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Percepções de profissionais de enfermagem sobre suas condições de trabalho e saúde no contexto da pandemia de COVID-19

Resumo

Objetivo:

identificar as condições de trabalho e seus reflexos na saúde de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19, a partir das percepções dos próprios trabalhadores.

Métodos: pesquisa qualitativa desenvolvida com 15 profissionais de enfermagem entrevistados por meio de grupos focais online. O conteúdo foi analisado a partir da perspectiva da hermenêutica-dialética.

Resultados:

os trabalhadores relataram que a pandemia agravou uma histórica, crônica e precária condição de trabalho e saúde, marcada pelo aumento da sobrecarga laboral, falta de equipamentos de proteção individual e de recursos materiais para a assistência, escassez de profissionais e desvalorização da categoria, o que gerou uma percepção de desumanização no trabalho ao se sentiram como “máquinas” ou “números”. O sofrimento mental diante do risco de contaminação, da morte frequente de pacientes, colegas de trabalho e familiares, da falta de apoio da sociedade em relação às medidas protetivas e das cobranças crescentes por desempenho e produtividade geraram sintomas de ansiedade, depressão e estresse.

Conclusão:

a pandemia de COVID-19 intensificou a precarização do trabalho da enfermagem e o sofrimento mental dos profissionais, o que torna urgente a busca de melhorias nas condições de trabalho e de promoção da saúde, fundamentais à proteção e à dignidade dos trabalhadores.

Palavras-chave:
equipe de enfermagem; condições de trabalho; saúde mental; pandemias; saúde do trabalhador

Abstract

Objective:

to identify working conditions and their effects on nursing professionals’ health during the COVID-19 pandemic, based on the workers’ own perceptions.

Methods:

qualitative research carried out with 15 nursing professionals interviewed through online focus group. We analyzed the interviews content based on hermeneutics-dialectics.

Results:

nurses reported that the pandemic worsened their historic, chronic, and precarious working and health conditions, marked by increased workload, lack of personal protection equipment and material resources, shortage of professionals and devaluation of their jobs, generating a perceived dehumanization at work, with nurses feeling as “machines” and “numbers”. Mental suffering due to the risk of contamination, the frequent death of co-workers, patients, and family members, lack of societal support concerning protective measures, and the increasing demands for performance and productivity generates anxiety, depression, and stress.

Conclusion:

the COVID-19 pandemic enhanced nurses’ mental suffering and the precariousness of their work, urging the improvement of their working conditions and health promotion, essential for workers’ protection and dignity.

Keywords:
nursing, team; working conditions; mental health; pandemic; occupational health

Introdução

Entre os protagonistas das ações emergenciais diante do trágico cenário da pandemia de COVID-19, destacam-se os profissionais de enfermagem, objeto deste estudo. Enquanto milhões de pessoas ficaram em casa para minimizar a transmissão do novo coronavírus, “os profissionais de saúde se prepararam para fazer exatamente o oposto” (p. 922)11. Lancet. COVID-19: protecting health-care workers. Lancet. 2020;395(10228):922.. Experiências anteriores de surtos ou epidemias mostram que esses trabalhadores sempre estiveram na linha de frente dos atendimentos, expondo-se a riscos de adoecimento e morte em prol da população atendida22. Semple S, Cherrie JW. Covid-19: protecting worker health. Ann Work Expo Health. 2020;64(5):461-4..

Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), até o dia 31 de março de 2021, foram notificados no Brasil 40.696 casos e 699 óbitos de profissionais de enfermagem pela COVID-19, que correspondem a quase um quarto (23%) do total de mortes pela doença entre os trabalhadores da categoria em todo o mundo33. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Mortes de enfermeiros por covid voltam a subir e batem recorde em março [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 31 mar. 2021 [citado em 5 maio 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/mortes-de-enfermeiros-por-covid-voltam-a-subir-e-batem-recorde-em-marco_86149.html
http://www.cofen.gov.br/mortes-de-enferm...
. Esses números indicam que, em nível mundial, o Brasil é o país no qual mais morreram profissionais de enfermagem44. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Brasil é o país com mais mortes de enfermeiros por Covid-19 no mundo [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 25 maio 2020 [citado em 4 fev 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/brasil-e-o-pais-com-mais-mortes-de-enfermeiros-por-covid-19-no-mundo-dizem-entidades_80181.html
http://www.cofen.gov.br/brasil-e-o-pais-...
, evidenciando a grave situação de precarização do trabalho desses profissionais, apesar de seus esforços em prol do combate à pandemia de COVID-19.

Organizações nacionais e internacionais destacaram a necessidade de medidas específicas para garantir a segurança dos profissionais da área da saúde, incluindo a Enfermagem. Tais recomendações alertaram para a necessidade de: instruções e treinamentos às equipes; provisão de equipamentos de proteção individual (EPIs) em quantidade suficiente e sem ônus aos trabalhadores; oferta de tratamento ou da possibilidade de permanecer em casa quando doentes; apoio psicológico e acesso a recursos de saúde mental; e prioridade no acesso a vacinas contra a doença11. Lancet. COVID-19: protecting health-care workers. Lancet. 2020;395(10228):922.), (55. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) outbreak: rights, roles and responsibilities of health workers, including key considerations for occupational safety and health [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado em 5 mar 2021]. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-rights-roles-respon-hw-covid-19.pdf?sfvrsn=bcabd401_0
https://www.who.int/docs/default-source/...
), (66. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Recomendações gerais para organização dos serviços de saúde e preparo das equipes de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 2020 [citado em 20 out 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/cofen_covid-19_cartilha_v3-4.pdf
http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploa...
.

Entretanto, apesar de todas as recomendações existentes, a pandemia evidenciou o agravamento de uma crônica precarização do trabalho da enfermagem, já apontada em estudos anteriores ao contexto pandêmico77. Machado MH, Santos MR, Oliveira E, Wermelinger M, Vieira M, Lemos W, et al. Condições de trabalho da enfermagem. Enferm Foco. 2015;6(1/4):79-90.), (88. Carvalho DP, Rocha LP, Barlem JGT, Dias JS, Schallenberger CD. Cargas de trabalho e a saúde do trabalhador de enfermagem: revisão integrativa. Cogitare Enferm. 2017;22(1):1-11.. Tais pesquisas indicaram um histórico profissional marcado pela falta de respeito e cordialidade entre gestores, equipes e população atendida, discriminação e violência laboral, ambientes de trabalho inseguros e estressantes, déficit de infraestrutura para exercício do trabalho, baixos salários, elevados níveis de desgaste físico e mental, acidentes de trabalho e afastamentos77. Machado MH, Santos MR, Oliveira E, Wermelinger M, Vieira M, Lemos W, et al. Condições de trabalho da enfermagem. Enferm Foco. 2015;6(1/4):79-90.), (88. Carvalho DP, Rocha LP, Barlem JGT, Dias JS, Schallenberger CD. Cargas de trabalho e a saúde do trabalhador de enfermagem: revisão integrativa. Cogitare Enferm. 2017;22(1):1-11..

Com a chegada do novo coronavírus, tais problemas se exacerbaram, culminando em aumento da jornada de trabalho, falta ou inadequação de EPIs, carência de recursos materiais e humanos, escassez de treinamento para desempenho do trabalho, medo diante dos riscos de contágio, incertezas sobre a evolução da doença, isolamento social, afastamento familiar, situações de violência, desvalorização do trabalho e dificuldades em lidar diariamente com a morte de pacientes99. Caram CS, Ramos FRS, Almeida NG, Brito MJM. Sofrimento moral em profissionais de saúde: retrato do ambiente de trabalho em tempos de COVID-19. Rev Bras Enferm. 2021;74(Supl 1):e20200653..

Esse panorama gerou sentimentos de impotência, angústia, medo e tristeza, até alarmantes prevalências de estresse, ansiedade, depressão e síndrome de esgotamento profissional entre profissionais de enfermagem99. Caram CS, Ramos FRS, Almeida NG, Brito MJM. Sofrimento moral em profissionais de saúde: retrato do ambiente de trabalho em tempos de COVID-19. Rev Bras Enferm. 2021;74(Supl 1):e20200653.), (1010. Dal'Bosco EB, Floriano LSM, Skupien SV, Arcaro G, Martins AR, Anselmo ACC. A saúde mental da enfermagem no enfrentamento da COVID-19 em um hospital universitário regional. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e20200434.. Além disso, mesmo após mais de um ano de pandemia, parte significativa desses profissionais ainda não havia sido vacinada, sobretudo em países de média e baixa renda, o que é inadmissível para um grupo altamente exposto ao adoecimento e morte pela COVID-191111. Conselho Federal de Enfermagem (BR). ICN solicita abordagem global para os programas de vacinação da Covid-19 [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 12 fev 2021 [citado em 20 mar 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/icn-solicita-abordagem-global-para-os-programas-de-vacinacao-da-covid-19_85505.html
http://www.cofen.gov.br/icn-solicita-abo...
.

Destacam-se as desigualdades sociais que marcam o trabalho da enfermagem no Brasil, afetado pela remuneração injusta, pelo sucateamento dos serviços de saúde e pelo desmantelamento dos sistemas de proteção dos trabalhadores1212. Soares CB, Peduzzi M, Costa MV. Os trabalhadores de enfermagem na pandemia Covid-19 e as desigualdades sociais. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03599.. Esses problemas são oriundos do crescimento de políticas econômicas neoliberais, intensificação das formas de exploração do trabalho e restrição de práticas coletivas dos trabalhadores1212. Soares CB, Peduzzi M, Costa MV. Os trabalhadores de enfermagem na pandemia Covid-19 e as desigualdades sociais. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03599.. Assim, com a chegada da pandemia e seus desdobramentos, que envolveram um agravamento de crises de ordem sanitária, econômica, social, laboral e humanitária1313. Antunes R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo; 2020., acredita-se que a categoria da enfermagem sofreu piora desse quadro.

Em face do exposto, este estudo teve como objetivo identificar as condições de trabalho e seus reflexos na saúde de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19, a partir das percepções dos próprios trabalhadores.

Métodos

Este é um estudo descritivo, exploratório e de abordagem qualitativa. Participaram 15 profissionais de enfermagem, sendo quatro enfermeiras e 11 técnicas(os) de enfermagem da rede hospitalar pública e/ou privada de uma cidade do interior do estado de São Paulo (incluindo-se serviços geridos por Organizações Sociais de Saúde - OSSs), em exercício profissional há no mínimo seis meses e atuantes durante a pandemia de COVID-19.

Para a seleção de participantes, foi utilizada a estratégia bola de neve, por meio da qual as pesquisadoras encontraram informantes iniciais que indicaram outros possíveis participantes, produzindo uma rede de contatos1414. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas. 2014;22(44):203-20.. Foi adotada uma amostragem por saturação teórica, processo no qual a busca de novos participantes é interrompida quando os dados obtidos se tornam redundantes ou repetitivos1515. Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Saturação teórica em pesquisa qualitativa: relato de experiência na entrevista com escolares. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):243-8..

A coleta de dados foi realizada entre os meses de junho e setembro de 2020. Foram desenvolvidos três grupos focais online1616. Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3a ed Porto Alegre: Artmed; 2009.), (1717. Abreu NR, Baldanza RF, Gondim SMG. Os grupos focais on-line: das reflexões conceituais à aplicação em ambiente virtual. Journal of Information System and Technology Management. 2009;6(1):5-24., com cinco profissionais de enfermagem em cada grupo, proporção delimitada a partir das recomendações da literatura científica acerca do número de participantes em grupos focais online1717. Abreu NR, Baldanza RF, Gondim SMG. Os grupos focais on-line: das reflexões conceituais à aplicação em ambiente virtual. Journal of Information System and Technology Management. 2009;6(1):5-24., do interesse maior pelo aprofundamento do assunto, escuta e troca entre os participantes, além da natureza do tema abordado, que fez emergir memórias de perdas e/ou sofrimento, alertando as autoras para o desenvolvimento de grupos menores e mais acolhedores.

Por meio da estratégia bola de neve, os cinco primeiros profissionais que aceitaram participar da pesquisa compuseram o primeiro grupo, e assim sucessivamente. Os participantes eram oriundos de diversos setores hospitalares, possibilitando a apreensão de diferentes contextos e experiências laborais da enfermagem na pandemia. A estratégia do grupo focal online foi selecionada considerando que a coleta de dados ocorreu no contexto da pandemia de COVID-19, que exigiu distanciamento social diante dos riscos de contaminação.

Os grupos focais online foram realizados em ambiente virtual privado por meio de um aplicativo de comunicação gratuito e acessível aos participantes, sob administração das pesquisadoras. Os grupos foram desenvolvidos de forma assíncrona, ou seja, os membros não necessitaram estar online ou conectados simultaneamente1616. Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3a ed Porto Alegre: Artmed; 2009.. Essa estratégia pode ser adotada quando os participantes têm diferentes horários disponíveis, situação comum entre os profissionais de enfermagem.

Os grupos focais online foram agendados por meio de ligação telefônica ou aplicativos de comunicação e foram conduzidos a partir de um roteiro semiestruturado elaborado pelas autoras, contendo sete questões norteadoras sobre as condições de trabalho da enfermagem e seus impactos sobre a saúde no contexto da pandemia de COVID-19, sendo elas: “1. O que significa ser profissional de enfermagem neste contexto da pandemia de COVID-19? 2. Qual experiência de trabalho mais te chocou/impactou na pandemia? 3. O seu trabalho na pandemia afetou a sua saúde física e/ou mental? De que forma? 4. Como estão suas relações de trabalho durante a pandemia? 5. Como tem sido sua vida fora do ambiente de trabalho durante a pandemia? 6. Quais estratégias deviam ser desenvolvidas para que trabalhadores da enfermagem tenham melhores condições de trabalho e saúde? 7. Você gostaria de compartilhar alguma outra experiência ou comentário?”. O referido roteiro foi construído com base na literatura científica e avaliado por três pesquisadoras especialistas na temática envolvida, resultando na versão final.

Uma pergunta por dia foi lançada para cada grupo. Ao final de sete dias, os grupos foram encerrados e apagados definitivamente, sob ciência e autorização dos participantes, com vistas à preservação do sigilo e da confidencialidade dos dados e dos sujeitos da pesquisa.

Para a análise de dados, adotou-se a perspectiva da hermenêutica-dialética segundo proposta operativa de Minayo1818. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. As etapas analíticas desenvolvidas foram: a) ordenação dos dados, com a transcrição dos relatos e leitura primária de todo o material, possibilitando um panorama horizontal dos achados; b) classificação dos dados, com leitura exaustiva e repetida dos textos - a chamada “leitura flutuante” -, visando apreender as estruturas de relevância e as ideias centrais transmitidas pelos profissionais de enfermagem. Posteriormente, foi efetuada a leitura transversal de cada grupo focal online, produzindo-se unidades de sentido, que por sua vez foram alocadas e agrupadas em temas ou categorias, em busca da construção de um sistema de análise; c) análise final ou síntese interpretativa, cujo objetivo foi articular categorias analíticas e categorias empíricas.

A pesquisa seguiu as recomendações da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, CAAE nº 82365417.9.0000.5154, Parecer nº 2.543.320. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na descrição dos resultados, visando à preservação do anonimato, foram utilizados os seguintes códigos: G para grupo, P para participante, ENF para enfermeira(o) e TE para técnica(o) de enfermagem.

Resultados

A partir da pergunta de investigação “quais são as condições de trabalho e seus reflexos na saúde de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19, a partir das percepções dos próprios trabalhadores?”, emergiram duas categorias temáticas, a saber: “Somos humanos, e não máquinas”: desumanização do trabalho da enfermagem; COVID-19 e a pandemia de sofrimento mental na enfermagem.

“Somos humanos, e não máquinas”: desumanização do trabalho da enfermagem

A pandemia de COVID-19 exacerbou uma histórica, crônica e precária condição de trabalho dos profissionais de enfermagem no Brasil. Segundo os entrevistados, houve aumento da demanda e da sobrecarga laboral, prejuízos nos horários de alimentação e descanso e diminuição do quadro de funcionários. Para eles, essas situações decorreram da falta de investimento em recursos humanos e dos afastamentos dos trabalhadores com suspeita ou contaminados pela doença. Em paralelo, o aumento da pressão por produtividade e a baixa adesão da população às medidas preventivas intensificaram a sobrecarga física e emocional.

[...] extensas jornadas, falta de lugar minimamente adequado para descanso e, principalmente, a sobrecarga de trabalho. (G3, P1, TE)

Acabo não tendo muito tempo para fazer as refeições, café da manhã e almoço; sempre muito corrido, o que acaba diminuindo minha resistência. (G1, P1, ENF)

Piorou sim [as condições de trabalho]. A demanda aumentou e o quadro de funcionários diminuiu. Muitos estão afastados e temos que dar conta do plantão sobrecarregado. (G1, P2, TE).

Estamos com três setores de COVID e mais a UTI [Unidade de Terapia Intensiva], que atende mais leitos, e todos cheios. A maioria dos funcionários afastados. (G2, P3, ENF).

A instituição cobra qualidade, porém, não investe em quadro suficiente de funcionários para conseguir lidar com a demanda. Antes da pandemia já estávamos lidando, onde trabalho, com quadro de funcionários insuficientes. (G2, P1, TE)

Sofremos pressão o tempo todo [...]. Além do trabalho ser difícil, só ver desgraças e tristezas, quando saio do hospital vejo pessoas que não ligam para isso, é muito desanimador. Está todo mundo cansado, porque você faz, faz, faz, sai lá fora e vê que tá todo mundo nem aí. (G1, P3, TE)

Os entrevistados também relataram insatisfação com as exigências institucionais, como transferências repentinas de setor de atuação sem treinamento prévio e adiamento do período de férias para suprirem a escassez de profissionais. Segundo os trabalhadores, essa situação gerou elevado desgaste emocional nas equipes e medo de perder o emprego em caso de descumprimento das solicitações.

[...] tive que mudar de setor, me adaptar em pouco tempo, sem ter treinamento correto. (G1, P4, TE)

Ter que assumir mais pacientes, ir para setores que você não conhece a rotina, e as chances de erro aumentam, sem contar o medo de perder o emprego caso se negar a alguma ordem. (G1, P2, TE)

Os profissionais estão exaustos, há dois anos sem férias, cansados fisicamente e mentalmente, com muito medo. Sinto que estamos sozinhos. Sem ninguém para nos proteger, nos ajudar. (G1, P3, TE)

Muitos funcionários estão sendo remanejados à revelia e obrigados a trabalhar em UTI sob pressão […]. Estamos cansados, sobrecarregados, preocupados e com férias canceladas pelos próximos meses. A gente nem precisa descansar, né? (G2, P1, TE)

Os trabalhadores entrevistados também relataram que, com a pandemia de COVID-19, houve maior escassez de EPIs e de outros recursos materiais e organizacionais importantes para a assistência aos pacientes e para a segurança dos próprios profissionais.

[...] dependendo do setor temos falta de EPIs adequados e exposição. (G1, P4, TE)

A sobrecarga física se dá pela falta de funcionários e falta de materiais e equipamentos. (G3, P2, ENF)

Estamos sem insumos, não temos mais instrumentos de trabalho, como seringas, agulhas, medicações. (G1, P3, TE)

Impactos físicos por ter que trabalhar com situações extremas, como pacientes obesos, e não ter no hospital passantes, guinchos e ferramentas em geral necessárias para nossa saúde física. Um exemplo simples são os lençóis não terem elásticos. (G1, P2, TE)

Diante dessas condições, os profissionais de enfermagem destacaram a desvalorização de seu trabalho, sentindo-se como máquinas ou números, sem sentimentos, sem limites e sem humanização. Uma das entrevistadas relatou que a desumanização se refletiu em processo de naturalização ou aceitação do sofrimento no trabalho por parte dos próprios trabalhadores. Por outro lado, uma das profissionais entrevistadas se questionou sobre a profissão escolhida, sobretudo ao relacionar a sobrecarga laboral com os baixos salários.

Trabalho em duas empresas diferentes, sendo que uma delas é bem humanizada, te respeita como funcionário e não como um número. Já na segunda empresa eles te enxergam como um número. (G1, P3, TE)

Somos humanos, e não máquinas. É difícil não se lembrar dos problemas mesmo trabalhando. (G1, P2, TE)

Acham que somos uma máquina; muitas vezes alguns setores não têm trabalho em equipe, chefe não ajuda, é complicado. (G2, P3, ENF)

Nem temos ao menos um salário digno ou sequer um aumento de insalubridade! (G2, P5, TE)

Se tivéssemos um salário digno que não precisássemos de dupla jornada, teríamos mais tempo para nós mesmos e nossa família. (G2, P2, TE)

Somente um número funcional. E se fala tanto em humanização na enfermagem, mas não há o mínimo de respeito com a classe. […] O pior é que a maioria das pessoas não enxerga o sofrimento, como já ouvi inúmeras vezes; eles estão acostumados a isso. Como se não tivéssemos sentimentos, nem limites. […] Tem hora que nem sei por que continuo na área… O salário nem compensa. (G2, P1, TE)

COVID-19 e a pandemia de sofrimento mental na enfermagem

O trabalho de enfermagem no contexto pandêmico intensificou o sofrimento mental, como relataram todos os entrevistados. Os profissionais destacaram o medo de contaminação e de transmissão da doença aos familiares, a necessidade de isolamento social e as incertezas diante de uma nova doença.

[...] impacto psicológico diante de doenças sem prognósticos, as forças de transmissão… Insegura de trabalhar e além de contrair a doença ainda transmitir a familiares. (G1, P2, TE)

[...] Eu sinto medo, um pequeno desespero em relação à minha família. Acho que essa incerteza que todo mundo tem, sobre como cada um vai reagir ao vírus, se vai ser grave ou leve… Não estou assistindo mais televisão (jornais), a vontade é de não ver nada. (G1, P1, ENF)

A minha saúde mental com certeza está abalada. A incerteza quanto a uma possível contaminação, o medo de contaminar minha família; o medo de como vou reagir em caso de contaminação […]. (G3, P1, TE)

O sentimento de medo, insegurança, me levaram a ter sintomas de ansiedade. Com o isolamento social isso foi potencializado [...]. (G3, P2, ENF)

A parte que afeta mentalmente é o medo. Medo de passar para alguém da família, o afastamento social de não poder ver sua família! (G2, P4, TE)

Segundo os entrevistados, o sofrimento mental se manifestou por meio de sintomas de ansiedade, depressão e estresse, que também geraram alterações físicas e prejuízos à qualidade de vida, sobretudo entre aqueles que já enfrentavam algum adoecimento emocional antes da pandemia. Também houve relatos de casos de colegas que precisaram de serviços de suporte psicológico e/ou psiquiátrico, bem como do uso de medicamentos para lidar com a sobrecarga psíquica durante a pandemia.

[...] a pandemia fez com que eu parasse, pensasse e sentisse muita tensão emocional e estresse […]. (G3, P3, TE)

A ansiedade causa insônia, polifagia ou inapetência, bem como taquicardia devido à tensão e excesso de estresse. (G1, P3, TE)

Eu sofro de transtorno de ansiedade e transtorno obsessivo compulsivo! E com essas situações de estresse meu conflito aumenta, refletindo totalmente na minha qualidade de vida: sono, alimentação, compulsão etc. (G1, P5, ENF)

[…] Até temos agora psicólogo para poder acompanhar quem se sente mal. (G2, P5, TE).

Cada um que se afasta por depressão, COVID ou é transferido, gera uma sobrecarga emocional muito grande em toda a equipe […]. Sofremos com a dor dos colegas… Onde trabalho muitos estão deprimidos. Mais da metade já faz acompanhamento com psiquiatra e está utilizando medicação. (G2, P1, TE)

O sofrimento emocional diante da morte de pacientes, amigos, familiares e colegas de trabalho por COVID-19 também foi destacado. Os trabalhadores relataram dificuldades de controle emocional, sentimentos de impotência e busca da espiritualidade para lidar com o luto.

[...] afeta sim, pois é muita cobrança, trabalho dobrado, e muitas mortes, não tem psicológico que aguente. (G2, P3, ENF)

Afeta às vezes o psicológico, ver pessoas em estados onde não há muito o que fazer. Quase todos os dias têm algum óbito, muitas pessoas saíram de lá por depressão. (G2, P5, TE)

Infelizmente eu sou um profissional que não consegue não se envolver emocionalmente e isso em tempos de pandemia me traz uma sobrecarga emocional muito grande. (G3, P1, TE)

Fiquei abalada, desanimada, principalmente depois de perder uma pessoa muito querida [choro]. Hoje estou mais em paz, pois me apego muito a Deus; se não fosse ele, não sei como estaria hoje. (G3, P4, TE)

Perdi minha amiga, com 32 anos. Ela tinha obesidade e acabou pegando COVID-19 no próprio serviço. O que eu sinto é inexplicável, parece uma impotência. Trabalhar é todo dia um encontro com a morte [...]. (G1, P3, TE)

Por fim, mudanças urgentes para a enfermagem foram reivindicadas, entre as quais a necessidade de educação permanente, o fornecimento adequado de equipamentos de proteção, o apoio psicológico gratuito, a melhora da comunicação em equipe, a redução da jornada de trabalho, o aumento salarial, a vacinação para todos e, principalmente, uma maior valorização concreta do trabalho da enfermagem.

Enquanto não houver valorização profissional e um piso salarial decente, a enfermagem vai ficando desse jeito, porque sem qualidade de vida todos adoecem. (G2, P1, TE)

[…] Na maioria das vezes não somos reconhecidos, mesmo com todos os esforços. Muitas vezes não conseguimos alcançar nossos objetivos financeiros e nos vemos presos a essa roda viciosa de excesso de trabalho, cansaço, falta de reconhecimento e frustração econômica. (G3, P1, TE)

Acho que melhora muito quando se tem uma capacitação adequada e educação continuada! Além de fornecer todos os EPIs necessários, acho que seria muito válido se atentar à parte psicológica, oferecendo atendimento em grupo ou individual com profissionais psicólogos e psicoterapeutas. (G1, P5, ENF)

É muito importante a entrega dos EPIs na forma e tempo corretos. […] Se houvesse uma forma de comunicação de toda equipe, incluindo coordenação, seria ideal. (G1, P2, TE)

Deveríamos ter uma redução nas horas trabalhadas,tempos nos são negadas as 30 horas. (G1, P4, TE)

Agora o que eu mais desejo é que a vacina chegue para todas as pessoas e logo. Não vejo outra solução, já que diminui a chance de virar um caso grave. (G1, P3, TE)

A enfermagem nunca foi valorizada e mesmo agora com a COVID (que realmente precisam da gente) não vai mudar. Piorou a situação: falta de apoio psicológico, estresse, juntando com o baixo salário. A única coisa boa é poder ajudar alguém, mas até onde isso te afeta? Com a COVID-19 você tem risco de se contaminar, de contaminar sua família, de morrer. É muito pesado. (G1, P1, ENF)

Discussão

Os profissionais de enfermagem entrevistados relataram o agravamento de um processo de trabalho cronicamente marcado pela sobrecarga laboral, pela falta ou inadequação de recursos humanos e materiais e pela injusta desvalorização da categoria, apesar de seus esforços durante a pandemia de COVID-19. O sofrimento mental destacou-se diante do risco de contaminação, da morte frequente de pacientes, colegas de trabalho e familiares e, em paralelo, das cobranças crescentes por desempenho e produtividade, que geraram ansiedade, depressão e estresse, alterações na saúde física e prejuízos à qualidade de vida no trabalho.

Segundo Oliveira1919. Oliveira AC. Desafios da enfermagem frente ao enfrentamento da pandemia da COVID19. REME Rev Min Enferm. 2020;24:e-1302., a chegada da pandemia transformou de maneira súbita a rotina dos serviços de saúde brasileiros, intensificando a lotação das UTIs, o aumento do perfil de pacientes graves, a escassez de profissionais, as quantidades inadequadas de EPIs e, sobretudo, o desrespeito aos limites humanos dos profissionais. Lesões por uso de máscaras durante longos períodos de trabalho, cujas imagens foram largamente difundidas nos meios midiáticos, tornaram-se símbolo do sofrimento diário dos profissionais de saúde1919. Oliveira AC. Desafios da enfermagem frente ao enfrentamento da pandemia da COVID19. REME Rev Min Enferm. 2020;24:e-1302..

Vedovato et al. (2020. Vedovato TG, Andrade CB, Santos DL, Bitencourt SM, Almeida LP, Sampaio JFS. Trabalhadores(as) da saúde e a COVID-19: condições de trabalho à deriva? Rev Bras Saude Ocup. 2021;46:e1. constataram denúncias de insuficiência de EPIs, trabalhadores na linha de frente considerados grupos de risco, medo constante de contaminação, impacto emocional diante das perdas, dificuldades de acesso a testes de COVID-19 e relatos de abandono do emprego. Abandonar a profissão tem se tornado um tema central em pesquisas sobre a categoria, em vista do sucateamento dos hospitais, da baixa remuneração, das duplas ou triplas jornadas de trabalho e da falta de reconhecimento profissional1919. Oliveira AC. Desafios da enfermagem frente ao enfrentamento da pandemia da COVID19. REME Rev Min Enferm. 2020;24:e-1302.), (2121. World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
https://www.who.int/publications/i/item/...
. Segundo dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), há no mundo uma escassez de aproximadamente 6 milhões de profissionais de enfermagem, informação preocupante diante da pandemia de COVID-19 e de sua urgência por recursos humanos em saúde2121. World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
https://www.who.int/publications/i/item/...
.

O Cofen2222. Conselho Federal de Enfermagem. A difícil realidade dos enfermeiros diante à pandemia [Internet]. 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realidade-dos-enfermeiros-diante-a-pandemia_85957.html
http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realid...
, após um ano de pandemia, alertou para as dificuldades ainda enfrentadas pela enfermagem, incluindo exigências laborais sobre-humanas, aumento da ocupação de leitos, colapso dos serviços de saúde, abdicação de férias e descanso e distanciamento da família. Destaca-se que a enfermagem sempre trabalhou além de seus limites devido ao subdimensionamento de pessoal2222. Conselho Federal de Enfermagem. A difícil realidade dos enfermeiros diante à pandemia [Internet]. 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realidade-dos-enfermeiros-diante-a-pandemia_85957.html
http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realid...
. Esse quadro indica que, mesmo após um longo período de denúncias de sofrimento no trabalho, esses profissionais permanecem em situações laborais radicalmente precárias.

Os participantes desta pesquisa também ressaltaram a intensificação do sofrimento psíquico no contexto pandêmico. Um estudo de Li et al. (2323. Li S, Wang Y, Xue J, Zhao N, Zhu T. The impact of COVID-19 epidemic declaration on psychological consequences: a study on active weibo users. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(6):2032., realizado nos primeiros países asiáticos afetados pela pandemia, identificou um aumento das emoções ou estados negativos na população geral, enquanto as emoções positivas e a satisfação com a vida diminuíram devido às preocupações com a saúde individual e familiar. Portanto, se a saúde mental da população geral foi direta ou indiretamente afetada com a chegada da COVID-19, esse quadro revelou-se ainda mais crítico entre os profissionais de saúde.

Pesquisa de Lai et al. (2424. Lai J, Ma S, Wang Y, Cai Z, Hu J, Wei N, et al. Factors associated with mental health outcomes among health care workers exposed to coronavirus disease 2019. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e203976., realizada em 34 hospitais da China, constatou relatos de sintomas de depressão, ansiedade, insônia e angústia entre profissionais de saúde. Enfermeiras atuantes na linha de frente e trabalhadores de Wuhan, epicentro da doença, relataram graus mais severos em todas as medições de sintomas de saúde mental em comparação a outros profissionais de saúde, evidenciando o sofrimento das equipes de enfermagem em todo o mundo2424. Lai J, Ma S, Wang Y, Cai Z, Hu J, Wei N, et al. Factors associated with mental health outcomes among health care workers exposed to coronavirus disease 2019. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e203976..

Entre os fatores que geraram sofrimento mental aos trabalhadores da enfermagem durante a pandemia de COVID-19, pesquisas destacam a alta demanda de atendimento, os turnos exaustivos, a insuficiência de EPIs, os conflitos interpessoais nas equipes, o risco contínuo de adoecer e contaminar familiares, bem como o isolamento social, que fragilizou as redes de apoio desses profissionais2525. Humerez DC, Ohl RIB, Silva MCN. Saúde mental dos profissionais de enfermagem do Brasil no contexto da pandemia COVID-19: ação do Conselho Federal de Enfermagem. Cogitare Enferm. 2020;25:e74115.)- (2727. Duarte MLC, Silva DG, Bagatini MMC. Enfermagem e saúde mental: uma reflexão em meio à pandemia de coronavírus. Rev Gauch Enferm. 2021;42(n esp):e20200140..

Sobre o contato frequente com a morte de pacientes, acentuado em decorrência da pandemia, De Paula et al. (2828. De Paula GS, Gomes AMT, França LCM, Anton Neto FR, Barbosa DJ. A enfermagem frente ao processo de morte e morrer: uma reflexão em tempos de Coronavírus. J Nurs Health. 2020;10(n esp):e20104018. destacaram que as mudanças cotidianas suscitadas pelo novo coronavírus, com aumento de óbitos nos hospitais e incertezas sobre a evolução da doença, somadas a uma restrita formação sobre a morte e o luto nos cursos técnicos e de graduação em enfermagem, geraram nos profissionais maior vulnerabilidade e sensação de fracasso profissional.

Como consequências à saúde mental, de forma similar aos resultados encontrados nesta pesquisa, estudos prévios evidenciaram que os trabalhadores da enfermagem no contexto da COVID-19 enfrentam sentimentos como medo, pesar, frustração, culpa, raiva, incerteza, desesperança, sofrimento moral e impotência, que se associaram a quadros de depressão, ansiedade, síndrome de burnout, alterações no apetite e no sono, sedentarismo, uso de drogas, necessidade de suporte psicológico e psiquiátrico e maior risco de desenvolvimento de transtornos mentais a médio e longo prazo2222. Conselho Federal de Enfermagem. A difícil realidade dos enfermeiros diante à pandemia [Internet]. 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realidade-dos-enfermeiros-diante-a-pandemia_85957.html
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), (2626. Ramos-Toescher AM, Tomaschewisk-Barlem JG, Barlem ELD, Castanheira JS, Toescher RL. Saúde mental de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19: recursos de apoio. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2020;24(n esp):e20200276..

Um sentimento de ambivalência também marcou o sofrimento mental no trabalho da enfermagem, pois os profissionais conviviam com homenagens e aplausos da população, ao mesmo tempo que vivenciavam frequentes situações de discriminação e violência2525. Humerez DC, Ohl RIB, Silva MCN. Saúde mental dos profissionais de enfermagem do Brasil no contexto da pandemia COVID-19: ação do Conselho Federal de Enfermagem. Cogitare Enferm. 2020;25:e74115.. Profissionais de enfermagem foram agredidos física e verbalmente por cumprirem protocolos de atendimento embasados em evidências científicas, por demoras no atendimento diante da saturação dos serviços ou por fragilidades estruturais dos aparelhos de saúde, que “são decorrentes de aspectos como subfinanciamento e problemas de gestão” (2929. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Coren-SP repudia violência cometida contra profissional de Enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 28 jan 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/coren-sp-repudia-violencia-cometida-contra-profissional-de-enfermagem_84947.html
http://www.cofen.gov.br/coren-sp-repudia...
.

A constante necessidade de desmistificar notícias falsas relativas à COVID-19 também foi motivo de exaustão emocional2626. Ramos-Toescher AM, Tomaschewisk-Barlem JG, Barlem ELD, Castanheira JS, Toescher RL. Saúde mental de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19: recursos de apoio. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2020;24(n esp):e20200276.. As denominadas fake news ou notícias falsas veiculadas por fontes não oficiais, permearam toda a pandemia e seguem incentivando a população a adotar tratamentos inadequados ou subestimar a doença, aumentando a transmissão do vírus3030. Carvalho KM, Silva CRDT, Felipe SGB, Gouveia MTO. A crença em saúde na adoção de medidas de prevenção e controle da COVID-19. Rev Bras Enferm. 2021;74(Supl 1):e20200576.. Destaca-se que tais discursos podem gerar danos aos profissionais de saúde, cujos índices de morbidade e mortalidade pela COVID-19 adquirida em ambiente de trabalho são irreparáveis3131. Silva FV. Enfermagem no combate à pandemia da COVID-19. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e2020sup2..

Logo, medidas de suporte à saúde mental dos profissionais de enfermagem devem ser promovidas, como a criação de locais para descanso e alimentação, a criação de canais de comunicação entre profissionais e suas famílias, além de visitas diárias de psicólogos ou recursos de atendimento online2222. Conselho Federal de Enfermagem. A difícil realidade dos enfermeiros diante à pandemia [Internet]. 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realidade-dos-enfermeiros-diante-a-pandemia_85957.html
http://www.cofen.gov.br/a-dificil-realid...
), (2929. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Coren-SP repudia violência cometida contra profissional de Enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 28 jan 2021 [citado em 21 abr 2021]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/coren-sp-repudia-violencia-cometida-contra-profissional-de-enfermagem_84947.html
http://www.cofen.gov.br/coren-sp-repudia...
), (3232. Chen Q, Liang M, Li Y, Guo J, Fei D, Wang L, et al. Mental health care for medical staff in China during the COVID-19 outbreak. Lancet Psychiatry. 2020;7(4):e15-6.. Ações de promoção da saúde mental no trabalho também devem considerar os determinantes do processo e da organização do trabalho, em detrimento da mera produção de protocolos individuais de biossegurança, que centralizam no trabalhador a responsabilidade pelos riscos3333. Jackson-Filho JM, Assunção AA, Algranti E, Garcia EG, Saito CA, Maeno M. A saúde do trabalhador e o enfrentamento da COVID-19. Rev Bras Saude Ocup. 2020;45:e14..

Como limitações deste estudo, destaca-se que a análise de dados não contemplou uma comparação entre profissionais da rede hospitalar pública e privada, incluindo instituições geridas por OSSs. Considera-se que essa comparação pode gerar análises robustas sobre as condições de trabalho e saúde de profissionais de enfermagem na pandemia, em especial no que se refere às distintas formas de precarização em diferentes contextos. Logo, futuras pesquisas sobre essa temática são urgentes.

Por fim, questiona-se: como profissionais de saúde adoecidos, desvalorizados e sem recursos cuidarão de uma população adoecida em meio a uma pandemia sem precedentes? Apesar dos limites metodológicos desta pesquisa, que não permitem extrapolar os resultados, é evidente que a humanização dos trabalhadores da enfermagem no Brasil é urgente. Um discurso uníssono vindo de diferentes contextos de trabalho reivindica: “somos humanos, e não máquinas”.

Considerações finais

Os profissionais de enfermagem revelaram que a pandemia intensificou um contexto de trabalho cronicamente marcado pela sobrecarga laboral, escassez de recursos humanos e materiais, falta de espaços para descanso e alimentação, falta de capacitação, transferências repentinas de setor, adiamento de férias, pressão por produtividade e desumanização do trabalho. Os participantes também destacaram o agravamento do sofrimento mental, permeado pelo medo de adoecer e morrer, de contaminar familiares e de lidar com perdas e incertezas diante de uma nova doença. Sintomas de ansiedade, depressão e estresse, piora de quadros prévios de adoecimento mental, uso de medicamentos e necessidade de atendimento psicológico e psiquiátrico também foram mencionados.

A baixa remuneração e a desvalorização da categoria foram relatadas como características marcantes da precarização do trabalho da enfermagem. Reitera-se que tais problemas são antigos na profissão e, mesmo diante da pandemia, não foram solucionados. Esses profissionais permanecem vistos como cuidadores a qualquer custo, comprometendo suas condições de saúde em favor da assistência à população.

Logo, medidas efetivas para a promoção da saúde e segurança dos profissionais de enfermagem são urgentes, incluindo a garantia de recursos adequados para proteção e assistência, salários dignos, aumento da contratação de profissionais, redução da jornada laboral, maiores investimentos no setor da Saúde e valorização do trabalho pelo Estado e pela sociedade.

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    As autoras informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2021
  • Revisado
    20 Out 2021
  • Aceito
    05 Nov 2021
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