ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

O cotidiano de um consultório durante os 3 primeiros meses da pandemia pelo SARS-CoV-2

The daily life of an office during the first 3 months of SARS CoV-2 pandemic

RESUMO

Atendimento no consultório durante o período da pandemia do SARS-CoV-2. Três meses aguardando pacientes. Envolvimento em ação solidária. Pacientes com menos doenças respiratórias.

Palavras-chave: Consultórios Médicos, Infecções por Coronavírus, Pandemias, Vírus da SARS.

ABSTRACT

Medical office regular consultations during SARS-CoV-2 pandemic. Three months waiting for patients to come. Involvement in solidarity action. Patients with less respiratory infections.

Keywords: Medical Office Buildings, Coronavirus Infections, Pandemics, SARS Virus.


Sempre no período da tarde das 13h-20h tenho como hábito “fazer consultório”, de segunda a sexta-feira. Continuei, sem faltar um dia sequer, vindo ao consultório neste período. As orientações seguidas à risca são: a) somente atender os pacientes de hora em hora para não se encontrarem na sala de espera; b) quem trabalha no consultório tem como obrigação estar paramentado com os equipamentos de proteção individual (EPIs). No meu caso, como otorrinopediatra, examinando orofaringe, além da máscara N95 é importante usar o protetor facial (face shield), capote de plástico com outro mais “amigável” e descartável por cima, além do gorro, propé e as luvas1,2,3. Como gosto de cores alegres o capote ou bata, colocados por cima do de plástico, são de cores rosa ou azul, combinando com os do propé e do gorro. Acho que este detalhe mais delicado e feminino torna mais alegre e agradável o exame. E as mães também comentam que gostam. Estou sendo assídua compradora virtual destes itens, por sites que entregam no consultório. A limpeza da sala onde ocorre o exame da criança, cadeira, piso, entre outros, é neurótica. Nem ao menos falo da sala de espera, pois o paciente já entra de fora, fala com a atendente e vai direto na sala do consultório onde estou esperando vestida como um ET ou astronauta.

Como eu não estou frequentando hospitais, por ter mais de 60 anos, concentrei-me no consultório. Tenho meu consultório há pelo menos 30 anos e sempre foi motivo de muita alegria e prazer trabalhar com os meus pacientes. Alguns, que atendi quando pequenos, já trazem seus filhos.

Nas primeiras duas semanas, entre final de março e começo de abril, com o consultório muito vazio e escutando sobre como os profissionais de saúde estavam trabalhando sem as proteções devidas, assisti a um vídeo caseiro sugestivo de como fazer face shields e pensei que poderia confeccioná-los aqui no consultório, para ocupar de modo construtivo o tempo ocioso do pessoal que aqui trabalha. Encomendamos as folhas de acetatos e as tiaras, e assim, confeccionamos durante alguns dias mais de 1.000 protetores faciais e levamos dentro de sacos de plásticos gigantes para doação aos Profissionais da Saúde do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo (Figuras 1, 2 e 3).


Figura 1. Fazendo as face shields.


Figura 2. Face shields prontos.


Figura 3. Doutora Tania Sih e doutor Robinson Koji Tsuji utilizando o face shields.



Também confeccionamos máscaras coloridas a partir de sacolas de TNT (tecido não tecido) que haviam sobrado de um Simpósio que ocorreu um pouco antes do início da quarentena. Estas máscaras foram levadas também ao HC para servir às mães que levavam suas crianças ao hospital ou para as que iriam fazer o pré-natal, etc., (Figuras 4 e 5). As pessoas que as receberam no hospital ficaram felizes, pois não havia nesta ocasião (ainda) máscaras comuns para doação à população geral.


Figura 4. As máscaras prontas.


Figura 5. Doutora Tania Sih apresentando uma das máscaras.



Estas iniciativas foram depois replicadas por uma corrente de mães de pacientes que, seguindo as orientações do vídeo, fizeram face shields e as distribuíram por Unidades Básicas de Saúde (UBS) em muitos bairros da periferia de São Paulo. Fui informada que passaram de 10 mil o número distribuído destes protetores.

Da metade de abril em diante, quando a ação da confecção das máscaras e protetores faciais já havia sido encerrada, mantive-me muito bem informada participando de um verdadeiro tsunami de lives por todas as plataformas, como Zoom, Webex, Google Meet, etc. Sempre fui muito assídua em Congressos e encontros científicos e a parte acadêmica é uma constante muito presente na minha vida, sob a forma de livros escritos e publicações de aulas. Mas acho que nunca, durante minha vida acadêmica, fui tão inundada de tantas informações. Cada dia vem uma novidade, uma publicação sobre detalhes desta nova doença. O que foi verdade ontem pode não ser amanhã.

O celular e o WhatsApp nunca foram usados de forma tão intensa como durante este tempo, pois as mães sempre querem informações ou consultas por telefone. Meu dedo indicador ficou calejado.

E os pacientes no consultório? Estes marcavam, porém muitos nem apareciam ou ligavam para desmarcar. E eu vestida como um astronauta a esperá-los. As sensações variavam de frustração, impotência, ansiedade, preocupação, angústia e até passividade.

Já há 3 meses vivo esta inconstância, pois além de tudo, quem mantinha o consultório era, na sua maioria, as crianças que frequentam creches ou escolinhas e pegam as doenças das vias aéreas, vindas de microrganismos que causam complicações nas cavidades (como ouvidos, região sinusal) e também garganta. Estas crianças têm ficado em casa, e, além disto, há temor dos pais em as trazer ao médico ou ao consultório, por receio e medo de encontrarem pessoas “contaminadas”. A poluição também diminuiu consideravelmente, o que fez as alergias (rinites) também não ficarem tão evidentes. Menos infecções respiratórias, menos alergias, menos consultas.

Além das provações no trabalho, pois tive de demitir uma funcionária e me adequar com as contingências financeiras de uma maneira como nunca antes havia experimentado. Entretanto, não posso reclamar, pois em nenhum dia estive na linha de frente nos hospitais atendendo pacientes com COVID-19 positivos, mas ao chegar em casa, outras atribuições domésticas permaneceram a todo vapor.

Aguardamos o final desta pandemia, pois precisamos voltar à normalidade com ponderação científica, com o espírito de construção coletiva, da solidariedade e da aplicação colaborativa, ou seja, com uma injeção de bom senso e racionalidade, em um momento em que o caos e o colapso rondam nossas vidas.


REFERÊNCIAS

1. van der Poel N, Mansbach AL, London N, Russell J, Vanderveken OM, Boudewyns A. Challenges in Pediatric Otolaryngology in the COVID-19 pandemic: insights from current protocols and management strategies. B-ENT. 2020 May 05; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.5152/B-ENT2020.20130

2. Leboulanger N, Sagardoy T, Akkari M, Ayari-Khalfallah S, Celerier C, Fayoux P, et al. COVID-19 and ENT Pediatric otolaryngology during the COVID-19 pandemic. Guidelines of the French Association of Pediatric Otorhinolaryngology (AFOP) and French Society of Otorhinolaryngology (SFORL). Eur Ann Otorhinolaryngol Head Neck Dis. 2020 May;137(3):177-81.

3. Lu D, Wang H, Yu R, Yang H, Zhao Y. Integrated infection control strategy to minimize nosocomial infection of coronavirus disease 2019among ENT healthcare workers. J Hosp Infect. 2020 Apr;104(4):454-5.










Faculdade de Medicina da USP, Laboratório de Investigações Médica LIM 40 - São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência:
Tania Maria Sih
Faculdade de Medicina da USP - FMUSP
Av. Dr. Arnaldo, nº 455, Cerqueira César
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 01246-903
E-mail: tsih@amcham.com.br

Data de Submissão: 16/06/2020
Data de Aprovação: 17/06/2020