Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros18ArtigosCovid-19 : fim da geografia da hi...

Artigos

Covid-19 : fim da geografia da hipermobilidade?

Covid-19 : fim da geografia da hipermobilidade?
Covid-19: ¿fin a la geografía de la hipermovilidad?
Le covid-19 : la fin de la géographie de l’hypermobilité ?
Is covid-19 the end of the geography of hypermobility?
Gérard-François Dumont

Resumos

Com o progresso dos transportes aéreos (e, sobretudo, a forte diminuição das escalas) e o incremento da globalização nos anos noventa, o mundo entrava em uma era de hipermobilidade. Os partidários de um planeta nômade, desdenhosos daqueles que mesmo apreciando o mundo permaneciam atados a certa identidade territorial, se deleitavam. De fato, o direito adquirido à mobilidade, impulsionado nos anos dois mil pelo desenvolvimento das companhias aéreas low cost, evidenciava vantagens, por exemplo, para países que sabiam desenvolver seus ativos econômicos e turísticos. Entretanto, a pandemia da Covid-19 revelou que a hipermobilidade também tem seus inconvenientes.

Topo da página

Notas da redacção

Originalmente publicado como Dumont, Gérard-François, "Le covid-19 : la fin de la géographie de l’hypermobilité ?", Société de Géographie, 7 avril 2020. Disponível em https://socgeo.com/2020/04/07/le-covid-19-la-fin-de-la-geographie-de-lhypermobilite-par-gerard-francois-dumont/ . A presente versão foi traduzida do original francês pelo professor Guilherme Ribeiro (PPGGEO/UFRRJ) como parte das atividades do Laboratório Política, Epistemologia e História da Geografia (LAPEHGE) e no âmbito do Edital Faperj de Apoio a Grupos Emergentes de Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (2019).

Texto integral

Introdução

  • 1 Em Taiwan o covid-19 é chamado « pneumonia de Wuhan », denominação bem anterior à escolha de covid- (...)

1Em 23 de janeiro de 2020, a China inverte seu discurso oficial ao reconhecer a transmissão do coronavírus entre humanos e recomenda detecções na saída dos aeroportos. O risco epidêmico ligado à mobilidade humana torna-se finalmente admitido. Certamente, Taiwan 1já o havia evidenciado ao decidir, desde 31 de dezembro de 2019, controlar passageiros oriundos da província de Wuhan a fim de identificar a presença de febre e de sintomas associados à pneumonia. Porém, não sendo Taiwan um Estado reconhecido internacionalmente e, por conseguinte, não integrante da OMS, seu discurso não foi bem entendido apesar de Taiwan ser, provavelmente, o território mais bem informado sobre a realidade chinesa. Infelizmente, sua clarividência foi ignorada, já que a ilha não é considerada senão uma “província da China”. No final de 2019, as conveniências diplomáticas ainda prevaleciam sobre os imperativos militares. Estávamos há anos-luz de roubos de máscaras nos países ocidentais — algo que ocorreria três meses mais tarde em março de 2020.

2Porém, no decorrer das semanas, as autoridades de diferentes países do mundo reconheceram, umas após as outras, a associação entre mobilidade e difusão do coronavírus o qual intervém quando pessoas se encontram. Decisões relativas à restrição da mobilidade surgiram conforme modalidades diferentes: parcial, imposta unicamente para as pessoas infectadas em países realizando testes; temporária, notadamente em países africanos que praticaram toque de recolher face às dificuldades de implementação de um confinamento generalizado; e, nos demais países, total, com exceção das pessoas cujas atividades são essenciais para assegurar alimentação, higiene pública e saúde da população.

3A despeito da variedade decisória e de cronogramas, a epidemia admite um elemento em comum: a correlação entre sua difusão e a geografia das mobilidades — inicialmente no interior da China para, em seguida, fora dela.

Wuhan, uma cidade vulnerável

  • 2 United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2018). World Urbani (...)
  • 3 Uma população de 27 milhões de habitantes estimada em 2020, ou seja, um crescimento multiplicado po (...)
  • 4 Uma população de 20,5 milhões de habitantes estimada em 2020, ou seja, um crescimento multiplicado (...)
  • 5 Atraente, assim, para os investimentos estrangeiros que se beneficiam de incentivos fiscais, direit (...)

4Diga-se desde já que a aparição do coronavírus em Wuhan não é apenas fruto do acaso. Claro que o comércio de animais selvagens para fins de alimentação, medicina tradicional chinesa ou certos benefícios atribuídos — geralmente inverídicos — não é específico de Wuhan. Porém, ela possui um nível de poluição atmosférica particularmente elevado na China, algo explicado (como em outras cidades chinesas) pelo desenvolvimento do uso do automóvel e pela importância de energias poluentes sobretudo para eletricidade. Assim, suas necessidades aumentaram consideravelmente pois a aglomeração populacional de Wuhan é estimada em 8,4 milhões de habitantes em 2020 2contra 2,4 em 1979 — ano em que a China inicia sua política de abertura econômica. A multiplicação da população por 2,4 em um intervalo de meio século é, sem dúvida, ligeiramente inferior à de Xangai (a aglomeração mais populosa 3) ou à de Beijing 4(2ª maior do país); porém, Xangai é a grande cidade portuária beneficiada do status de zona econômica especial desde 1979 5, e Beijing é a capital política cuja pretensão é a de ser vitrine do regime e pólo de uma rede econômica e turística.

5A alta poluição de Wuhan também é acentuada pelo peso considerável das indústrias. Se é verdade que Xangai ou Beijing também possuem inúmeros estabelecimentos industriais, nelas, porém, o setor terciário é nitidamente mais importante. O resultado é que nos últimos anos Wuhan, mais que outras metrópoles chinesas, sofreu um aumento das doenças respiratórias e, em média, um enfraquecimento da imunidade face ao que no final de 2019 ainda era visto como uma pneumonia atípica.

  • 6 Dumont, Gérard-François, Yiliminuer, Tuerxun, « Les migrations internes accentuent l’inégalité hist (...)

6Ademais, as condições higiênico-sanitárias de parte significativa da população urbana chinesa não pode ser considerada satisfatória, pois estamos diante de populações “flutuantes” 6[flottantes]. Elas trabalham e estão na cidade mas, sem dispor de uma licença de residência permanente, também não possuem os benefícios de proteção social.

O sistema específico de migrações internas, fator agravante da difusão do Covid-19 na China

7As reformas econômicas iniciadas na China em 1979 se traduzem por um relaxamento do controle das migrações internas, o que deu lugar a uma maciça emigração rural e faz evocar o seguinte provérbio chinês: “A água escorre rumo à baixada; o homem procura lugares altos”. Tal emigração corresponde ao surgimento do que se convencionou chamar “população flutuante”, ou seja, pessoas que de acordo com suas autorizações de residência (Hukou) deveriam viver no campo mas, na realidade, vivem nas cidades. Segundo o último recenseamento, em 2010 essa população podia ser estimada em 300 milhões, ou seja, por volta de um a cada cinco chineses.

8A pobreza é um traço explicativo central dessa emigração rural rumo a territórios urbanos mais desenvolvidos e capazes de oferecer empregos ou formação a pessoas pouco ou sem qualificação.

  • 7 Sua mobilidade residencial, embora juridicamente ilegal, é admitida na prática, o que explica os ba (...)

9A população flutuante 7pertence às categorias sócio-profissionais menos favorecidas. Inicialmente, ela corresponde aos trabalhadores migrantes sazonais, os chamados min gong. Eles nos fazem lembrar dos pássaros migratórios deslocando-se conforme os meses do ano a fim de encontrar trabalho. Assim, eles podem ser empregados em uma região no momento da colheita do algodão, em outra quando da colheita agrícola e em uma cidade por ocasião de um incremento da construção imobiliária. Outra componente trabalha em ofícios de baixa qualificação na construção ou na indústria, em pequenas atividades comerciais ou de serviços tais como conserto de bicicletas, salões de cabeleireiro, restaurantes, hotéis, domésticas ou babás.

10As populações flutuantes caracterizam-se por condições sociais piores que as urbanas beneficiadas pelo documento de residência na cidade. Ocorre que estas não aceitam bem aquelas, responsabilizando-as pelo aumento da criminalidade ou pela sobrecarga na infraestrutura urbana incapaz de acompanhar a rapidez da crescente taxa de urbanização. Os flutuantes também são criticados por terem alta incidência de AIDS devido à prostituição e ao uso de seringas para consumo de drogas.

11Em 2003 o governo central chinês lançou o “novo paradigma para o desenvolvimento”, uma política destinada a melhorar o bem-estar dos imigrantes rurais que vivem nas cidades. Entretanto, a maior parte dos governos locais está longe de tê-la efetuado em sua plenitude. Assim, ainda que a lei preveja a melhoria do acesso à saúde e à habitação, seguro desemprego e direito à aposentadoria aos flutuantes, tais objetivos não foram atingidos — tanto mais pelo fato da inexistência de controle ou de avaliação da realização dessa nova política.

12Ilustremos a situação dos flutuantes por meio dos trabalhadores migrantes rumo às fábricas de Wuhan e seus baixos salários — de toda maneira superiores em relação ao que eles poderiam ganhar na agricultura. Ressalte-se a dureza das condições de trabalho, tais como longas jornadas, feriados anuais curtos, serviços em cadeia, repetitivos e desgastantes. Como se não bastasse, a maior parte dos flutuantes reside nas instalações das empresas em dormitórios lotados e mal aquecidos. O resultado é simultaneamente forte promiscuidade e alta possibilidade de difusão de epidemias.

13Finalmente, como os flutuantes não se destinam a serem residentes permanentes, a falta de equipamento hospitalar é incontestável e as estruturas do sistema de saúde estão voltadas prioritariamente aos que possuem registro de permissão à residência.

  • 8 Ao invés de 3305 mortos em toda a China continental e 2500 em Wuhan segundo as cifras oficiais gove (...)

14A combinação de um alto nível de vulnerabilidade à transmissão do vírus, de uma população flutuante significativa e de uma oferta médica insuficiente, faz de Wuhan uma cidade particularmente exposta a tal vírus. Além disso, a maneira como os diferentes estratos do Partido Comunista chinês controlam a difusão da informação faz com que as estatísticas oficiais apareçam como pouco confiáveis — tanto mais quando comparadas às de outros Estados afetados 8.

Mobilidade e propagação do vírus na China

  • 9 Amat-Roze, Jeanne-Marie, Dumont, Gérard-François, « Le Sida et l'avenir de l'Afrique », Ethique, n° (...)

15Era inevitável que a mobilidade na província de Hubei espalhasse a pandemia de Wuhan por lá. De fato, a mobilidade sempre foi o vetor das pandemias outrora conhecidas pela humanidade — seja a grande peste do século XIV, seja o espraiamento da AIDS na África 9.

16Ademais, Wuhan é uma cidade conectada à China e ao mundo. Seu aeroporto contabilizou 25 milhões de passageiros em 2018 e, assim, provavelmente, mais de 3 milhões entre o começo da epidemia e o confinamento operado em 23 de janeiro. Inaugurada em 2009, a relevância de sua estação TGV pode ser estimada pelo fato de que ela dispõe de vinte vias para os trens que ligam as grandes cidades do país como Beijing, Guangzhou (Cantão) e outras. Como o primeiro caso suspeito foi oficialmente declarado em 8 de dezembro de 2019 (datando, provavelmente, de 17 de novembro) e que o início do confinamento em Wuhan e na província de Hubei foi efetivado apenas em 23 de janeiro de 2020, o vírus teve várias semanas para difundir-se pela China e fora dela.

Mobilidade e propagação asiáticas

  • 10 Seguida em fins de janeiro de uma mobilização da população pela interdição à entrada de todos os vi (...)

17Inicialmente, incidiu sobre os países vizinhos cujas relações com a China são intensas. Em 20 de janeiro de 2020, a Coréia do Sul teve o primeiro caso confirmado referente a uma mulher chinesa 10. No dia seguinte, Taiwan detecta o primeiro caso a partir de uma mulher de negócios taiwanesa que trabalha em Wuhan de regresso à casa. Ao mesmo tempo, Japão, Hong Kong e Cingapura também são afetados. Esta última admite alta vulnerabilidade, posto que é a primeira escala dos vôos oriundos de Wuhan.

18A OMS só reconheceu a existência da transmissão do vírus entre humanos em 23 de janeiro do presente ano, enquanto o vírus não cessava de seguir as pessoas infectadas mesmo após várias semanas. Após esta data, a mobilidade continuou como antes na maioria dos países do mundo já que a OMS (cujas diretivas são úteis para que os países possam justificar suas ações) não declarou tratar-se de uma pandemia — decisão tomada apenas em 11 de março de 2020.

As lógicas da mobilidade na Europa

19O vírus não poderia permanecer na Ásia pois tanto o continente quanto a China possuem múltiplas relações com outros continentes. O fato de que o norte da Itália tenha sido a primeira região européia afetada é explicado pela relevância das diásporas chinesas e da mobilidade Milão-China. Por outro lado, o sul da Itália, muito mais afastado da globalização, encontrou-se de alguma forma protegido.

20Do lado francês, a lógica da mobilidade como fator de difusão do vírus é igualmente comprovada. Evidentemente, é a Île-de-France que registra maior mobilidade áerea com Wuhan, cidade onde inúmeras empresas francesas estão instaladas como Renault e PSA, p.ex. Até o início do primeiro trimestre de 2020, cumpre observar as ligações aéreas diárias entre o aeroporto Roissy-Charles de Gaulle e a capital de Hubei.

  • 11 Notemos que fenômeno semelhante, porém juridicamente diferente, ocorreu na Coréia do Sul em uma dif (...)

21Contudo, uma outra difusão veio à tona: em Mulhouse, a igreja evangélica “Porta aberta cristã” promoveu uma reunião internacional (autorizada) de oração com 2300 fiéis, o que representou uma dupla oportunidade para o vírus devastador. Em primeiro lugar, a duração do evento (17-24 de fevereiro) favoreceu uma ampla difusão. Em segundo, ao voltarem às suas casas, franceses e alemães, ainda que sem o saber, transportaram o vírus. Foi assim que a Córsega, a priori relativamente isolada durante o inverno, foi desde cedo afetada por duas pessoas presentes à reunião 11.

22Consequentemente, na sequência o governo francês e a imprensa referiram-se ao peso da epidemia na região “Grande Leste”. Felizmente, tratou-se de um erro crasso. No momento em que escrevemos, os únicos departamentos desta região fortemente impactados foram aqueles caracterizados por maior mobilidade em razão do núcleo inicial em Mulhouse e de dezenas de milhares de trabalhadores fronteiriços (quer no Haut-Rhin ou no Bas-Rhin [portanto na Alsace] e em Moselle). Nos demais sete outros departamentos dessa nova e vasta região criada pela fusão de três antigos em 1º de janeiro de 2016, os números são comparáveis aos do sudoeste da França em um contexto em que as mobilidades sócio-econômicas são bastante diferentes. Em termos mais gerais, o mapa da geografia da epidemia na França marca com nitidez as regiões fronteiriças enquanto territórios mais afetados — incluindo a Île-de-France a qual, por suas redes aéreas e ferroviárias internacionais, é a primeira região fronteiriça da França.

  • 12 Departamento fronteiriço, mas cuja mobilidade com a vizinha Bélgica são frágeis em relação às múlti (...)
  • 13 Como o aeroporto Bergerac Dordogne Périgord.

23Destarte, em 28 de março de 2020, quatorze departamentos franceses não contabilizavam morte alguma por covid-19: Alpes-de-Haute-Provence, Ardennes 12, Ariège, Cantal, Creuse, Dordogne, Landes, Lot, Lozère, Nièvre, Puy-de-Dôme, Guyane, Réunion e Mayotte. A maior parte deles não possui aeroporto ou, quando o têm 13, a intensidade internacional é restrita.

A interrupção da hipermobilidade

24A geografia da mobilidade explica claramente a difusão inicial na China do covid-19 e, em seguida, sua intensidade internacional variável segundo os territórios e em todas as escalas geográficas. Ela explica tanto as políticas de isolamento das pessoas infectadas nos países que realizaram número considerável de testes quanto o confinamento sistemático nos países cujos testes permanecem insuficientes.

  • 14 Sobre hipermobilidade, ver, por exemplo, Moriniaux, Vincent (direction), Les mobilités, Paris, Édit (...)
  • 15 Farinelli, Bernard, « Territoires : préférer la mobilité ou la proximité ? », Population & Avenir, (...)

25A interrupção da hipermobilidade 14e, mesmo, da mobilidade em geral, engendra um incremento inédito do teletrabalho como se, sob a coerção do vírus, a preferência pela proximidade prevalecesse sobre a mobilidade 15. A geografia da mobilidade encontra-se reduzida ao seu mínimo vital, tal como podemos atestar pelos milhares de hotéis e restaurantes fechados. Mais ainda, pela disposição de milhares de quartos de hotéis desocupados aos profissionais da saúde cujos domicílios são distantes de seus trabalhos.

Um novo tipo de migração : os « corona-migrantes »

  • 16 Entre os primeiros países a se mobilizarem desde 31 de janeiro de 2020, a Coréia do Sul evacuou set (...)

26Além disso, no âmbito das mobilidades as migrações internacionais encontram-se, de todo modo, atreladas às consequências do covid-19. Os que pensavam em mudar de país (seja para deixar o de origem ou para retornar) já não podem fazê-lo. Houve, inclusive, situações particulares de pessoas dispondo de uma autorização para um dado país mas que, uma vez bloqueadas em um aeroporto de escala, constataram que a autorização havia vencido. As migrações internacionais mais espetaculares são aquelas realizadas por países como o Senegal, que se organizou para repatriar seus cidadãos 16.

  • 17 Lembremos a definição da ONU : imigrante é alguém que habita em um país distinto do seu de nascimen (...)

27Em síntese, os « corona-migrantes », termo proposto aqui para os migrantes internacionais por ocasião do covid-19, são muito menos numerosos que os migrantes (independente das circunstâncias) do período anterior. Até se pode perguntar, considerando os repatriamentos, se o número de imigrantes no mundo 17não vai diminuir.

O direito à mobilidade numérica

  • 18 Um risco epidêmico que os estudos prospectivos não nos deixavam ignorar encontra-se no livro Géogra (...)
  • 19 “Aspirações e projetos de mobilidade residencial dos habitantes da Île-de-France, Paris e suas peri (...)
  • 20 Dumont, Gérard-François, « Quel aménagement du territoire ? Face aux enjeux du développement durabl (...)

28Além do mais, o covid-19 18revela novas possibilidades de teletrabalho, estimula a regionalização das cadeias de valor e provoca maior desenvolvimento da economia circular e da soberania territorial ao redor de bens essenciais como a saúde. Enfim, uma verdadeira revolução da geografia da mobilidade se faz necessária. Na França, trata-se do inverso das políticas de transformação do território, na qual a grande Paris Express, em função dos recursos financeiros envolvidos (mínimo de 38 milhões de euros) quando comparado ao proposto às demais áreas do território francês, é um dos símbolos. Parte importante dos habitantes da Île-de-France, Paris e suas periferias, cientes de que todos clamam por um melhor funcionamento do transporte público existente, não pedem mais mobilidade para a Île-de-France, mas, sim, desejam sair dela 19. Essa revolução na mobilidade exige, mais que nunca, a realização da igualdade digital para todos os territórios 20(e, portanto, o direito à mobilidade digital) a fim de permitir que todos se comuniquem e que haja o melhor desenvolvimento territorial para cada um.

29O mito da hipermobilidade, ou seja, de um mundo de nômades descolados de qualquer identidade territorial, quer dizer, o de uma humanidade cujo progresso só é possível exclusivamente através de uma mobilidade cada vez mais intensa, encontra-se em xeque. Saberemos fazer dessa necessidade conjuntural uma virtude estrutural? Afinal, menos deslocamentos entre e no bojo de territórios sempre mais adensados é tanto limitar o risco de pandemias quanto uma das chaves da redução de emissões de partículas finas e do efeito-estufa. Por fim, será o covid-19 um mal pontual em nome de um benefício duradouro?

Topo da página

Bibliografia

Amat-Roze, Jeanne-Marie, Dumont, Gérard-François, « Le Sida et l'avenir de l'Afrique », Ethique, n. 12, p. 37-60, 1994.

Dumont, Gérard-François, « Quel aménagement du territoire ? Face aux enjeux du développement durable, de la décentralisation et de la mondialisation », Les analyses de Population & Avenir, mars 2020

Dumont, Gérard-François, Géographie des populations. Concepts, dynamiques, prospectives, Paris, Armand Colin, 2018.

Dumont, Gérard-François, Yiliminuer, Tuerxun, « Les migrations internes accentuent l’inégalité historique du peuplement de la Chine », Informations sociales, n° 185, septembre-octobre, p. 24-32, 2014.

Farinelli, Bernard, « Territoires : préférer la mobilité ou la proximité ? », Population & Avenir, n° 728, mai-juin, 2016.

Moriniaux, Vincent (direction), Les mobilités, Paris, Éditions Sedes, 2010.

United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2018). World Urbanization Prospects: The 2018.

Topo da página

Notas

1 Em Taiwan o covid-19 é chamado « pneumonia de Wuhan », denominação bem anterior à escolha de covid-19 para identificar esse coronavírus.

2 United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2018). World Urbanization Prospects: The 2018.

3 Uma população de 27 milhões de habitantes estimada em 2020, ou seja, um crescimento multiplicado por 3,7 desde 1979.

4 Uma população de 20,5 milhões de habitantes estimada em 2020, ou seja, um crescimento multiplicado por 2,9 desde 1979.

5 Atraente, assim, para os investimentos estrangeiros que se beneficiam de incentivos fiscais, direitos aduaneiros favoráveis, procedimentos alfandegários simplificados e regulações menos coercitivas que no restante do país.

6 Dumont, Gérard-François, Yiliminuer, Tuerxun, « Les migrations internes accentuent l’inégalité historique du peuplement de la Chine », Informations sociales, n° 185, septembre-octobre 2014, p. 24-32.

7 Sua mobilidade residencial, embora juridicamente ilegal, é admitida na prática, o que explica os baixos custos da mão-de-obra na China e contribui para a competitividade de suas exportações. O governo anuncia periodicamente o fim da hukou, mas ela permanece em vigor.

8 Ao invés de 3305 mortos em toda a China continental e 2500 em Wuhan segundo as cifras oficiais governamentais, algumas estimativas indicam por volta de 60 mil mortos para Wuhan e 100 mil para a China. Ver www.caijinglengyan.com

9 Amat-Roze, Jeanne-Marie, Dumont, Gérard-François, « Le Sida et l'avenir de l'Afrique », Ethique, n° 12, 1994, p. 37-60.

10 Seguida em fins de janeiro de uma mobilização da população pela interdição à entrada de todos os viajantes chineses, acompanhada de uma petição assinada por 540 mil sul-coreanos.

11 Notemos que fenômeno semelhante, porém juridicamente diferente, ocorreu na Coréia do Sul em uma difusão associada a uma reunião da seita religiosa Shincheonji em fevereiro de 2020. Ela é suspeita de ter transmitido o vírus a centenas de pessoas na cidade de Daegu. Em 1º de março de 2020, o governo municipal de Seul depositou uma queixa-crime contra o líder da seita acima por morte e violação da lei sobre controle de doenças.

12 Departamento fronteiriço, mas cuja mobilidade com a vizinha Bélgica são frágeis em relação às múltiplas mobilidades entre Moselle, Sarre e, principalmente, Luxemburgo.

13 Como o aeroporto Bergerac Dordogne Périgord.

14 Sobre hipermobilidade, ver, por exemplo, Moriniaux, Vincent (direction), Les mobilités, Paris, Éditions Sedes, 2010.

15 Farinelli, Bernard, « Territoires : préférer la mobilité ou la proximité ? », Population & Avenir, n° 728, mai-juin 2016.

16 Entre os primeiros países a se mobilizarem desde 31 de janeiro de 2020, a Coréia do Sul evacuou setecentos repatriados de Wuhan e os acolheu em dois centros de isolamento, p.ex.

17 Lembremos a definição da ONU : imigrante é alguém que habita em um país distinto do seu de nascimento por, pelo menos, um ano.

18 Um risco epidêmico que os estudos prospectivos não nos deixavam ignorar encontra-se no livro Géographie des populations. Concepts, dynamiques, prospectives, tal como podemos ler no seguinte trecho: “As causas da insuficiência sanitária acima sintetizadas também existirão no futuro, sem esquecer epidemias hoje desconhecidas as quais o mundo talvez não saberá ou reprimirá de maneira insuficiente” (p.89). Em seguida, esta hipótese é aprofundada na seção do livro dedicada aos prognósticos sobre envelhecimento (Dumont 2018).

19 “Aspirações e projetos de mobilidade residencial dos habitantes da Île-de-France, Paris e suas periferias”: estudo do Fórum Vias Móveis realizado por Obsoco (Observatório Sociedade e Consumo) em abril de 2018. Tal intenção não foi apenas apresentada, já que o saldo migratório da região Île-de-France é deficitário desde os anos 1990 até aproximadamente 50 mil pessoas por ano — diferença negativa entre as pessoas que vêm habitar nessa região e aquelas que a deixam. Em outras palavras, o crescimento demográfico da Île-de-France explica-se apenas pelo movimento natural, a saber, o excedente dos nascimentos sobre as mortes em um contexto onde a composição por idade do sistema migratório da região concorre para o seu rejuvenescimento e, portanto, para uma proporção elevada de pessoas em idade fértil, com os imigrantes tendo em média fecundidade nitidamente superior à média nacional.

20 Dumont, Gérard-François, « Quel aménagement du territoire ? Face aux enjeux du développement durable, de la décentralisation et de la mondialisation », Les analyses de Population & Avenir, mars 2020

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Gérard-François Dumont, «Covid-19 : fim da geografia da hipermobilidade? »Espaço e Economia [Online], 18 | 2020, posto online no dia 20 abril 2020, consultado o 28 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/12926; DOI: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.12926

Topo da página

Autor

Gérard-François Dumont

Universidade de Paris-Sorbonne, Presidente da revista Population & Avenir (www.population-et-avenir.com) e Administrador da Société de Géographie. Email : gerard-francois.dumont@wanadoo.fr

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-SA-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC-SA 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search