para o trabalho66 Peixoto VR, Vieira A, Aguiar, et al. Barómetro Covid-19: Mobilidade em Portugal em tempos de pandemia por COVID-19 [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 1]. Disponível em: https://barometro-covid-19.ensp.unl.pt/wp-content/uploads/2020/04/mobilitytrends-portugal-covid-barometro-politicas-08.04.2020.pdf.
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No dia 2 de abril, um mês após os primeiros casos de Covid-19, Portugal tinha registado 9.886 casos (prevalência de 961 casos por milhão de habitantes) e 246 mortes (taxa de letalidade de 2,5%)77 Portugal. Relatório de Situação Epidemiologica em Portugal de 3 de abril. Lisboa: Direção-Geral de Saúde; 2020. [acesso em 2020 jul 1]. Disponível em: https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/04/32_DGS_boletim_20200403.pdf.
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. Apesar desse crescimento, a curva epidemiológica não seguiu o padrão de crescimento exponencial verificado na Itália ou na Espanha, mas, sim, uma tendência que ao longo dos meses seguintes ficou conhecida por ‘planalto persistente’ e que traduz o crescimento marginal de casos diários (em torno de 1%).

Esse período obrigou a restrições na mobilidade internacional de pessoas, em particular, a suspensão de voos de e para a Espanha e a Itália, o estabelecimento de um acordo bilateral com a Espanha para o encerramento das fronteiras terrestres e a forte redução das deslocações aéreas, tanto dentro do espaço Schengen quanto com países terceiros. Para se ter noção das implicações econômicas e políticas das restrições da mobilidade aérea, somente dentro do espaço Schengen, realizam-se cerca de 1,25 milhão de voos anuais88 Comissão Europeia. Europa sem fronteiras: o espaço Schengen. Bruxelas: Comissão Europeia; 2019 [internet]. [acesso em 2020 jun 30]. Disponível em: https://ec.europa.eu/home-affairs/sites/homeaffairs/files/e-library/docs/schengen_brochure/schengen_brochure_dr3111126_pt.pdf.
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. Em relação a países terceiros, apenas foram mantidos voos essenciais de e para países com forte presença de comunidades portuguesas, como é o caso do Brasil, da Venezuela, dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) e dos Estados Unidos da América (EUA).

Nos meses de junho e julho, algumas restrições na mobilidade internacional foram revistas e/ou levantadas em função da situação epidemiológica dos países. Essa fase ficou marcada por alguma controvérsia entre os países do espaço Schengen na definição de três listas de restrições: zonas cuja proveniência está vedada; zonas cuja proveniência está condicionada à obrigatoriedade de testes de diagnóstico e/ou de quarentena; e zonas cuja proveniência não tem restrições. Em um momento de retração econômica e de antevisão das férias de verão, a controvérsia prendeu-se com os critérios para a inclusão dos vários países naquelas listas. Cada país adotou os seus próprios critérios (por exemplo, contabilizar apenas o número de novos casos ou incluir outros indicadores, como a capacidade de testagem, o índice de transmissibilidade - Rt -, ou o grau de localização ou disseminação dos surtos). Além disso, percebeu-se que países que adotaram os mesmos critérios tomaram decisões descoincidentes sobre os países a incluir em cada uma daquelas listas. Por exemplo, os voos provenientes de e com destino a Portugal estiveram incluídos nas três listas dos demais países do espaço Schengen99 União Europeia: Re-open EU [internet]. Bruxelas: União Europeia; 2020. [acesso em 2020 jul 2]. Disponível em: https://reopen.europa.eu/pt/.
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Terminada a fase do Estado de Emergência que durou até à primeira semana de maio, Portugal iniciou um processo de regresso à normalidade. Em traços gerais, esse processo correspondeu ao retomar faseado de diversas atividades econômicas e ao levantamento de algumas restrições na mobilidade diária das pessoas1010 Fronteira I, Augusto GF. Portugal. Covid-19 Health System Response Monitor [internet]. Lisboa: European Observatory on Health Systems and Policies; 2020. [acesso em 2020 jul 23]. Disponível em: https://www.covid19healthsystem.org/countries/portugal/countrypage.aspx.
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. Vários surtos foram surgindo, sobretudo ligados a regiões de forte densidade populacional, a grupos de risco (população idosa em lares), a certos setores de atividade (construção civil e fábricas) e associados a questões laborais (trabalhadores precários). Houve também registo de algumas cadeias de transmissão na comunidade que desafiaram a ação política no sentido de rever os planos de monitorização epidemiológica, de garantia de cumprimento do isolamento domiciliário nos casos positivos e de quarentena profilática nos casos suspeitos, de rapidez do diagnóstico e de cumprimento das normas preventivas de distanciamento físico e utilização de meios de proteção individual. Decorrentes desses casos, o entendimento político foi de ir tomando as várias medidas de restrição de mobilidade e de contato físico entre as pessoas à escala territorial mais baixa possível (ao nível das freguesias).

No dia 15 julho, Portugal tinha 13.610 casos ativos (prevalência de 1.322 casos por milhão de habitantes), para um total de 47.765 casos confirmados desde o início dos registos e 1.679 óbitos (taxa de letalidade de 3,5%)1111 Portugal. Relatório de Situação Epidemiologica em Portugal de 16 de julho. Lisboa: Direção-Geral de Saúde; 2020. [acesso em 2020 jul 17]. Disponível em: https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/07/i026477.pdf.
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Dimensões da gestão política da Covid-19

Traçado um breve retrato da evolução epidemiológica e política da Covid-19 em Portugal, é importa refletir sobre três dimensões de gestão política que emergem a partir do caso português e que têm relevância para o debate internacional.

Objetivos da gestão dos contágios

Em traço gerais, os países têm seguido quatro objetivos de gestão do SARS-CoV-2: erradicar as cadeias de transmissão (exemplo da Nova Zelândia, da Islândia, da Tailândia ou de algumas províncias da China), gerir as cadeias de transmissão (exemplo da grande maioria dos países europeus, incluindo Portugal), ignorar as cadeias de transmissão (exemplo do Brasil, dos EUA, também do Reino Unido numa fase inicial) e incapacidade de gerir as cadeias de transmissão (exemplo da maioria dos países africanos ou da Índia). A respeito desses últimos, importa destacar que estão em causa dificuldades estruturais no rastreio e na monitorização do vírus, sobretudo pondo em perspectiva essa doença em relação a outras doenças e a situações de crise humanitária. O distanciamento social, os meios de prevenção individual e o confinamento ocorrem em circunstâncias de fome e pobreza extremas, conflitos cívicos, políticos e religiosos constantes, falta de saneamento básico e de água potável e gestão de outras doenças infectocontagiosas de letalidade superior à da Covid-19.

Pondo de parte esses países, enfrentar uma pandemia, tendo em vista erradicar a transmissão, geri-la ou ignorá-la, conduz a diferentes políticas e diferentes tipos de mensagens. Uma primeira crítica, portanto, prende-se com a falta de clareza sobre o fim a atingir, e essa falta de clareza é identificável em Portugal e em muitos outros países. Daqui decorrem dificuldades de gestão de expectativas da população e o desgaste dos decisores políticos. Como se compreende, caso a população não esteja preparada para a persistência de surtos, o medo dominará a condução da vida cotidiana, e mais facilmente a pandemia se tornará moeda de troca no combate partidário. Em Portugal, não tem havido uma mensagem clara sobre se o objetivo seria erradicar ou gerir as cadeias de transmissão. Assim se explica que se tenha entrado em um frenesim de contagens diárias de casos e de óbitos e os meios de comunicação social tenham passado a ocupar horas da grelha diária tentando encontrar justificação para variações de indicadores que muitas vezes são circunstanciais ou decorrentes dos processos de recolha de dados.

Além do fato de Portugal ser um Estado-Membro da União Europeia e do Espaço Schengen, o que influencia a gestão das fronteiras com outros Estados-Membros e com países terceiros, diversas características sociodemográficas da população residente tornam mais verossímil a gestão das cadeias de transmissão do que a tentativa da sua erradicação. Essas características incluem a estrutura demográfica envelhecida e a elevada carga de doença da população mais velha1212 Correia T, Carapinheiro G, Raposo H. Desigualdades Sociais na Saúde: um olhar comparativo e compreensivo. In: Carmo RM, Costa AF, Azevedo J, et al., coordenadores. Desigualdades Sociais: Portugal e a Europa. Lisboa: Mundos Sociais; 2018. p. 23-39., a existência de aglomerados populacionais de elevada concentração de grupos sociais em condição socioeconômica desfavorecida1313 Pato I, Pereira M. Habitação Social na Área Metropolitana de Lisboa: Tendências da gestão municipal contemporânea. Cidades, Comunidades e Territórios. 2013; (26):1-15., e a ausência de uma verdadeira estratégia de saúde pública e de promoção da saúde capaz de garantir à generalidade da população os recursos cognitivos e de infraestruturas necessários à gestão autônoma do bem-estar e prevenção da doença1414 Justo C. La valse à quatre temps. Escritos políticos sobre política de saúde. Lisboa: Letras Paralelas; 2018..

Uma segunda crítica prende-se com a opção política de ignorar as cadeias de transmissão. Ao contrário dos países que optam por erradicar ou gerir as cadeias de transmissão, nesse caso, a mensagem tende a ser mais clara no sentido de justificar esse caminho (vejam-se as diversas declarações públicas dos presidentes Trump e Bolsonaro). Aqui a questão prende-se com a falta de evidência das implicações de deixar o vírus circular livremente como se essa opção não comprometesse também o desempenho econômico, não conduzisse ao colapso dos serviços de saúde e, consequentemente, ao número de mortes evitáveis, e não expusesse os profissionais de saúde a fatores acrescidos de risco. Invariavelmente, foi isso que encontramos em todos os países em que os surtos estiveram fora de controlo (pense-se na China, na Itália, na Espanha, no Paquistão, nos EUA, no Brasil, na África do Sul, no México ou na Índia).

Argumenta-se que a letalidade desse vírus é baixa e que a severidade da doença ocorre mais entre pessoas de idade avançada e já vulneráveis a outras doenças para justificar evitar estratégias de erradicação ou controle das cadeias de transmissão. Contudo, convirá constatar que a opção por ignorar as cadeias de transmissão tem vindo a perder adesão na política internacional; e tal fato, por si só, é revelador do consenso sobre o ‘efeito dominó’ de deixar o vírus em circulação. É verdade que as medidas para conter a transmissão também provocam ‘efeitos dominó’, sobretudo na atividade econômica, na gestão das outras doenças e, consequentemente, na mortalidade ‘não Covid-19’. O aumento da mortalidade ao longo dos meses de 2020 tem sido reportado em diversos países1515 Nogueira PJ, Nobre MA, Nicola PJ, et al. Excess Mortality Estimation During the COVID-19 Pandemic: Preliminary Data from Portugal. Acta Médica Portuguesa. 2020; 33(6):376-383., e isso não pode ser ignorado nesta discussão, aliás, como já se sabia na gestão de epidemias anteriores, como o SARS no Canadá1616 Shantz J. Capitalism is making us sick: poverty, illness and the SARS crisis in Toronto. In: Mukherjea A, editor. Understanding Emerging Epidemics: Social and Political Approaches. Bingley. UK: Emerald Group Publishing Limited; 2010. p. 3-18.. O fato de haver ‘efeitos dominó’, qualquer que seja a opção, leva-nos a recordar que as epidemias não se gerem, mas devem (e podem) ser antecipadas33 Correia T. SARS-CoV -2 pandemics: The lack of critical reflection addressing short- and long-term challenges. Int. j. health plann. manage. 2020; 35(3):669-672..

Além do colapso dos sistemas de saúde, do aumento de mortes evitáveis e da exposição dos profissionais de saúde a fatores acrescidos de risco, a crítica à opção por deixar o vírus em circulação passa pelo fato de se tratar de um vírus novo, a respeito do qual persistem importantes dúvidas na pesquisa fundamental. Em primeiro lugar, as implicações clínicas da doença continuam a não ser inteiramente claras, e tem havido discussão sobre a dimensão sistémica da Covid-19 além das implicações respiratórias1717 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neuro. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 17]; (19):767-83. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S1474-4422%2820%2930221-0.
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,1818 O'Riordan M. Thrombus Burden Greater in STEMI Patients With COVID-19 [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 20]. Disponível em: https://www.tctmd.com/news/thrombus-burden-greater-stemi-patients-covid-19.
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. Em segundo, não se percebe ao certo como funcionará a imunidade de grupo1919 Gallagher J. Coronavírus: o que a Ciência já sabe sobre imunidade pós-covid [internet]. BBC News Brasil em Londres. 2020 jul 13 [acesso em 2020 jul 15]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53396107.
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,2020 Long Q-X, Tang X-J, Shi Q-L, et al. Clinical and immunological assessment of asymptomatic SARS-CoV-2 infections. Nature Medicine. No prelo 2020., sobretudo a sua duração. Em terceiro lugar, porque a história da saúde pública mostra que a incidência das doenças e da mortalidade se aproveita de desigualdades sociais mais amplas1212 Correia T, Carapinheiro G, Raposo H. Desigualdades Sociais na Saúde: um olhar comparativo e compreensivo. In: Carmo RM, Costa AF, Azevedo J, et al., coordenadores. Desigualdades Sociais: Portugal e a Europa. Lisboa: Mundos Sociais; 2018. p. 23-39.. Em suma, deve um país ignorar esses fatos e não acompanhar o consenso internacional na prudência de gerir a Covid-19?

Devido à atual falta de evidência sobre os efeitos das várias opções políticas, Ferrinho e colegas44 Ferrinho P, Sidat M, Leiras G, et al. Principalism in public health decision making in the context of the COVID -19 pandemic. Int. j. health plann. Manage. No prelo 2020. argumentam que a tomada de decisão deve ser norteada pelo respeito dos seguintes princípios: 1) menor prejuízo; 2) menor restrição ou coerção; 3) reciprocidade; 4) transparência; 5) precaução; 6) equidade; e 7) evidência científica.

Qualidade da monitorização e limites da comparação internacional

Um dos grandes desafios e pontos que têm gerado maior discórdia entre os países tem sido a monitorização da doença. Em uns casos, devido à opção política de ignorar as cadeias de transmissão. Não por acaso, países como o Brasil não reportam de forma consistente a testagem ao longo dos meses2121 Our World in Data. Coronavirus (COVID-19) Testing [internet]. Oxford: Global Change Data Lab; 2020. [acesso em 2020 jul 1]. Disponível em: https://ourworldindata.org/coronavirus-testing.
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, e isso ajuda a legitimar a suposta baixa incidência da doença. Em outros casos, devido a critérios não consensuais sobre os indicadores a considerar e às metodologias de recolha de dados. Essas diferenças tornam a comparação internacional nessa fase pouco relevante e pouco rigorosa, ainda que seja utilizada para fundamentar importantes opções políticas, tais como a definição dos critérios de permissão ou restrição da circulação internacional das pessoas. Somente dentro de vários anos será possível perceber com nitidez os contornos que têm estado na base dos reportes dos vários países. Ainda assim, tem sido possível notar que vários países têm revisto as contagens referentes a novos casos ou à mortalidade (por exemplo, China, Reino Unido ou Espanha). Também tem sido possível observar que algumas diferenças metodológicas não são menosprezáveis para a comparação internacional, por isso o argumento da falta de relevância e de rigor dessa comparação na fase em que nos encontramos. Por exemplo, no caso da mortalidade, certos países contabilizam os óbitos por Covid-19, enquanto outros associam também os óbitos com Covid-19. Em uns casos, o reporte de óbitos é feito apenas nas organizações de saúde, enquanto em outros inclui lares, domicílios e espaços públicos.

A fase em que nos encontramos é tão inicial que tampouco é possível identificar se a doença estará a ser sub-representada (por causa da ausência de diagnóstico, da necessidade de mais investigação sobre as múltiplas implicações clínicas da doença e dos doentes assintomáticos) ou sobrerepresentada (em virtude da falta de sistematicidade da política de testagem dos vários países e da metodologia de contabilização dos óbitos).

Relativamente a Portugal, depois de, nos meses iniciais, ter havido dificuldade na aquisição de reagentes e da necessidade de instalação de laboratórios pelo território, com consequências ao nível de elevados casos diários aguardando a confirmação de diagnóstico, tornou-se um dos países europeus que mais testa e produz diagnósticos com maior rapidez1010 Fronteira I, Augusto GF. Portugal. Covid-19 Health System Response Monitor [internet]. Lisboa: European Observatory on Health Systems and Policies; 2020. [acesso em 2020 jul 23]. Disponível em: https://www.covid19healthsystem.org/countries/portugal/countrypage.aspx.
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. Sendo possível afirmar que o país tem seguido uma estratégia de transparência dos dados e dos critérios usados, também é possível afirmar que tem havido dificuldade de uniformizar as contagens nacionais.

Outro aspecto da monitorização diz respeito ao conhecimento das cadeias de transmissão. À testagem e produção de diagnóstico, associa-se ainda a capacidade de manter em situação de quarentena profilática a população que aguarda diagnóstico ou que manteve contato com casos positivos, ou em manter em confinamento domiciliário a população infectada (quando não há necessidade de internamento). O contexto de precariedade laboral e baixos rendimentos das famílias, associado a alguma descoordenação das equipas locais, levou a que o acompanhamento dos casos sob monitorização nem sempre fosse concretizado e, por conseguinte, à manutenção dos surtos ativos. Ainda assim, no decorrer do processo de retoma da atividade econômica e de maior mobilidade da população, as cadeias de transmissão mantiveram-se relativamente bem delimitadas entre áreas geográficas e grupos sociais, o que, contudo, colocou Portugal, a par da Suécia, entre os países europeus com maior incidência entre meados de junho e julho.

Viver com a Covid-19 e a procura de normalidade

Parece relativamente óbvio que a Covid-19 terá que fazer parte da normalidade imediata, pelo menos enquanto uma ou várias vacinas aguardam, primeiro, por produção laboratorial e, depois, por produção industrial. Ademais, o desfasamento de tempo entre a produção laboratorial e a industrial não é menosprezável nessa questão, sobretudo no caso de uma pandemia de expressão planetária. Ousamos dizer mais: a descoberta de uma vacina ou cura exporá de imediato as bem conhecidas geografias injustas que dominam a geopolítica internacional2222 Carapinheiro G. Territórios, Direitos e Justiça na Saúde. Porto: Rede Ibero Americana de Territórios Sustentáveis, Desenvolvimento e Saúde; 2014. e que novos desafios se colocarão à gestão política dessa doença. Uma coisa é gerir a transmissão perante a ausência de cura, outra bem diferente será gerir a transmissão perante a impossibilidade de disponibilizar a cura à população. A secretária regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para África, Dra. Moeti, já alertou para essa questão de forma inequívoca2323 Word Health Organization Africa: WHO calls for equitable access to future COVID-19 vaccines in Africa [internet]. Brazzaville: WHO Africa; 2020. [acesso em 2020 jul 17]. Disponível em: https://www.afro.who.int/pt/node/12992.
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Até lá, teremos que saber como retomar a normalidade possível perante a circunstância da doença. Países de todos os quadrantes do mundo que já iniciaram processos de desconfinamento (o jargão que define a reabertura da atividade econômica e da mobilidade das pessoas) tiveram, em algum momento, que interrompê-lo ou recuar perante a reemergência de surtos - chamemos-lhe por isso a fase ioiô.

Isso prova que tal vai e vem não é específico a um país, logo, à exceção dos países que têm ignorado as cadeias de transmissão como principal estratégia de gestão dos contágios, tal não pode ser imputado à qualidade das decisões políticas. Em certo sentido, é a melhor forma de gerir a atual situação2424 Sakellarides C, Araújo F. A Public Health Strategy for the COVID-19 Pandemic in Portugal: Learning from International Experience. Acta med. port. 2020; 33(7-8):456-458.. Pelo menos em Portugal, tem havido essa tentativa de colagem política depois de vários meses em que os diversos atores políticos compreenderam que esse tema devia estar acima dos habituais fait divers que caracterizam a realpolitik. Não está em causa advogar o unanimismo político, mas compreender o quanto as dificuldades de gestão política e epidemiológica dessa doença são transversais a países de maior ou menor dimensão e de baixa ou alta renda.

Falar na retoma da normalidade significa compreender que, por muito que as rotinas se alterem, o novo acabará por ser interiorizado como normal no funcionamento das instituições e nos comportamentos. As dúvidas estão em perceber qual a duração desta ‘nova normalidade’, o quanto este ‘novo’ normal levará à alteração de normas e valores anteriores e quais as consequências que novas formas de manter relações humanas e entre países terão sobre a dimensão cognitiva e afetiva dos indivíduos e na gestão econômica e política.

Tomando uma vez mais Portugal como exemplo e recordando a sobreposição entre doenças e desigualdades sociais, nem a prevalência da doença tem sido democrática nem a intensidade dos efeitos negativos do confinamento. Este novo normal parece estar cavando diferenças sociais de âmbito sanitário e de rendimento traduzido na dificuldade de aquisição de bens de proteção individual, no acesso a serviços de saúde e na perda de salário ou do emprego2525 Universidade Nova Lisboa. Opinião Social: Pandemia aumenta fosso das desigualdades [internet]. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública; 2020. [acesso em 2020 jul 10]. Disponível em: https://barometro-covid-19.ensp.unl.pt/opiniao-social-pandemia-aumenta-fosso-das-desigualdades/.
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Os sinais que a distribuição da Covid-19 decorre de desigualdades sociais e que adensa desigualdades sociais são claros, daí sabermos o quanto os vários grupos sociais não estão em pé de igualdade na compreensão da informação e na mobilização de recursos materiais para minimizar os fatores de risco. A questão é que, no caso de uma doença contagiosa e sem cura, percebe-se o quanto a minimização de fatores de risco é determinante para a retoma de alguma normalidade. Caso contrário, as cadeias de transmissão multiplicam-se, e depressa recuos no desconfinamento têm que ser decretados. O paradoxo é, por isso, bem evidente: por um lado, é essencial retomar a normalidade para minimizar o aumento das desigualdades sanitárias e de rendimento; por outro, o retomar da normalidade está limitado por causa das desigualdades sanitárias e de rendimento criarem obstáculos à minimização dos fatores de risco (havendo evidência que os grupos sociais e econômicos mais vulneráveis estão também mais expostos à doença).

Sendo pouco plausível que, em curto prazo, seja possível esbater diferenças na compreensão da informação e na mobilização de recursos materiais para minimizar fatores de risco, algumas alternativas imediatas passam por assegurar a grupos sociais vulneráveis: a disponibilização de bens de proteção individual; o acompanhamento comunitário para a gestão do novo normal (o que fazer e o que não fazer) ou de situações de quarentena profilática e isolamento social; apoios de compensação financeira perante a perda de rendimento; fiscalização da saúde ocupacional dado que maioritariamente são trabalhadores cujas atividades não se adequam ao teletrabalho (ou trabalho à distância) e garantia de procedimentos de segurança em espaços coletivos fechados (como o caso dos transportes públicos, que pode passar pelo aumento da oferta ou descoincidência na circulação de passageiros).

Considerações finais

Este ensaio procurou contribuir para a evolução do debate acerca das respostas políticas à pandemia por SARS-CoV-2 dada a preponderância de evidências descritivas que pouco acrescentam à formulação de políticas e à discussão teórico-conceptual sobre a tomada de decisão em contexto de crises sanitárias. Um aspecto fundamental que o debate deverá ser capaz de responder é em que medida a gestão desta pandemia requer a revisitação dos principais quadros teóricos de análise da emergência, agendamento, formulação, implementação e avaliação das políticas públicas. Essa resposta somente será possível com o acumular de evidência analítica a partir de experiências empíricas concretas.

A reflexão a partir do caso português parece mostrar que a emergência das respostas políticas decorreu do medo de evitar aquilo que se verificou em outros países onde os surtos estiveram fora de controle. A cobertura midiática imediata e global deu um forte impulso para a movimentação política e para o consenso suficientemente alargado na sociedade portuguesa da necessidade de aplicar medidas adotadas em outros países. Um aspecto relevante é que as opções políticas não só foram pensadas pela primeira vez - não havendo precedente sobre a adequação do desenho das políticas, o modo de implementação e os resultados expectáveis - como em nível internacional também não havia consenso sobre a magnitude do ‘efeito dominó’ que tais respostas iriam provocar na economia, no funcionamento das instituições e na gestão de outras doenças2626 Roth S. Weak evidence for strong pandemic interventions: a 2019 WHO warning for the current COVID-19 crisis. Kybernetes. No prelo 2020..

A dificuldade da gestão política desta pandemia é, por isso, bem evidente: as consequências negativas de deixar o vírus em circulação eram demasiado bem conhecidas (pense-se no caso da Itália, da Espanha, dos EUA ou do Brasil); a opção por medidas restritivas da movimentação e contato físico entre as pessoas eram a única solução imediata e com consequências não inteiramente conhecidas.

Do ponto de vista do agendamento político, é verdade que houve a confluência da percepção de um problema que precisava ser resolvido e do ambiente político propício a essa resolução2727 Kingdom J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Longman; 2003.. Deve ser destacada a relativa facilidade como que medidas severas e novas no panorama político português foram aprovadas pela generalidade dos atores políticos e adotadas pela população. A essa distância, começa a perceber-se a influência do conflito político na menor adesão da população às respostas políticas: quanto mais a oposição política se torna visível, mais facilmente os comportamentos individuais desafiam as normas. O que isso significa é a necessidade de alinhamento político como meio proativo e não repressivo de influenciar comportamentos individuais.

Longe de se postular o unanimismo político, está em causa combater os mecanismos políticos mais repressivos e atentatórios das liberdades e garantias individuais44 Ferrinho P, Sidat M, Leiras G, et al. Principalism in public health decision making in the context of the COVID -19 pandemic. Int. j. health plann. Manage. No prelo 2020.. Por outras palavras: tais mecanismos serão menos necessários quanto maior for o consenso político. Nesse sentido, parece que a gestão desta pandemia tem estado em uma circunstância de equilíbrio decorrente da falta de disputa política2828 Baumgartner F, Breunig C, Green-Pedersen C, et al. Punctuated equilibrium in comparative perspective. Am J Polit Sci. 2009; 53(3):602-19., ainda que sinais recentes estejam mostrando o aumento dessa disputa.

Um aspecto que parece novo do ponto de vista teórico é que a confluência entre a percepção dos problemas e do ambiente político propício à sua resolução não foi acompanhado pela existência de respostas políticas claras2727 Kingdom J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Longman; 2003.. O vai e vem de medidas, as mensagens contraditórias e a sucessiva correção de orientações - decorrente da novidade e magnitude do problema - parecem não ter comprometido para já o alinhamento político, o que é ainda mais relevante de constatar dada a ausência de evidência sobre os ‘efeitos dominó’ dessas respostas políticas. Uma vez mais, o principal motivo parece ter sido o medo provocado pela situação vivida em outros países, para o qual a cobertura midiática teve obviamente um importante papel2929 Hogwood B, Peters BG. Policy dynamics. New York: St. Martin's Press; 1983.. O medo a par da situação sociodemográfica da população residente em Portugal colocava o país como fortemente vulnerável à severidade da Covid-19. Um dos exemplos mais claros da falta de clareza das respostas políticas encontra-se na omissão sobre se o objetivo da gestão dos contágios passava pela erradicação ou gestão das cadeias de transmissão. A realidade social, demográfica, territorial e econômica de Portugal, a par da gestão partilhada de fronteiras no contexto da União Europeia e do espaço Schengen, torna difícil pensar que a solução pudesse passar pela erradicação das cadeias de transmissão.

A respeito da formulação política, embora maior atenção seja necessária sobre os processos de tomada de decisão, parece relativamente clara a perspectiva da dependência da trajetória3030 Pierson P. Increasing returns, path dependence and the study of politics. Am Polit Sci Rev. 2000; 94(2):251-267.. Isso significa que os processos políticos estão ancorados a características e dinâmicas institucionais prévias. Alguns exemplos incluem a dificuldade de monitorização da quarentena profilática e do isolamento social na comunidade e, desde logo, a enorme preocupação com a vulnerabilidade da população a essa doença. Porventura, perante uma realidade social, econômica e demográfica menos desfavorável, a formulação de políticas poderia ter seguido outras opções menos restritivas da mobilidade que sabemos terem tido influência no adensar de desigualdades sociais e no menor acompanhamento das doenças não Covid-19.

Se em uma primeira fase foi inequívoco o papel das organizações internacionais e de outros países na difusão de políticas3131 Dolowitz D, Marsh D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance. 2000; 13(1):5-24., incluindo alguns vai e vens das orientações, importa equacionar em que medida poderá estar ocorrendo uma maior preponderância de atores nacionais na formulação política. Pelo menos essa parece ser uma consequência do aumento das disputas no agendamento político3232 Dye T. Understanding public policy. Boston: Longman; 2012.. Resta saber quais serão as implicações na implementação das políticas, dado que a expectativa é que quanto maior as disputas na fase de formulação, maior também serão as dificuldades de implementação aos diferentes níveis da tomada de decisão e na apropriação por parte das pessoas.

A fase de avaliação é determinante no ciclo das políticas públicas. Mais ainda no caso desta pandemia por se saber que a maioria das respostas políticas foram adotadas sem a devida evidência de efeitos e porque resultados preliminares apontam o aumento das desigualdades sociais e dificuldades de gestão das doenças não Covid-19, com consequências no aumento da mortalidade, como resultados colaterais que precisam de ser mais bem conhecidos.

  • Suporte financeiro: Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), por meio de financiamento ao Global Health and Tropical Medicine (GHTM) - UID/04413/2020
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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2020
  • Aceito
    13 Ago 2020
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