ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Infecção por SARS-CoV-2 em pacientes pediátricos portadores de doenças renais hospitalizados

SARS-CoV-2 infection in hospitalized pediatric patients with kidney disease

RESUMO

OBJETIVOS: Este estudo visa apresentar os casos confirmados de infecção por SARS-CoV-2 em pacientes pediátricos portadores de doenças renais crônicas e agudas internados em um hospital pediátrico terciário.
MÉTODOS: Estudo observacional descritivo e retrospectivo com todas as crianças internadas entre março e junho de 2020 que apresentavam, concomitantemente, infecção por SARS-CoV-2 e patologias renais. Desse total de pacientes, excluiu-se os que tinham outra doença de base além da renal.
RESULTADOS: No período, foram internados, no hospital, nove crianças portadoras de doenças renais e que tiveram infecção confirmada pelo novo coronavírus através de RT-PCR positivo. Em relação à doença de base, sete tinham apenas a doença renal, sendo três dessas portadoras de doença renal crônica terminal estágio 5; uma, portadora de doença renal crônica estágio 1; uma, portadora de síndrome nefrótica córtico-sensível; e duas, portadoras de lesão renal aguda. Dois pacientes desse estudo já tinham sido submetidos a transplante renal, faziam uso de imunossupressores e tiveram suas doses reduzidas em vigência do quadro infeccioso. Apenas um, devido a quadro de bacteremia associado, necessitou de oxigenoterapia e transferência para unidade de terapia intensiva, porém não foi intubado e retornou à enfermaria em 24 horas.
CONCLUSÕES: De acordo com os casos descritos, a população pediátrica portadora de doença renal, inclusive a em uso de imunossupressores por rejeição aguda de transplantes, parece evoluir sem quadros graves de COVID-19, não havendo, portanto, grande divergência em relação à população da mesma faixa etária saudável.

Palavras-chave: Infecções por Coronavirus, Pediatria, Nefropatias, Insuficiência Renal.

ABSTRACT

OBJECTIVES: This study aims to present the confirmed cases of SARS-CoV-2 infection in pediatric patients with chronic and acute kidney diseases admitted to a tertiary pediatric hospital.
METHODS: Descriptive and retrospective observational study with all children hospitalized between March and June 2020 who had, simultaneously, SARS-CoV-2 infection and renal pathologies. Of this total of patients, those who had another underlying disease besides the renal disease were excluded.
RESULTS: During the period, nine children with kidney disease were admitted to the hospital and had infection confirmed by the new coronavirus through positive RT-PCR. Regarding the underlying disease, seven had only kidney disease, three of whom had stage 5 chronic kidney disease; one, with stage 1 chronic kidney disease; one, with cortic-sensitive nephrotic syndrome; and two, with acute kidney injury. Two patients in this study had already undergone kidney transplantation, used immunosuppressants and had their doses reduced due to the infectious condition. Only one required oxygen therapy and transfer to the intensive care unit, but was not intubated and returned to the ward within 24 hours.
CONCLUSIONS: According to the cases described, the pediatric population with kidney disease, including those using immunosuppressants due to acute transplant rejection, seems to evolve without severe COVID-19, therefore there is no great divergence in relation to the population of the same healthy age group.

Keywords: Coronavirus Infections, Pediatrics, Kidney Diseases, Renal Insufficiency.


INTRODUÇÃO

Desde dezembro de 2019, temos assistido ao cenário da pandemia de COVID-19, doença causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Nesse contexto, cientistas no mundo inteiro têm buscado conhecer mais sobre as formas de acometimento deste novo coronavírus e as possibilidades terapêuticas para a COVID-19.

No Brasil, até 14 de junho de 2020, foram confirmados 867.624 casos da doença, com uma taxa de mortalidade em torno de 5%. Desse total de casos acumulados no país, cerca de 105 mil foram hospitalizados, registrando-se, dentre eles, 2.250 (2%) pacientes na faixa etária pediátrica. Neste mesmo período, foram exatos 303 o número de óbitos pediátricos por COVID-19 notificados, o que corresponde, para o grupo etário em questão, 13% dos hospitalizados1,2.

Embora a maioria dos estudos tragam apenas espectros leves da doença em crianças3,4, acredita-se na relevância das patologias de base como fatores de risco para a infecção grave pelo SARS-CoV-2 nessa faixa etária. Tal suspeita se baseia, em parte, nos relatos sobre adultos3, mas também no próprio sistema de informação da vigilância epidemiológica do Brasil, que no período em questão, registrou que em torno de 88% dos óbitos por COVID-19, de todas as faixas etárias, estiveram relacionados a alguma comorbidade importante, como cardiopatia, diabetes ou doença renal prévia1.

São necessários mais estudos com pacientes portadores de patologias crônicas que apresentaram infecção por SARS-CoV-2, a fim de melhor se adequar a abordagem clínica e terapêutica da COVID-19 nesses pacientes.

Este estudo visa apresentar os casos confirmados de infecção por SARS-CoV-2 em pacientes pediátricos portadores de doenças renais crônicas e agudas internados em um hospital pediátrico terciário e suas evoluções.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo observacional descritivo e retrospectivo, realizado no período de 15 de março a 15 de junho de 2020, com todas as crianças internadas portadoras de doenças renais agudas ou crônicas que apresentaram infecção por SARS-CoV-2, confirmada por reação em cadeia da polimerase (RT-PCR), concomitantemente ao quadro clínico que motivou a internação. A indicação do RT-PCR deveu-se a um dos seguintes critérios: sintomas respiratórios nos últimos 14 dias, contato com indivíduos com COVID-19 ou transplantados. Foram excluídos pacientes que apresentavam outras patologias de base além da renal.

Por meio de revisão de prontuários, foram coletados dados como: sexo, idade, sintomas iniciais da COVID-19, motivo da internação, patologia renal prévia, modalidade de terapia de substituição renal, uso de medicações imunossupressoras para doença de base, tratamento específico para a COVID-19 e evolução do paciente (necessidade de internação em unidade de terapia intensiva e mortalidade).


RESULTADOS

De 15 de março a 15 de junho de 2020 foram internados no hospital nove crianças portadoras de doenças renais e que tiveram infecção confirmada pelo novo coronavírus através de RT-PCR positivo. Das nove, sete eram do sexo masculino e duas do sexo feminino, e suas idades variaram de 2 a 15 anos.

Em relação à doença de base, sete tinham apenas a doença renal, sendo três dessas portadoras de doença renal crônica terminal (DRCT) estágio 5; uma, portadora de doença renal crônica (DRC) estágio 1; uma, portadora de síndrome nefrótica córtico-sensível; e duas, portadoras de lesão renal aguda (LRA). As demais apresentavam, além do quadro renal, doenças oncológicas (leucemia linfoide aguda e tumor ovariano metastático) e estavam em uso de quimioterapia, tendo sido, portanto, ambas excluídas desse estudo.

As patologias causadoras da DRC nos pacientes da série foram: síndrome nefrótica córtico-resistente (dois pacientes), glomerulopatia por C3 (um paciente) e síndrome hemolítico-urêmica atípica (um paciente). Naqueles com lesão renal aguda, as causas foram: glomerulonefrite pós-infecciosa (um paciente) e síndrome hemolítico-urêmica secundária à colite (um paciente). Uma criança não apresentava função renal alterada, tendo sido admitida com quadro de descompensação da síndrome nefrótica córtico-sensível em vigência de infecção urinária.

Do total de quatro pacientes com DRC, três eram portadores de DRCT estágio 5 e estavam em programa de terapia hemodialítica; o outro, por sua vez, apresentava DRC estágio 1, portanto tinha clearance de creatinina normal.

Dos dois pacientes com lesão renal aguda, apenas um, que apresentava síndrome hemolítico-urêmica secundária à colite, necessitou de hemodiálise.

Todas as sete crianças tiveram como motivo da internação complicações relacionadas à doença renal de base, tendo sido testadas para COVID-19 devido a sintomas respiratórios nos últimos 14 dias (quatro pacientes); ou contato com caso de COVID-19 (um paciente); ou serem transplantados renais (dois pacientes).

Os sintomas mais comuns foram: febre (60%), tosse (60%), dispneia (40%), diarreia (20%) e coriza (20%). Dois pacientes eram assintomáticos, um deles tendo feito o exame devido à história de contato com caso domiciliar de COVID-19 e o outro devido à programação cirúrgica de enxertectomia pela equipe do transplante renal.

Apenas um dos pacientes teve sintomatologia mais grave, evoluindo com queda de saturação de oxigênio e necessidade de uso de máscara não reinalante e de cateter nasal de oxigênio. Esse caso em particular, entretanto, teve como confundidor um quadro de bacteremia por infecção de cateter de diálise por bactéria gram-positiva. No momento da descompensação, apresentou quadro súbito de febre, queda significativa da saturação de oxigênio, dispneia leve, piora da perfusão periférica e hipotensão. Nessa ocasião, foi aberto protocolo de sepse, iniciada antibioticoterapia, instalada máscara não reinalante e feitas expansões volêmicas. Os exames coletados revelaram RT-PCR para SARS-CoV-2 positivo e presença de S. aureus em culturas de ponta de cateter de diálise, sangue periférico e central.

Em relação aos exames complementares, apenas a criança com evolução mais grave teve radiografia de tórax alterada, sendo submetida à tomografia de tórax que revelou atelectasias laminares em faixa nos segmentos basais posteriores de ambos os lobos inferiores, nódulos com atenuação em vidro fosco em região central do lobo superior esquerdo, com aspecto de broncopneumonia, e mínimo derrame pleural bilateral. A presença de leve derrame pleural é justificada pelo quadro de descompensação da doença de base (glomerulopatia por C3). Contudo, os demais achados radiológicos, especialmente quando associados à clínica de hipossaturação de oxigênio grave sem dispneia significativa, são condizentes com o diagnóstico de pneumonia por SARS-CoV-2. O paciente teve boa evolução clínica com oxigenoterapia não invasiva e com o tratamento da bacteremia, não apresentando outras repercussões clínicas da COVID-19. Não foi possível realizar o tratamento imunossupressor para a descompensação da glomerulopatia por C3 devido à vigência de processos infecciosos.

Cinco pacientes estavam em terapia hemodialítica no momento do diagnóstico de infecção por coronavírus. Três desses já vinham em programa terapia de substituição renal. Os outros dois necessitaram iniciar hemodiálise durante a internação, um deles devido à LRA secundária à síndrome hemolítico-urêmica; e, o outro, devido à descompensação de uma glomerulopatia por C3.

Dois pacientes desse estudo já tinham sido submetidos ao transplante renal. Um deles estava internado para tratamento de rejeição aguda do enxerto há cerca de dois meses, e já em terapia dialítica, quando fora diagnosticado com infecção pelo novo coronavírus, sem obter resposta ao tratamento da rejeição, com desenvolvimento de múltiplas infecções e hematúria macroscópica, sendo indicado enxertectomia. O RT-PCR para COVID-19 foi realizado, nesse caso, por indicação pré-cirúrgica, tendo o paciente evoluído sem manifestação clínica ou radiológica de infecção aguda por SARS-CoV-2. De modo diferente, o outro transplantado apresentou quadro de infecção pelo coronavírus concomitantemente ao quadro de rejeição aguda do enxerto, apresentando diarreia como único sintoma. Neste caso, devido ao quadro infeccioso vigente, não foi possível tratar a rejeição.

Ambas as crianças faziam uso de imunossupressores (tacrolimus e corticoide) e tiveram suas doses reduzidas em vigência do quadro infeccioso. Nenhuma delas evoluiu com gravidade clínica.

Apenas um paciente necessitou de oxigenoterapia e transferência para unidade de terapia intensiva, em vigência de bacteremia por estafilococo, porém não foi intubado e retornou à enfermaria em 24 horas. Até a finalização desse manuscrito, quatro deles receberam alta e três permanecem internados, tendo sido a taxa de mortalidade nula. Todos os pacientes que ainda se encontram hospitalizados fizeram RT-PCR de controle e tiveram resultados negativos.


DISCUSSÃO

O SARS-CoV-2 se trata de um vírus de RNA pertencente à família Coronaviridae, a qual é composta por um grupo diverso de vírus divididos em quatro gêneros e responsáveis por desde quadros respiratórios leves, com sintomatologia semelhante à influenza, até quadros que levam à síndrome respiratória aguda grave5. A principal forma de transmissão se dá por gotículas respiratórias eliminadas pelo indivíduo portador do vírus e, até o que se acredita no momento, pessoas assintomáticas parecem transmiti-lo no período de incubação. Embora os casos pediátricos até então pareçam ser mais leves, todo espectro da doença é possível6.

Apesar do curto período desde o início da pandemia, grandes avanços já foram obtidos no que se refere ao conhecimento da doença. Os dados epidemiológicos e clínicos de crianças infectadas pelo SARS-CoV-2, entretanto, ainda são limitados.

Até o momento, a incidência da doença neste grupo etário vem sendo bem menor que no da população adulta. No Brasil, por exemplo, até o final da 21ª semana epidemiológica, apenas cerca de 0,3% do total de casos de síndrome respiratória aguda grave pela COVID-19 confirmados foram em crianças ou adolescentes de 0 a 19 anos. Esse número está bem abaixo, inclusive, da incidência de casos pediátricos na Itália (1,2%) e nos EUA (1,7%)7.

Em um estudo chinês que testou 1.391 crianças sintomáticas ou com história de contato com indivíduos sintomáticos para a COVID-19, 171 tiveram PCR positivo. A idade média de acometimento foi 6,7 anos e os sintomas mais comuns foram febre, tosse e dor de garganta. Das que positivaram, 15,8% eram assintomáticas e só foram testadas devido ao histórico de contato com pessoas sintomáticas. Nessa casuística, 3 pacientes necessitaram de unidade de terapia intensiva e de ventilação mecânica invasiva, sendo todos, contudo, portadores de outras patologias (hidronefrose, leucemia e intussuscepção). Uma criança veio a óbito após 4 semanas de internação, esta tinha história de intussuscepção8.

Na China, embora as manifestações clínicas da doença nas crianças tenha sido, no geral, menos grave que na população adulta, observou-se que crianças pequenas, principalmente bebês, são mais vulneráveis à infecção4. No Brasil, 33% dos óbitos por COVID-19 na faixa etária foram em menores de 1 ano1.

Embora a maioria das publicações científicas acerca da doença envolva apenas pacientes adultos, uma vez que este é o grupo mais acometido pela doença, têm sido estudados, progressivamente, pela comunidade científica, os fatores de risco relacionados às infecções mais graves pelo novo coronavírus na faixa etária pediátrica. Uma metanálise envolvendo quatro estudos sobre COVID-19 e doença renal crônica (DRC) em adultos, por exemplo, revelou que esta parece predispor o paciente a quadros mais graves de infecção pelo SARS-CoV-2. Ao que parece, a presença da DRC em pacientes com COVID-19 está associada a um risco maior de evolução para pneumonia e a uma mortalidade por pneumonia cerca de 14 vezes maior nesse grupo de pacientes9.

Um estudo espanhol realizado de março a abril de 2020 descreveu 16 crianças com doenças renais que tiveram PCR para SARS-CoV-2 positivo. Destas, três eram transplantadas renais, três faziam hemodiálise, três eram portadoras de DRC estágio 2 ou 3 e sete não apresentavam alteração na taxa de filtração glomerular. Neste estudo, 62,5% das crianças apresentavam tosse ou rinorreia, 50% febre, 25% sintomas gastrointestinais e 19% delas eram assintomáticas. Nenhuma necessitou de oxigenoterapia10.

Em nossa série, 28% das crianças estudadas eram assintomáticas e a sintomatologia, quando presente, variou essencialmente entre tosse, febre e dispneia. A despeito do estudo acima ter mencionado rinorreia como um dos mais prevalentes sintomas, em nosso estudo foi o menos prevalente dentre os sintomáticos. Apenas um paciente, em vigência de bacteremia por estafilococo, necessitou de oxigenoterapia por máscara não reinalante e cateter nasal de oxigênio, por cerca de 24 horas, não sendo submetido à intubação orotraqueal.

Em um estudo chinês com 701 pacientes na faixa etária entre 50-71 anos, 14,4%, na admissão, já apresentavam creatinina sérica aumentada e 13,1% tinham TFG<60ml/min/1,73m2. Os 14,4% de pacientes eram, no geral, do sexo masculino, de idade mais avançada e gravemente enfermos. De alterações laboratoriais, este grupo de pacientes apresentava leucócitos mais elevados, linfócitos e plaquetas mais baixas, D-dímero mais elevado, tempo de tromboplastina parcial mais prolongado, lactato desidrogenase e enzimas hepáticas mais elevadas. A taxa de lesão renal aguda ocorreu em 5,1% dos pacientes. A mortalidade geral deste estudo foi de 16,1%, porém, entre aqueles com creatinina basal elevada, esta foi de 33,7%. Estavam associados a uma maior mortalidade: níveis basais de creatinina elevados, ureia elevada, proteinúria e hematúria11.

A lesão renal aguda, na faixa pediátrica, não é comum no contexto da COVID-19, mas, quando presente, pode indicar uma pior evolução clínica. Acredita-se que a perda de função renal rápida seja mais comumente causada por sepse ou descompensação hemodinâmica do que por ação direta do vírus, porém são necessários novos estudos.

No estudo espanhol citado anteriormente, 8 das 16 crianças necessitaram de internação. Três destas fizeram quadro de agudização da DRC devido à baixa ingesta de líquidos e uma fez nefrotoxicidade pelo Tacrolimus. Todos, entretanto, retornaram à função renal basal10.

No presente estudo, todos os sete pacientes foram internados devido ao quadro relacionado à patologia renal e nenhum devido à infecção pelo SARS-CoV-2.

Por sua vez, dois pacientes apresentavam lesão renal aguda: um por síndrome hemolítica urêmica relacionada à colite, que teve RT-PCR para SARS-CoV-2 coletado devido à apresentação de estado gripal 10 dias antes da internação; e, o outro, por glomerulonefrite pós-estreptocócica, com coleta de RT-PCR para SARS-CoV-2 devido ao quadro de febre e tosse desenvolvidos durante a internação.

Em relação à terapia imunossupressora, estudos de outros países, como Espanha, mostraram que pacientes em uso de imunossupressores não parecem ter evolução pior em relação aos imunocompetentes. Baseado nos estudos com outras infecções virais em pacientes transplantados, sabe-se que antimetabólitos como sirolimus são descontinuados ou reduzidos, enquanto inibidores de calcineurina são mantidos, se o paciente não evoluir com gravidade10. Ao contrário dos demais vírus respiratórios, os coronavírus não demostraram causar doença mais grave em pacientes imunossuprimidos. De fato, até o momento, não foram relatadas mortes em pacientes de nenhuma idade submetidos a transplante, quimioterapia ou outros tratamentos imunossupressores13. Supõe-se que a razão para esse dado consista na própria resposta imune do hospedeiro, que uma vez desregulada e excessiva, se torna fator particularmente importante de dano nos tecidos durante a infecção pelo coronavírus14.

Em um estudo italiano envolvendo crianças e adultos, foram acompanhados pacientes transplantados, com doença hepática autoimune e em quimioterapia para hepatocarcinoma. Nenhum desses pacientes desenvolveu doença pulmonar clínica pelo SARS-CoV-2. Até agora, esse grupo de pacientes imunossuprimidos, independentemente da faixa etária, não demonstrou ter risco aumentado de formas graves da COVID-1913.

No nosso estudo, duas das sete crianças faziam uso de Tacrolimus e corticoide para quadro de rejeição aguda de transplante. Uma delas fez o tratamento para rejeição aguda durante dois meses antes que fosse diagnosticada com infecção pelo novo coronavírus, evoluindo, no entanto, com múltiplas infecções e com indicação de enxertectomia. Vale ressaltar que o paciente em questão não apresentou sintomatologia para a COVID-19 nem antes nem após o procedimento. A outra criança, por sua vez, abriu o quadro de rejeição aguda simultaneamente ao quadro de infecção por COVID-19, tendo sido contraindicado, nesse caso, o tratamento específico para rejeição aguda, mas permanecendo em uso de Tacrolimus e corticoide oral. Esta criança também teve evolução favorável para infecção por SARS-CoV-2, apresentando como único sintoma um quadro de diarreia fugaz. Evoluiu, entretanto, com perda funcional do enxerto e necessidade de manter terapia hemodialítica.

Casos de pacientes em rejeição aguda de transplante concomitantemente à infecção por COVID-19 não são descritos na literatura.

No Brasil, ainda não existe um protocolo que sistematize o tratamento para a COVID-19 na faixa etária pediátrica e, como relatado, nenhum dos pacientes do presente estudo fez uso de terapêutica específica. Apesar de a literatura prever que pacientes com doença renal apresentariam evolução desfavorável no contexto da COVID-19, no nosso hospital, cujo serviço de nefrologia pediátrica é referência no estado, houve apenas um paciente com evolução mais importante, evoluindo com pneumonia, porém sem necessidade de intubação orotraqueal. No entanto, no contexto da síndrome inflamatória multissistêmica da COVID-19, descrita pela primeira vez no final de abril de 2020, temos visto um número crescente de crianças graves admitidas com essa complicação em nosso hospital, desde o início de junho de 2020, no total de nove casos até a realização desse manuscrito. Até o momento, contudo, nenhuma dessas crianças tinha diagnóstico de patologia renal prévia.

De acordo com os casos descritos neste estudo, a população pediátrica portadora de doença renal, inclusive a em uso de imunossupressores por rejeição aguda de transplantes, parece não evoluir com quadros graves de infecção pelo novo coronavírus, não havendo, portanto, grande divergência em relação à população da mesma faixa etária saudável. Todavia, é muito cedo para se concluir que pacientes pediátricos com doenças renais apresentariam risco semelhante ao das crianças previamente hígidas de desenvolverem complicações severas da COVID-19.

Desse modo, a fim de melhor guiar a terapêutica de casos futuros, faz-se essencial na literatura, um número maior de estudos que aborde a ação desse vírus no contexto das doenças renais crônicas e agudas em crianças.


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1. Hospital Infantil Albert Sabin, Nefrologia - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Universidade Estadual do Ceará, Medicina - Fortaleza - Ceará - Brasil
3. Hospital Infantil Albert Sabin, Pediatria - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:

Flávia Dias Silveira
Hospital Infantil Albert Sabin
R. Tertuliano Sáles, 544 - Vila União
Fortaleza, Brasil. CEP: 60410-794
E-mail: flavia.ufc2013@yahoo.com.br

Data de Submissão: 28/06/2020
Data de Aprovação: 01/07/2020