ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Potenciais danos silenciosos da pandemia COVID-19 em crianças com transtorno do neurodesenvolvimento e paralisia cerebral

Potential silent damage of the COVID-19 pandemic in children with neurodevelopmental disorders and cerebral palsy

RESUMO

A literatura aponta que a COVID-19 acomete preferencialmente a população adulta e idosa, com pouca repercussão no público pediátrico. Apresentamos nossa preocupação quanto aos danos silenciosos da pandemia COVID-19 entre os pacientes com transtorno do neurodesenvolvimento e paralisia cerebral. A interrupção do tratamento de reabilitação, a mudança de rotina e o maior uso de telas tem contribuído para uma maior incidência de transtornos psiquiátricos e do sono nos pacientes com transtorno do neurodesenvolvimento e paralisia cerebral. Esses fatores muito provavelmente levarão a uma maior ocorrência de pseudorregressão entre os pacientes com paralisia cerebral. É necessário lançar um olhar especial quanto ao cuidado integral da saúde dessas crianças, com estímulo ao uso das ferramentas de telemedicina e telereabilitação.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Paralisia Cerebral, Transtorno do Espectro Autista, Deficiência Intelectual, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade.

ABSTRACT

The literature points out that COVID-19 preferentially affects the adult and elderly population, with little repercussion among children. We present our concern regarding the silent damage of the COVID-19 pandemic among patients with neurodevelopmental disorders and cerebral palsy. The interruption of rehabilitation treatment, changes of daily routine, and overuse of screen technology has contributed to a higher incidence of psychiatric and sleep disorders in patients with neurodevelopmental disorder and cerebral palsy. These factors are likely to lead to a higher occurrence of pseudo-regression among patients with cerebral palsy. It is necessary to take a special look at the comprehensive health care of these children, encouraging the use of telemedicine and telerehabilitation tools.

Keywords: Coronavirus Infections, Cerebral Palsy, Autism Spectrum Disorder, Intellectual Disability, Attention Deficit Disorder with Hyperactivity.


A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, cujo epicentro foi a província de Wuhan, na China, tem afetado milhões de pessoas pelo mundo. Sua principal sintomatologia está relacionada ao sistema respiratório, embora seu espectro clínico seja bastante variável, podendo cursar com sintomas gastrointestinais (dor abdominal e diarreia), vasculares (trombose venosa profunda), neurológicos (cefaleia, acidente vascular cerebral e trombose venosa cerebral) e psiquiátricos (delirium e sintomas comportamentais)1,2. Os levantamentos epidemiológicos apontam para um menor acometimento na população pediátrica, sendo a maioria dos casos paucissintomáticos ou mesmo assintomáticos3. Apresentamos a nossa preocupação quanto aos danos indiretos do isolamento social imposto pela pandemia nos pacientes acompanhados no ambulatório de neurologia infantil, com especial destaque para aqueles com transtorno do neurodesenvolvimento e paralisia cerebral (PC).

Como forma de conter a propagação e transmissão viral, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem recomendado medidas que promovem o isolamento social, algo que, em maior ou menor escala, foi implantado na maior parte dos países do mundo. Na realidade local brasileira, é preciso voltar um olhar para os potenciais impactos negativos na saúde das crianças em acompanhamento no ambulatório de neurologia infantil. A impossibilidade de realização do tratamento de reabilitação (psicoterapia, fonoterapia, terapia ocupacional, fisioterapia, acompanhamento psicopedagógico, equoterapia, entre outros) tem contribuído para frear os ganhos funcionais, bem como exacerbar transtornos psiquiátricos comórbidos ou predispor ao surgimento destes4-6. Embora esta demanda tenha sido parcialmente atenuada mais recentemente com a instalação das estruturas de telessaúde e de atendimentos à distância, o manejo dos pacientes neuropediátricos em ambulatório tem sido desafiador, a exemplo do que se observa no restante do mundo5-8. Esta preocupação tem sido compartilhada com outros colegas médicos que atendem a este público, bem como com os pais e cuidadores.

Os transtornos do neurodesenvolvimento são caracterizados por déficits que acarretam prejuízo no funcionamento pessoal, social ou acadêmico e que surgem durante o desenvolvimento neurológico. Seus principais representantes são: transtorno do espectro autista (TEA), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), deficiência intelectual (DI), transtorno específico de aprendizagem (dislexia e discalculia) e os transtornos motores (tiques e síndrome de Tourette)9. A literatura traz dados alarmantes quanto à maior ocorrência de transtornos psiquiátricos e de distúrbios do sono, especialmente insônia comportamental, desde o início da pandemia5,6. As crianças com transtornos do neurodesenvolvimento estão especialmente suscetíveis a estes distúrbios. A mudança de rotina decorrente da interrupção das atividades escolares e o maior uso de telas com exposição à luz azul associados a diversos hábitos de má higiene do sono têm contribuído para a piora da qualidade do sono nessas crianças. As notícias negativas veiculadas pela grande mídia, a falta de convivência social e a perda de familiares e amigos pela COVID-19 tem contribuído para um nítido aumento do diagnóstico de transtornos de humor, fobia social, ansiedade generalizada e síndrome do pânico, especialmente nas crianças com TEA, TDAH e DI7,8,10-12. Mais do que isso, é preocupante a identificação desses transtornos inclusive em pré-escolares, algo que classicamente é mais comum entre adolescentes ou escolares13,14.

Por fim, lançamos luz sobre as crianças com PC em tempos de pandemia. A PC é uma condição motora crônica secundária a um dano cerebral não progressivo em um cérebro durante o seu desenvolvimento15. Os pacientes com PC não só frequentemente estão mais predispostos às infecções virais em decorrência da maior imobilidade, pior nutrição e maior suscetibilidade a infecções respiratórias recorrentes, mas também estão em condição de vulnerabilidade para sofrer com os efeitos indiretos da pandemia16,17. Tem sido observado um pior controle de crises epilépticas entre as crianças com PC e epilepsia sintomática, piora da qualidade do sono, piora da espasticidade e ainda maior ocorrência de pseudorregressão, com claras consequências emocionais e comportamentais17. É importante distinguir a regressão do neurodesenvolvimento - que denota uma progressão de doença, algo que classicamente não acontece na PC - da pseudorregressão, em que há perda de marcos do desenvolvimento por causas ambientais ou danos secundários18. A ausência da rotina médica ambulatorial (pediatria, neuropediatria, fisiatria, entre outros), das terapias de reabilitação (sobretudo fisioterapia e fonoaudiologia) e intervencionistas (aplicação de toxina botulínica), além do aumento da incidência de distúrbios de humor nestes pacientes são os principais elementos que tem conduzido a um aumento de pseudorregressão, embora a literatura ainda careça de mais estudos com esta abordagem.

Portanto, faz-se necessário voltar um olhar especial às crianças com transtorno do neurodesenvolvimento e PC durante a pandemia da COVID-19. Temos visto com grande esperança a dedicação das equipes de profissionais de saúde no intuito de minimizar os danos indiretos ocasionados pela necessidade de afastamento social nestes pacientes. Acreditamos ainda que a combinação entre uma aplicação de novas ferramentas que utilizem a telereabilitação e o retorno gradual e protegido do atendimento presencial (tão logo seja possível) são alguns dos caminhos possíveis. Trilhemos juntos esse caminho!


REFERÊNCIAS

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18. Clarke JTR. A clinical guide to inherited metabolic diseases. 2nd ed. New York: Cambridge University Press; 2002.










1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Residente de Medicina Física e Reabilitação - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. Universidade Federal do Piauí (UFPI), Professor do Curso de Medicina, Campus Ministro Reis Velloso - Parnaíba - Piauí - Brasil
3. Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e da Saúde do Piauí, Instituto de Educação Superior do Vale do Parnaíba (FAHESP-IESVAP), Professor do Curso de Medicina - Parnaíba - Piauí - Brasil
4. Universidade Federal de São Paulo, Disciplina de Neurologia, Departamento de Neurologia e Neurocirurgia - São Paulo - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:
Giuliano da Paz Oliveira
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Av. São Sebastião, nº 2819 - Nossa Sra. de Fátima
Parnaíba - PI, Brasil. CEP: 64202-020
E-mail: giulianopoliveira@gmail.com

Data de Submissão: 10/07/2020
Data de Aprovação: 12/08/2020