ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Infecção por SARS-CoV-2 em portador de rara glomerulopatia crônica: um relato de caso

SARS-CoV-2 infection in a patient with rare chronic glomerulopathy: a case report

RESUMO

A pandemia pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 desencadeou, no final de 2019, grande mobilização científica com o intuito de conhecer melhor a doença e desvendar possibilidades terapêuticas. Este relato tem por objetivo descrever um caso de COVID-19 em um adolescente portador de rara glomerulopatia crônica. Paciente de 15 anos, diagnosticado com glomerulopatia por C3, em 2018. Em 15 maio de 2020, após 2 meses de abandono ao tratamento de manutenção da glomerulopatia, internou com quadro de edema, oligúria, hipertensão e piora da função renal. Em 18 de maio de 2020, ainda internado e em terapia hemodialítica, apresentou febre baixa sem foco bem esclarecido. No dia seguinte, evoluiu com quadro súbito de queda da saturação de oxigênio, em torno de 79% em ar ambiente, febre alta, dispneia leve e hipotensão. Coletados exames para sepse e PCR para COVID-19, confirmaram-se os diagnósticos de estafilococcia e COVID-19. Tomografia de tórax revelou imagem nodular em vidro fosco com derrame pleural bilateral. Após retirada do cateter de diálise e instituição da antibioticoterapia, paciente evoluiu bem clinicamente, sem novas repercussões após 5 semanas do início do quadro. É sabido que a doença renal crônica é fator de risco independente para o desenvolvimento de pneumonia e, embora existam evidências de que ela esteja associada ao risco aumentado de desenvolvimento da forma grave da COVID-19 em adultos, estudos em populações pediátricas mostram, até o momento, que crianças portadoras de doenças renais não tiveram evolução desfavorável em relação às crianças saudáveis da mesma faixa etária.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Glomerulonefrite, Pediatria.

ABSTRACT

The pandemic by the coronavirus of severe acute respiratory syndrome 2 triggered, in late 2019, a great scientific mobilization in order to better understand the disease and unveil therapeutic strategies. This case report aims to describe a case of COVID-19 in an adolescent with rare chronic glomerulopathy. A 15-year-old patient, diagnosed with C3 glomerulonephritis in 2018. On May 15, 2020, after 2 months of abandoning treatment for maintenance of glomerulopathy, the patient was admitted with edema, oliguria, hypertension and worsening renal function. On May 18, 2020, already hospitalized and undergoing hemodialysis, he had low fever without a well-defined focus. The next day, he developed a sudden drop in oxygen saturation, around 79% in room air, high fever, mild dyspnea and hypotension. Collected exams for sepsis and PCR for COVID-19, the diagnosis of staphylococcy and COVID-19 was confirmed. Chest tomography revealed a nodular ground-glass image with bilateral pleural effusion. After removing the dialysis catheter and instituting antibiotic therapy, the patient evolved well clinically, with no new repercussions after 5 weeks of the onset of the condition. It is known that chronic kidney disease is an independent risk factor for the development of pneumonia and, although there is evidence that it is associated with an increased risk of developing the severe form of COVID-19 in adults, studies in pediatric populations show, up to the moment, that children with kidney diseases did not have an unfavorable evolution in relation to healthy children of the same age group.

Keywords: Coronavirus Infections, Glomerulonephritis, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A pandemia pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) desencadeou, no final de 2019, uma grande mobilização científica com o intuito de conhecer melhor a doença e desvendar possibilidades terapêuticas. Apesar da escassez de dados na literatura na faixa etária pediátrica, há registros de que crianças portadoras de doenças crônicas são grupo de risco para as formas graves da infecção pelo novo coronavírus (COVID-19)1,2. Julga-se assim, uma vez que vários relatos de casos vêm sendo publicados sobre crianças portadoras de doenças de base que desenvolveram as formas graves da COVID-191. Este relato tem por objetivo descrever um caso de COVID-19 em adolescente portador de rara glomerulopatia crônica, a glomerulopatia por C3.


RELATO DE CASO

A.J.P.F., 15 anos, apresentou, em outubro de 2018, quadro de glomerulonefrite rapidamente progressiva, diagnosticando glomerulopatia por C3. Fez tratamento com pulsoterapia de metilprednisolona por 3 dias, seguida por 6 meses de doses mensais de ciclofosfamida e, por fim, tratamento de manutenção com micofenolato de mofetil (MMF) e corticoide oral. Perdeu seguimento clínico em dezembro de 2019, tendo suspendido o MMF em março de 2020. Em 15 maio de 2020, foi internado com quadro de edema, oligúria, hipertensão arterial e piora importante da função renal, sendo necessário iniciar terapia hemodialítica em 16 de maio de 2020. Nesta ocasião, paciente negava febre ou qualquer componente infeccioso. Em 18 de maio de 2020, apresentou febre baixa sem foco esclarecido. No dia seguinte, porém, evoluiu com quadro súbito de queda da saturação de oxigênio, em torno de 79% em ar ambiente, febre alta, dispneia leve e hipotensão. Nesta ocasião, foi retirado cateter de diálise, fornecido suporte de oxigênio com máscara não reinalante, coletados todos os exames para sepse e PCR para COVID-19, feitas expansões volêmicas e antibioticoterapia, providenciados acesso venoso central e novo cateter de diálise, e transferido para unidade de terapia intensiva. Paciente não necessitou de intubação orotraqueal, sendo transferido no dia seguinte para leito de enfermaria para COVID-19, devido à estabilidade clínica e a boa saturação em cateter nasal de oxigênio.

Culturas de sangue periférico e central coletadas na data da descompensação foram positivas para Staphylococcus aureus. Resultado do PCR para COVID-19 coletado no terceiro dia de febre foi positivo. A fim de ampliar a investigação quanto à repercussão da infecção pelo novo coronavírus, foram realizadas tomografia de tórax, que revelou imagem nodular em vidro fosco com aspecto de broncopneumonia, com mínimo derrame pleural bilateral e atelectasias laminares, lactato desidrogenase de 289UI/L, ferritina de 260ng/Ml e D-dímero de 0,94ng/dL. O quadro de febre e hipotensão, justificado pela estafilococcia, teve resolução com a instituição da antibioticoterapia. A queda acentuada da saturação de oxigênio, sem dispneia significativa, por sua vez, é condizente com o diagnóstico de pneumonia por COVID-19 e teve melhora com oxigenoterapia não invasiva. Não foi realizado tratamento específico para a infecção pelo SARS-CoV-2, evoluindo sem novas repercussões clínicas da pneumonia por COVID-19 após 5 semanas do início do quadro. A presença do leve derrame pleural bilateral se explica pela descompensação da glomerulopatia por C3, para a qual não foi realizado tratamento imunossupressor por estar em vigência de infecções. Apesar da estabilidade clínica alcançada, foi necessário manter hemodiálise devido a não recuperação da função renal.


COMENTÁRIOS

A doença renal crônica (DRC) é fator de risco independente para o desenvolvimento de pneumonia, elevando em cerca de 97% a chance de um paciente renal crônico desenvolvê-la. Isso foi evidenciado em um estudo de coorte com mais de um milhão de registros médicos datados de 1996 a 2010, obtidos do Banco de Dados Longitudinal de Seguro de Saúde do Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde de Taiwan. Comparou-se, retrospectivamente, a taxa de incidência de pneumonia hospitalar e ambulatorial em 15.562 pacientes com DRC e 62.109 sem DRC. Outras comorbidades presentes nos pacientes, como diabetes, doença cardiovascular, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica foram associadas independentemente ao aumento do risco de pneumonia3.

Embora existam evidências de que a doença renal crônica esteja associada a um risco aumentado de desenvolvimento da forma grave da COVID-19 em adultos4, os estudos em populações pediátricas revelaram que, até o momento, crianças portadoras de doenças renais não tiveram evolução desfavorável em relação às crianças saudáveis da mesma faixa etária2.

Em um estudo espanhol2 envolvendo 16 crianças portadoras de doença renal crônica e que tiveram RT-PCR positivo para SARS-CoV-2, as doenças renais de base foram: displasia renal (5 pacientes), síndrome nefrótica (5 pacientes), uropatias (2 pacientes), nefropatia por IgA (1 paciente), cicatrizes renais (1 paciente), vasculite (1 paciente) e necrose cortical (1 paciente). Nessa série de casos, portanto, de todas as crianças com patologias renais que positivaram para o novo coronavírus, 37,5% foi a prevalência das glomerulopatias. Além disso, do total de pacientes estudados, 56% estavam em algum esquema de imunossupressão. Nenhuma criança desse estudo necessitou ser transferida para unidade de terapia intensiva ou faleceu2. Em outro estudo4, porém, onde foram testadas 1.391 crianças sintomáticas e assintomáticas, com história de contato com casos suspeitos ou confirmados de infecção por SARS-CoV-2 e 171 apresentaram RT-PCR positivo para o SARS-CoV-2, três necessitaram de ventilação mecânica invasiva. Desses pacientes, contudo, todos tinham alguma condição clínica adjacente, como hidronefrose, leucemia em uso de quimioterapia e intussuscepção. A criança com história de intussuscepção evoluiu a óbito5.

Nesse relato, descrevemos o caso de um paciente portador de glomerulopatia por C3, que havia suspendido a imunossupressão de manutenção 2 meses antes da admissão, internado com piora da função renal, necessitando de hemodiálise. Na mesma internação, foi diagnosticado com infecção aguda por SARS-CoV-2 através de RT-PCR, o qual foi coletado por ter apresentado hipoxemia grave, sem dispneia, em vigência de uma bacteremia. Apesar das alterações radiológicas sugestivas de COVID-19, paciente evoluiu com melhora clínica rápida após a retirada do cateter de diálise e instituição da antibioticoterapia. Podemos concluir que a bacteremia pelo S. aureus levou à instabilidade clínica com hipotensão e febre, além de evidenciar a pneumonia por SARS-CoV-2 por meio da manifestação da hipossaturação de oxigênio grave sem dispneia importante. Por outro lado, não podemos afirmar a influência do vírus na descompensação da glomerulopatia e na piora da função renal, uma vez que havia suspenso o tratamento imunossupressor 2 meses antes da admissão. Por fim, muito ainda se tem a conhecer sobre a infecção por SARS-CoV-2 em pacientes pediátricos portadores de doenças renais.


REFERÊNCIAS

1. Ludvigsson JF. Systematic review of COVID-19 in children shows milder cases and a better prognosis than adults. Acta Paediatr [Internet]. 2020 Mar; [citado 2020 Jun 23]; 109(6):1088-95. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/apa.15270

2. Melgosa M, Madrid A, Alvárez O, Lumbreras J, Nieto F, Parada E, et al. SARS-CoV-2 infection in Spanish children with chronic kidney pathologies. Pediatr Nephrol [Internet]. 2020 Mai; [citado 2020 Jun 02]; 35:1521-4. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s00467-020-04597-1

3. Chou CY, Wang SM, Liang CC, Chang CT, Liu JH, Wang IK, et al. Risk of pneumonia among patients with chronic kidney disease in outpatient and inpatient settings: a nationwide population-based study. Medicine (Baltimore) [Internet]. 2014 Dez; [citado 2020 Jun 27]; 93(27):e174. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4602797/#:~:text=DISCUSSIONS-,CKD%20is%20associated%20with%20the%20increased%20risk%20of%20both%20outpatient,3)

4. Henry BM, Lippi G. Chronic kidney disease is associated with severe coronavirus disease 2019 (COVID-19) infection. Int Urol Nephrol [Internet]. 2020 Mar; [citado 2020 Mai 15]; 52(6):1193-4. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11255-020-02451-9

5. Lu X, Zhang L, Du H, Zhang JY, Li Y, Qu J, et al. SARS-CoV-2 infection in children. N Engl J Med [Internet]. 2020 Abr; [citado 2020 Mai 15]; 382:1663-5. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMc2005073?articleTools=true










1. Hospital Infantil Albert Sabin, Nefrologia - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Universidade Estadual do Ceará, Medicina - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:
Flávia Dias Silveira
Hospital Infantil Albert Sabin. Rua Tertuliano Sáles, nº 544, Vila União
Fortaleza, Brasil. CEP: 60410-794
E-mail: flavia.ufc2013@yahoo.com.br

Data de Submissão: 28/06/2020
Data de Aprovação: 29/06/2020