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Entre o vestir e o proteger: os circuitos da economia urbana na indústria de confecção em tempos de pandemia de Covid-19, em Fortaleza-Ceará

Entre vestir y proteger: los circuitos de la economía urbana en la industria de la ropa en Covid-19 pandemia times en Fortaleza-Ceará
Between dressing and protecting: the circuits of the urban economy in the clothing industry in Covid-19 pandemic times in Fortaleza-Ceará
Entre pansement et protection: les circuits de l´economie urbaine dans l´industrie du vêtement en temps de pandémie Covid-19 à Fortaleza-Ceará.
Marlon Cavalcante Santos, José Borzacchiello da Silva e Eciane Soares da Silva Bezerra

Resumos

A presente pesquisa é resultado de estudos sobre os circuitos da economia urbana, circuito superior e inferior, na indústria de confecção em Fortaleza-Ceará. Como ramo importante na capital cearense, a indústria de confecção, localizada principalmente na periferia, tem um expressivo número de trabalhadores, principalmente do gênero feminino, tendo local de trabalho suas residências. Analisam-se as modificações que ocorreram neste ramo industrial com a pandemia de Covid-19 e as ações do Estado, principalmente a nível municipal para garantir renda mínima e produção de máscaras para a população local, utilizando para tanto o maquinário e a indústria de confecções instituída em Fortaleza. Como metodologia foi utilizada bibliografia referente à temática, análises de dados secundários, seguindo da produção do presente artigo.

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Introdução

1A indústria de confecção em Fortaleza é responsável por uma produção significativa de vestimentas, tanto para o mercado local, regional e até o internacional. Esse ramo produtivo está espalhado por todo o município da capital cearense, principalmente nos bairros periféricos com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).

  • 1 A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que va (...)
  • 2 Equipamentos de uso individual.

2Peças do vestuário como: camisas, bermudas, calças, entre outras são as principais mercadorias da produção da indústria de confecção. No novo contexto de pandemia de Coronavírus, na qual tem como uma das consequências a Covid-191, a indústria de confecção, predominantemente inserida no circuito inferior da economia, é procurada por seguimentos do Estado, entre outras instituições públicas e privadas, as mesmas inseridas no circuito superior para a produção de máscaras em busca da contenção da transmissão da Covid-19 vista à falta de 2EPI’s.

3Para o entendimento dos circuitos da economia urbana é necessário saber que foram concebidos e propostos pelo professor Milton Santos, nos anos 1970. Para (Santos, 2008, [1979]), sistema urbano se constitui por dois subsistemas, o circuito superior e o circuito inferior, o autor afirma:

O circuito superior originou-se diretamente da modernização tecnológica e seus elementos mais representativos hoje são os monopólios. O essencial de suas relações ocorre fora da cidade e da região que os abrigam e tem por cenário o país ou o exterior. O circuito inferior, formado de atividades de pequena dimensão e interessando principalmente as populações pobres, é, ao contrário, bem enraizado e mantém relações privilegiadas com sua região (SANTOS, 2008, p. 22, [1979]).

4Em um primeiro momento, a definição dos circuitos e suas relações de abrangência foram sugeridas dessa forma, no entanto foram modificando-se com alterações das novas condições técnicas, econômicas e sociais da contemporaneidade, resultando em novas relações entre os circuitos e a escala de abrangência, nos ramos de produção e nas conjunturas espaciais urbanas.

5Assim sendo, os circuitos da economia urbana superior e inferior faz-se necessário para o entendimento da estruturação e dinâmica da indústria de confecção em Fortaleza-Ceará.

6O circuito superior seria o resultado direto da modernização capitalista, sendo ele responsável pelo gerenciamento de capital, financiamento, articulações com governos e instituições financeiras; lucro por montante de mercadorias vendidas, entre outras características do circuito.

7Já o circuito inferior está relacionado à pequena atividade de sobrevivência de uma população pobre, que muitas vezes parece estar à margem do processo de inserção total do capital chamado “regular”, que vive de pequenos bicos, produz e/ou comercializa para a sobrevivência e obtém lucro por peças vendidas, a principal fonte de renda.

8Diante do exposto, será feito uma análise sobre as novas dinâmicas produtivas da indústria de confecção, dentro do circuito inferior da economia, na qual foi “solicitada” para a produção de máscaras pelo circuito superior, no enfrentamento da proliferação da infecção de Coronavírus, no espaço urbano de Fortaleza. Evidencia-se, desse modo, a relação entre os dois circuitos da economia.

  • 3 Há um terceiro circuito chamado de circuito superior marginal, o qual representa o topo do circuito (...)

9Os dois circuitos são resultados da modernização, no circuito superior o resultado é direto, já o inferior apresenta-se de forma indireta. A existência dos mesmos se dá pela interação e articulação travada nos ramos econômicos e no espaço urbano, havendo uma relação constante de “solicitação” entre os dois circuitos para a existência de um espaço urbano em países subdesenvolvidos. (SANTOS, 2008, [1979]), (SILVEIRA, 2009) afirmam que o espaço urbano em países subdesenvolvidos é construído pela interação entre os dois circuitos3.

  • 4 O Integra SUS são publicações diárias feitas pela Secretaria de Saúde do estado do Ceará SESA com i (...)

10Como procedimentos metodológicos foi feita pesquisa bibliográfica sobre a temática (teoria espacial dos circuitos da economia urbana, dados referentes a infecções de Covid-19, localização de casos dado doença, entre outros), análises em documentos fornecidos pela Prefeitura de Fortaleza, produções acadêmicas do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Observatório das Metrópoles- Núcleo Fortaleza, publicações em jornais locais e em mídias sociais (reportagens e notícias), boletins epidemiológicos do IntegraSUS4-SESA-Ceará entre outras instituição.

11A publicação de dados e alguns mapas foram feitos baseados em documentos produzidos pela Secretaria de Saúde do respectivo município, tratando-se de dados secundários sobre a saúde.

INDÚSTRIA DE CONFECÇÕES EM FORTALEZA

  • 5 Publicação feita pelo Instituto Evaldo Lodi (IEL), pelo Sebrae-CE e pelo Sindicato das Indústrias d (...)

12A indústria de confecção é um ramo significativo no município de Fortaleza, o Censo das Confecções (2008)5 afirma que existem 2.782 unidades produtivas no Ceará, das quais 1.962 concentram-se em Fortaleza. Essa informação foi baseada em dados da Secretaria da Fazenda do Ceará (Sefaz-CE) de 2007 e do banco de dados do Sistema Integrado da Arrecadação (Siga).

13A concentração confeccionista em Fortaleza é significativa para o Ceará, pois enquanto outras cidades do estado têm um percentual de 29,48% das unidades produtivas confeccionistas, 70,52% das confecções estão concentradas na capital, e se forem levadas em consideração outras cidades da RMF, como Caucaia, Maracanaú, Maranguape e Pacatuba, esse percentual aumenta consideravelmente.

14Diante disso, evidencia-se a predominância do percentual desse tipo de indústria na capital cearense. No mapa 1, mostra-se a localização das indústrias de confecções no município de Fortaleza.

Mapa 1-Mapa de localização da indústria de confecção e centros comerciais em Fortaleza- Ceará.

Mapa 1-Mapa de localização da indústria de confecção e centros comerciais em Fortaleza- Ceará.

Fonte: Os autores (2021).

  • 6 Divisão administrativa do município de Fortaleza – Regionais 1,2,3,4,5,6 e a Regional do Centro.

15Observando o mapa 1, constata-se que a indústria de confecção em Fortaleza espalha-se por todo o município, com uma maior frequência nas áreas sudoeste e noroeste da capital. As áreas compreendidas pelas Regionais6 I e V, bairros como Barra do Ceará, Goiabeiras, Quintino Cunha, na Regional I; e em bairros como Parque Santa Rosa, Canidezinho, Bom Jardim e outros bairros pertencentes a Regional V.

16Na regional IV, verifica-se uma concentração significativa dessa indústria nos bairros Montese, Parreão, Damas e Serrinha, muitas indústrias ligadas ao comércio de loja de fábrica da Avenida João Pessoa.

17Portanto há uma concentração de confecções na área oeste, contrastando com a leste, a última ocupada por um segmento populacional de renda mais elevada. Já ao oeste, evidencia-se pela presença significativa de uma população de baixa renda, pois tem concentração “em sua maioria pela massa trabalhadora” (SILVA, 1992, p, 44). Verificando-se condições de infraestrutura deficientes em relação à área leste e uma mão de obra disponível para a ocupação no circuito inferior da economia, pois esse circuito não exige mão de obra com grande qualificação (SANTOS, 2008, [1979]).

18Sabendo que Fortaleza é uma cidade que tem uma produção significativa na indústria de vestimenta, tanto para o Ceará quanto para outros estados do Nordeste e do Brasil, com a pandemia acometida pelo novo Coronavírus, muitos setores da economia perderam sua capacidade de venda, devido aos decretos de quarentena instituídos pelo Governo do Estado do Ceará e a Prefeitura de Fortaleza, decretos esses com o objetivo de diminuir os números de infecções e um possível estrangulamento do sistema de saúde por demanda de leitos de enfermarias e leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), já que Fortaleza após São Paulo e Rio de Janeiro é uma das capitais com mais registro de infecções e mortes pela infecção respiratória.

19Em face dessa situação de pandemia de Covid-19, o Estado a nível municipal e estadual lançou diversos incentivos para o aproveitamento do maquinário e da indústria de confecção instituída em Fortaleza.

  • 7 A indústria de confecção, no caso, recebe a substantivação de “Indústria Camuflada”, pois sua ident (...)

20Direcionou-se a produção da vestimenta para as máscaras, a indústria de confecção domiciliar dispõe de equipamentos e insumos (tecidos, linhas, aviamentos, elásticos, entre outros) necessários à produção confeccionista existente nas fábricas. Essa fabricação foi incentivada por créditos financeiros para os produtores domiciliares de confecção, já que em torno de 80% das fábricas de confecção estão na casa do trabalhador (CAVALCANTE SANTOS, 2014, 2017), construindo um fenômeno no espaço urbano na qual (LENCIONI, 1996) denomina de Fábrica Camuflada7, pois as fábricas de confecção estão majoritariamente dentro da casa do trabalhador.

21Em pesquisas anteriores (CAVALCANTE SANTOS, 2014, 2017) afirma que a indústria de confecção em Fortaleza está no circuito inferior da economia urbana, tal afirmação é reflexo da teoria de (SANTOS, 2008, [1979]) dos circuitos da economia urbana.

22Para esses autores, o circuito inferior é aquele que funciona dentro do pouco apurado em montante, a busca pela venda diária, a pequena atividade produtiva, a organização familiar para produção em busca da sobrevivência, estando essa indústria de confecção invisível no espaço urbano de Fortaleza (CAVALCANTE SANTOS, 20014).

23Como teorizado por (SANTOS, 2008, [1979]) os dois circuitos não existem de forma independentes - um precisa do outro para existir - só existe circuito superior, porque existe circuito inferior. Os dois circuitos estão imbricados um no outro. Retoma-se aqui a afirmação de (SANTOS, 2008, [1979]) de que eles são complementares e não duais, são concorrentes, mas ao mesmo tempo são interdependentes, e constroem um complexo no espaço urbano, estando inserida a indústria de confecção em Fortaleza-Ceará.

24Dentro dos circuitos da economia urbana proposto pelo professor (SANTOS, 2008, [1979]) insere-se o universo produtivo confeccionista. Geralmente, o gerenciamento, a pesquisa, o setor financeiro fica dentro da firma, ou seja, na chamada marca, que não necessariamente tem produção, pois a produção é terceirizada para a facção (CAVALCANTE SANTOS, 2014, 2017).

25Diante do exposto, Fortaleza tem uma indústria de confecção significativa inserida dentro do circuito inferior da economia urbana, sendo a mesma bem articulada com o circuito superior, pois entre produção, gerenciamento, circulação há uma conexão intensa e dependente. No entanto, com etapas definidas, resultando na presença intensa do circuito inferior na indústria de confecção, na casa do trabalhador, ou em alguns pequenos galpões produtivos e a venda centrada no circuito superior em shoppings como Maraponga Mart Moda, Centro Feshion entre outros estabelecimentos (SILVA, 2018).

QUANDO O VESTIR SE TORNA PROTEÇÃO

26No Ceará, o município de Fortaleza foi o centro dispersor dos casos de contaminação pela Covid-19. No mês de março, Fortaleza já apresentava os primeiros casos de Covid-19 no Ceará. No princípio, localizado em bairros de classe média alta e com alto IDH, como Meireles, Aldeota, Dionísio Torres, Luciano Cavalcante entre outros. No decorrer das semanas seguintes e no mês de maio, o processo de contaminação se espalha pelo território do município, chegando a praticamente todos os bairros da cidade.

27Em maio, Fortaleza vive o pico da pandemia, com UPA’s (Unidade de Pronto Atendimento) lotadas, hospitais de referência como: Hospital São José, Hospital do Coração de Messejana, IJF (Instituto José Frota), Frotinhas, HGF (Hospital Geral de Fortaleza) e hospitais particulares com taxas de praticamente cem por cento de UTI’s (Unidade de Terapia Intensiva) e enfermarias ocupadas. No gráfico 1, produzido pela Prefeitura de Fortaleza observa-se a evolução da pandemia em Fortaleza.

Fonte: Integra SUS/ Indicadores/SESA- COVID-19- Atualizado em 12 de junho de 2020, às 09:30 h.

Gráfico 1-Covid-19: Série temporal de casos confirmados e número de exames em análise (RT-PCR para SARS-CoV-2) no LACEN/CE e laboratórios privados. Fortaleza, 2020.
  • 8 Decreto nº 33.519 , de 19 de março de 2020, Decreto nº 33.521 , de 21 de março de 2020 do Governo d (...)
  • 9 Isolamento social rígido como comércio, fábricas, instituições públicas e privadas fechadas na busc (...)

28Pelo gráfico 1 elaborado pela SMS (Secretaria Municipal de Saúde/PMF) observa-se que a doença começa no início de março com evolução gradual nos meses de abril e chegando a um alto nível de contágio no mês de maio, fazendo o poder público, Governo do Estado do Ceará e Prefeitura de Fortaleza (PMF) suspender atividades econômicas e serviços públicos na tentativa de diminuir os casos de dispersão da doença. Por meio de decretos8 estaduais e municipais é implantado o lockdown9 como uma das medidas para contenção da doença.

29Como mostrado no gráfico 1, a dispersão da Covid-19 se dar de uma forma rápida em questão de dias, praticamente do mês de março para abril o município já tem o pico de infecções. A primeira fase da doença, chamada de primeira onda, assola os bairros que tem mais infraestrutura e setores sociais com maior poder de renda. Evidencia-se na primeira fase da doença, bairros como Meireles e Aldeota como os locais dispersores da Covid-19 para outros bairros da cidade.

  • 10 Equipamentos de Proteção Individual.

30Diante dessa condição há a pressão no sistema de saúde público e privado, existindo uma procura demasiada por insumos como máscaras, óculos de proteção, batas para a proteção contra o novo Coronavírus, fazendo que o próprio sistema público de saúde tenha dificuldade em comprar esses EPI’s10 e faltando os mesmos para serem encontrados em farmácias e em comércio de ramo especializado desses materiais.

31Em pesquisa realizada em jornais locais teve-se acesso a informações sobre o projeto denominado Todos com Máscara. Segundo reportagens, a PMF selecionou bairros com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para a implantação do projeto, fornecendo o insumo e pagamento para os profissionais de costura no valor de R$ 360,00 reais para os chamados trabalhadores autônomos e R$ 14.760 para microempresas, buscando a produção de 1,5 milhões de máscaras (CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2019).

32Muitos trabalhadores devido ao momento da pandemia diminuíram sua produção, ou pararam de produzir, sem esquecer que praticamente esses trabalhadores ganham por peças produzidas no fluxo normal do processo produtivo. Com a situação de calamidade, a renda foi prejudicada ou deixou de existir, assim esse projeto buscou manter a renda mínima desses trabalhadores.

33O poder público sabendo da capacidade que Fortaleza tem no segmento de confecção com maquinário instalado, mão de obra qualificada para a produção, construiu esse projeto como alternativa a garantir renda mínima e proteção a uma parte da população com distribuição de máscaras. Na figura 1, mostra-se produção de máscaras por uma costureira.

Figura 1-Costureira produzindo máscara na indústria de confecção.

Figura 1-Costureira produzindo máscara na indústria de confecção.

Fonte: Érika Fonseca, Câmara Municipal de Fortaleza (2020).

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36Importante ressaltar que a indústria de confecção em Fortaleza tem características importantes como: emprego de mão de obra feminina e a localização em bairros oeste da cidade, esses periféricos, estando as fábricas de confecção dentro da casa da trabalhadora(o)r.

37A mulher, geralmente, nesse ramo produtivo tem uma dupla função: fabricante e dona de casa, pois suas condições por muito tempo estiveram ligadas ao êxito da família, notadamente tendo o cuidado com marido e com filhos, assim como trabalhando com a costura. Essas trabalhadoras continuam tendo as mesmas obrigações com os maridos, filhos e as demais atividades domésticas, articulando-se entre o trabalho doméstico e a fábrica domiciliar de confecção, na qual a máquina de costura faz parte do imobiliário doméstico (SILVA, 1992).

38A mulher tem no trabalho doméstico uma das formas de ajudar no orçamento familiar. Ela fica em casa passando, lavando roupas, preparando alimentos, entre outras atividades cotidianas, enquanto o homem vai procurar trabalho fora de casa. As filhas mais novas, geralmente, ficam ajudando a mãe em casa, enquanto as mais velhas trabalham fora do ambiente doméstico.

39Muitas dessas mulheres são chefes de família, muitas vezes têm a função de prover diretamente o sustendo do núcleo familiar. (MACHADO DA SILVA, 1979). Analisando as condições de trabalho em domicílio, considera esse trabalho como atividades de lida com a casa e com trabalho feminino em domicílio remunerado. No caso, a costura é uma forma de a mulher encarar uma dupla jornada cotidiana.

40Além dos afazeres domésticos exercidos, ela atua em atividades complementares por meio da costura. A máquina de costura adentra o domicílio e “[...] ocupa espaço de destaque no imobiliário doméstico” (SILVA, 2008, p. 138), possibilitando uma atividade importante para a composição da renda familiar.

41Diante da articulação familiar presente para garantir o sustento diário e localização em bairros periféricos de Fortaleza, o poder estatal buscou alternativas para garantir renda e produção de máscaras de proteção para a população local, mostrando-se uma articulação entre os dois circuitos da economia urbana na capital cearense.

42Muitas vezes essa indústria não é vista na cidade, sendo a indústria invisível (CAVALCANTE SANTOS, 2014) e como ressaltado por (LENCIONI, 1996) dentro dos labirintos do urbano que a indústria de confecção está presente, fazendo da cidade o espaço em que a produção tem lugar privilegiado. A cidade é o espaço da produção, estando ela privilegiada no modo de produção capitalista.

43Dentro desse contexto, insere-se o projeto Todos de Máscara, o qual tem como pré-requisitos os bairros que apresentam baixo IDH. Localidades com baixo IDH, geralmente, tem pouca infraestrutura, grande parte da população vive de atividades no circuito inferior da economia, condições sanitárias insuficientes, especialmente o saneamento básico.

44Muitas vezes, a escassez de água, entre outros problemas, aumenta a possibilidade de contaminação e adoecimento, exemplo desses bairros são: Barra do Ceará, Jardim Iracema, Quintino Cunha, Bonsucesso, Parque Santa Rosa, Dom Lustosa, entre outros, todos localizados nas áreas oeste de Fortaleza.

45Os mapas 2 e 3 a seguir mostram, respectivamente, a distribuição de casos de Covid-19 e óbitos decorrentes da doença em bairros no município de Fortaleza.

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Mapa 2- COVID-19: Distribuição dos casos por bairro de residência dos pacientes, Fortaleza, 2020*.

Mapa 2- COVID-19: Distribuição dos casos por bairro de residência dos pacientes, Fortaleza, 2020*.

Fonte: Casos (Integra SUS - Indicadores/SESA - COVID-19 - Atualizado 12 de junho de 2020, às 09:30h

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48 O mapa 3 apresenta a densidade de óbitos por Covid-19 em Fortaleza.

Fonte: SMS Fortaleza - COVID-19 - Atualizado 12 de junho de 2020, às 11h.

Mapa 3-COVID-19: Densidade espacial dos óbitos acumulados. Fortaleza, 2020.

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51Na comparação entre os dois mapas 2 e 3, percebe-se que, de um modo geral, as maiores concentrações de óbitos no município de Fortaleza coincidem com os bairros de baixo IDH, onde também estão as indústrias de confecção. Expressiva parte dessa população tem muitas dificuldades para ter acesso a bens e serviços básicos para garantia da sobrevivência.

52Segundo o estudo da SMS da Prefeitura de Fortaleza, bairros como Barra do Ceará com 728 casos de contaminação e 107 óbitos; Vila Velha com 355 casos de contaminação e 89 óbitos; Cristo Redentor com 264 casos e 66 óbitos; Granja Lisboa 264 casos e 73 óbitos; entre outros bairros periféricos que concentram os números de óbitos.

  • 11 A tipologia inferior abriga a população que vive nas franjas da metrópole ou que ocupa ambientes de (...)

53Para Pequeno (2009) grande parte da população de Fortaleza estar inserida nas categorias socioespaciais de inferior11 e popular periférica. Essas categorias têm uma mão de obra predominantemente de cor preta, com baixo nível de escolaridade. Mesmo nessas tipologias, o gênero feminino tem pouco acesso aos empregos ofertados. Nos Gráficos 1 e 2 a seguir, faz um comparativo entre casos e óbitos de Covid-19 em alguns bairros de Fortaleza.

Gráfico 1: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com baixo IDH.

Gráfico 1: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com baixo IDH.

Fonte: Secretaria Municipal da Saúde- Prefeitura de Fortaleza (2020).

Gráfico 2: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com alto IDH.

Gráfico 2: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com alto IDH.

Fonte: Secretaria Municipal da Saúde- Prefeitura de Fortaleza (2020).

54Como se pode constatar, a maioria dos óbitos está centrada nos bairros pobres da cidade que coincide onde estão as fábricas de confecção domiciliar, no território municipal. São nessas áreas onde estão trabalhadores que têm rendimentos de até dois salários-mínimos mensais, assim como mão de obra doméstica, trabalhadores do comércio, catadores entre outras atividades presentes na cidade.

55Vê-se nos gráficos 1 e 2, comparando os bairros de baixo IDH da periferia de Fortaleza a bairros de classe média alta e de setores dirigentes, constata-se que há um maior número de casos de Covid-19, nos bairros privilegiados. No entanto, já em relação ao número de óbitos, eles são bem menores que os verificados nos bairros periféricos.

56Bairros como alto IDH como: Meireles, Aldeota, Cocó, Papicu, Luciano Cavalcante somam uma quantidade significativa de casos, mas com menor número de óbitos. Segue respectivamente o número de casos: 1.193, 946, 452, 420, 345, óbitos: 26, 40, 19, 31, 18.

57Dentro desse contexto, projeto Todos de Máscaras, o Estado em seu nível municipal se articula com produtores, que em outros momentos estão na economia chamada de informal, essa que é apenas um aspecto do circuito superior da economia urbana, e ao mesmo tempo há a articulação com empresas de confecção que geralmente estão inseridas na economia dita formal, no circuito superior.

58Em meio à pandemia, a importante indústria de confecção em Fortaleza muda sua produção, ao invés de fabricar a vestimenta se volta para produção de máscara, estando essa produção articulada entre os circuitos superior e inferior da economia urbana.

59Assim, na dinâmica do espaço urbano, as atividades dos circuitos da economia urbana, circuito inferior e circuito superior, estão articulados entre poder público e os chamados “trabalhadores autônomos”. No atual contexto, a indústria de confecção que está inserida de forma preponderante no circuito inferior se articula de maneira mais intensa com instituições do circuito superior na busca da maior produção de máscaras para o enfrentamento da pandemia de Covid-19.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

61O ramo produtivo da confecção espalhado por todo o município da capital cearense, principalmente na periferia, possui relevância na geração de renda e ocupação. Essa indústria de confecção significativa como pontuamos é inserida dentro do circuito inferior da economia urbana, sendo a mesma bem articulada com o circuito superior através de uma conexão intensa e dependente que vai desde a produção até a circulação.

62Em face da situação de pandemia de Covid-19, o Estado lançou diversos incentivos para o aproveitamento do maquinário e da indústria de confecção instituída em Fortaleza.

63Esses incentivos voltaram-se para a produção de máscara de pano para a proteção da população, no sentido de amenizar a escassez de equipamentos de proteção individual como as máscaras, diante da demanda tanto pelos hospitais como pela população em geral em busca de proteção.

64Assim, houve o incentivo à produção de máscaras para serem distribuídas para vários setores da população, garantindo o sustento diário de muitas famílias de bairros periféricos de Fortaleza. Destacamos ainda que essa articulação entre o poder estatal que buscou alternativas para garantir renda a partir da produção de máscaras de proteção para a população local, evidencia uma articulação entre os dois circuitos da economia urbana na capital cearense.

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Bibliografia

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Notas

1 A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19 (cerca de 80%) podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória e desses casos aproximadamente 5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência respiratória (suporte ventilatório).

2 Equipamentos de uso individual.

3 Há um terceiro circuito chamado de circuito superior marginal, o qual representa o topo do circuito interior e a base do circuito superior.

4 O Integra SUS são publicações diárias feitas pela Secretaria de Saúde do estado do Ceará SESA com informações sobre médias móveis de infecções, óbitos nos municípios cearenses.

5 Publicação feita pelo Instituto Evaldo Lodi (IEL), pelo Sebrae-CE e pelo Sindicato das Indústrias de Confecções de Roupas e Chapéus de Senhoras no Estado do Ceará (SindConfecções).

6 Divisão administrativa do município de Fortaleza – Regionais 1,2,3,4,5,6 e a Regional do Centro.

7 A indústria de confecção, no caso, recebe a substantivação de “Indústria Camuflada”, pois sua identificação enquanto unidade produtiva requer uma observação, por dentro da unidade, já que sua identificação é difícil ser percebida, localizando-se dentro da casa do trabalhador.

8 Decreto nº 33.519 , de 19 de março de 2020, Decreto nº 33.521 , de 21 de março de 2020 do Governo do Estado do Ceará e seguido pela PMF.

9 Isolamento social rígido como comércio, fábricas, instituições públicas e privadas fechadas na busca da contenção da dispersão da doença Covid-19.

10 Equipamentos de Proteção Individual.

11 A tipologia inferior abriga a população que vive nas franjas da metrópole ou que ocupa ambientes de rios e lagoas, tratando-se de um conjunto demográfico com alta vulnerabilidade social e ambiental. A tipologia popular periférica se caracteriza por um contingente demográfico que reside em conjuntos habitacionais. Essa tipologia está intensamente ligada à institucionalização de indústrias. Em Fortaleza e na RMF, há um contingente demográfico expressivo no oeste e sul da capital e nos municípios de Maracanaú, Pacatuba, Horizonte e Itaitinga (PEQUENO, 2009).

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Índice das ilustrações

Título Mapa 1-Mapa de localização da indústria de confecção e centros comerciais em Fortaleza- Ceará.
Créditos Fonte: Os autores (2021).
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 158k
Título
Créditos Fonte: Integra SUS/ Indicadores/SESA- COVID-19- Atualizado em 12 de junho de 2020, às 09:30 h.
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-2.jpg
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Título Figura 1-Costureira produzindo máscara na indústria de confecção.
Créditos Fonte: Érika Fonseca, Câmara Municipal de Fortaleza (2020).
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-3.png
Ficheiro image/png, 808k
Título Mapa 2- COVID-19: Distribuição dos casos por bairro de residência dos pacientes, Fortaleza, 2020*.
Créditos Fonte: Casos (Integra SUS - Indicadores/SESA - COVID-19 - Atualizado 12 de junho de 2020, às 09:30h
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-4.jpg
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Créditos Fonte: SMS Fortaleza - COVID-19 - Atualizado 12 de junho de 2020, às 11h.
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-5.jpg
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Título Gráfico 1: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com baixo IDH.
Créditos Fonte: Secretaria Municipal da Saúde- Prefeitura de Fortaleza (2020).
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-6.png
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Título Gráfico 2: relação infecção por Covid-19 e número de óbitos em bairros com alto IDH.
Créditos Fonte: Secretaria Municipal da Saúde- Prefeitura de Fortaleza (2020).
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/19038/img-7.png
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Marlon Cavalcante Santos, José Borzacchiello da Silva e Eciane Soares da Silva Bezerra, «Entre o vestir e o proteger: os circuitos da economia urbana na indústria de confecção em tempos de pandemia de Covid-19, em Fortaleza-Ceará »Espaço e Economia [Online], 21 | 2021, posto online no dia 12 julho 2021, consultado o 29 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/19038; DOI: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.19038

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Autores

Marlon Cavalcante Santos

Doutor em Geografia pelo Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará UFC. Professor da Rede Pública de Ensino de Fortaleza.

E-mail: marloncavalcante888@gmail.com

José Borzacchiello da Silva

Professor Titular e Emérito da Universidade Federal do Ceará. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da UFC e PUC-RIO, Pós-doutor em Geografia Humana pela Université de Paris IV - Sorbonne.

E-mail: borzajose@gmail.com

Artigos do mesmo autor

Eciane Soares da Silva Bezerra

Doutora em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UniversidadeFederal do Ceará - UFC. Professora da Rede Pública de Ensino de Fortaleza.

E-mail:ecianess@gmail.com

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