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Serviço Social e TICs: a prática profissional no contexto da Covid-19

Social Work and ICTs: the professional practice into Covid-19’s context

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir as contradições presentes no processo de incorporação das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) ao trabalho dos assistentes sociais que atuam nas políticas de Saúde, Assistência e Previdência Social no contexto da Covid-19. A metodologia utilizada consiste em pesquisas bibliográficas, documentais (com enfoque nas publicações do CFESS) e observações decorrentes da experiência prática enquanto assistente social do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social1 1 Até novembro de 2020, a autora Erika Valentim atuou como assistente social nas políticas de Assistência Social e Saúde, mais especificamente no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) e em hospitais de referência contra a Covid – 19. Atualmente é assistente social atuante na Política de Educação, assim como a autora Fernanda Paz. . Foi possível identificar que o uso das TICs acontece de forma heterogênea e desigual nas políticas sociais, como estratégia para a continuidade dos atendimentos nos serviços públicos, ao mesmo tempo que apresenta aspectos comuns, entre os quais se destaca a recorrência a meios digitais não institucionalizados. Tal incorporação esbarra em questões éticas, na falta de acesso das populações mais vulneráveis aos meios digitais e na lógica produtivista que tende a intensificar a precarização do trabalho.

Palavras-chave:
Serviço Social; Tecnologias; Políticas; Covid-19

Abstract

This article aims to discuss the contradictions present in the process of incorporating Information and Communication Technologies (ICTs) into the work of social workers who work in Health, Assistance and Social Security policies into Covid-19’s context. The methodology used consists in bibliographic and documentary research (focusing on publications from the CFESS) and observations due to a practical experience as a social worker in the Unified Health System and the Unified Social Assistance System. It was possible to identify that the use of ICTs happens in a heterogeneous and unequal way in social policies, as a strategy for the continuity of public services, but it comes up against ethical issues, in the lack of access of the most vulnerable populations to digital media and in the productivist logic that tends to intensify the precariousness of work.

Keywords:
Social Work; Technologies; Policies; Covid-19

Introdução

Desde o início de 2020, o mundo vive um cenário ainda sem precedentes no século XXI. A Covid-19, que se espalhou de forma rápida por todo o globo e tem resultado no elevado número de mortes em diversos países, atinge drasticamente a periferia do capitalismo, tanto em termos de contaminação e óbitos, quanto nas consequências econômicas, sociais e políticas.

Na particularidade brasileira, o agravamento da situação sanitária atual é, sobretudo, reflexo das ações e omissões do Estado, que não tem garantido as condições mínimas do isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) enquanto medida preventiva mais eficaz contra o vírus e, muito menos, o acesso da população à vacina, colocando-se na contramão da Ciência, em descompasso com as políticas adotadas por vários países do mundo.

As classes subalternas padecem de maneira ainda mais perversa os efeitos da pandemia, com o aumento do desemprego, da fome, e diante da ausência de condições objetivas para a manutenção do isolamento social, na busca por alternativas de trabalho e geração de renda, ainda que informais e precárias. Essas populações se deparam com a difícil escolha entre as duas alternativas impostas pelo Estado: arriscar-se a morrer de Covid-19 e/ou de fome.

É nessa realidade que está inserido o assistente social, trabalhador chamado a dar respostas às expressões da questão social, ainda mais agudizadas no contexto pandêmico. Seja por meio dos atendimentos presenciais, realizados nos serviços considerados essenciais; ou nos atendimentos remotos, mediados pelo uso das TICs e ampliados nessa conjuntura, a profissão tem atuado cotidianamente sobre os efeitos da crise.

Diante disso, o intuito do artigo é discutir a utilização das TICs no trabalho dos assistentes sociais, durante o período de pandemia, evidenciando as políticas de Saúde, Assistência e Previdência Social. Busca-se problematizar, a partir de pesquisas bibliográficas e documentais, as possibilidades que tais ferramentas trazem para o acesso dos usuários às políticas sociais e as implicações relacionadas às condições técnicas e éticas de trabalho. Nesse sentido, pretende-se contribuir com o debate acerca da relação entre Serviço Social e novas tecnologias, o qual vem sendo aprofundado pela categoria profissional nos últimos anos.

O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, a discussão está centrada nas tendências mais gerais de incorporação das TICs aos processos de trabalho e sua adoção nos serviços públicos que constituem espaços de atuação dos assistentes sociais. Na segunda, são apresentadas algumas expressões da utilização das tecnologias para o acesso dos usuários às políticas que compõem o tripé da Seguridade Social, apontando contradições presentes nesse processo.

Serviço Social e Tecnologias da Informação e Comunicação

Sob a perspectiva marxiana, as tecnologias são resultado do trabalho humano, expressões do processo de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção. Assim, a imbricada relação entre trabalho e tecnologia permite refutar as análises que procuram desistoricizá-la, caracterizando-a como traço singular do capitalismo contemporâneo (GROHMANN, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 93-109., p. 93).

Partindo dessa observação, são inegáveis os avanços tecnológicos e suas incorporações aos processos de trabalho no capitalismo atual. As teses acerca da Indústria 4.0 vêm sendo amplamente difundidas diante de uma série de mudanças no mundo do trabalho, as quais visam ampliar as taxas de lucro do capital por meio da utilização de novas tecnologias e modalidades de gestão da força de trabalho.

No âmbito dessas transformações, surgem hipóteses acerca de uma nova reestruturação produtiva pós-crise de 2008, ou de que tais alterações refletem apenas o aprofundamento da reestruturação produtiva neoliberal (TONELLO, 2020TONELLO, I. Uma nova reestruturação produtiva pós- crise de 2008? In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 139-148., p. 141). Foge aos objetivos deste trabalho aprofundar a discussão. No entanto, cabe destacar o papel central das TICs no conjunto das mudanças que marcam a acumulação flexível pós-2008, sobretudo, diante do avanço da robotização e da inteligência artificial, que vêm alterando significativamente as relações e condições de trabalho.

Em seus estudos, Ursula Huws (2018)HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho digital em um mundo real. São Paulo: Editora Unicamp, 2018. tem observado a capacidade do capital de incorporar o trabalho informal e fragmentado ao seu processo de acumulação atual, de modo a aumentar suas taxas de lucro em atividades que antes eram consideradas como trabalho improdutivo. Para a autora, a crise de 2008 marca uma nova fase de acumulação do capital, assentada na mercadorização dos serviços públicos, ou seja, na expropriação da redistribuição da mais-valia nesses serviços, que se expressa com muita nitidez nas políticas de saúde e educação.

A autora identifica que o setor público vem aumentando progressivamente os gastos com a contratação de empresas prestadoras de serviços e reduzindo o quantitativo de servidores públicos estáveis. Nesse processo, a lógica da mercadorização invade a esfera dos serviços públicos revestida do discurso neoliberal da suposta eficiência e da necessidade de um Estado mais enxuto (HUWS, 2018HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho digital em um mundo real. São Paulo: Editora Unicamp, 2018.).

Huws (2018)HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho digital em um mundo real. São Paulo: Editora Unicamp, 2018. destaca que a lógica da mercadorização se faz presente até mesmo em setores que não chegam a ser terceirizados, mas que introduzem movimentos de padronização de tarefas e de incorporação dos valores empresariais, implicando significativas mudanças no ethos público. A padronização e generalização das tarefas vêm sendo combinadas e potencializadas através da incorporação de novas tecnologias, no sentido de tornar substituíveis e dispensáveis determinadas categorias profissionais. Entretanto, tais tendências se dão de forma heterogênea entre os diferentes serviços:

No caso de complexos serviços pessoais (como ensinar, cuidar ou o serviço social) envolvendo um conjunto de conhecimentos tácitos e contextuais, qualificações comunicativas e trabalho emocional, o processo de padronização que sustenta a mercadorização não é, de forma alguma, fácil de alcançar, demandando diversos processos em que os conhecimentos tácitos são progressivamente codificados; tarefas são padronizadas; formas de avaliação de resultados são estabelecidas; o gerenciamento dos processos é reorganizado; organizações são desmembradas em suas diversas partes; essas partes são formalizadas, algumas vezes como entidades legais separadas e relações análogas às do mercado são introduzidas entre elas (HUWS, 2018HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho digital em um mundo real. São Paulo: Editora Unicamp, 2018., p. 306).

Na trajetória de incorporação das TICs2 2 Entende-se como Tecnologias da Informação e Comunicação o conjunto de recursos tecnológicos integrados, como hardwares, softwares, redes, equipamentos móveis, serviços e plataformas de comunicação, entre outros meios que possibilitam a transmissão de informações e constituem canais tecnológicos de comunicação. aos serviços públicos, cabe destacar os sistemas de informação, que começam a ser utilizados nas empresas privadas como forma de ampliar a produtividade do trabalho e as condições de competitividade, mas que ao longo das últimas décadas se expandem de forma significativa para a maioria dos órgãos públicos (AUDY, 2005AUDY, J. L. N. Fundamentos de sistemas de informação. Porto Alegre: Bookman, 2005.; DIAS, SANO, MEDEIROS, 2019DIAS, T. F; SANO, H; MEDEIROS, M. F. M. Inovação e tecnologia da comunicação e informação na administração pública. Brasília: Enap, 2019.).

O uso dessas tecnologias pela administração pública brasileira vem sendo promovido desde a reforma gerencial, a partir de meados dos anos de 1990, marco da entrada da política neoliberal no país. Desde então, observam-se investimentos em tecnologias informacionais, com destaque para as políticas que constituem a Seguridade Social. Tal incorporação se dá, inicialmente, na Previdência Social (DATAPREV), no Sistema Único de Saúde (DATASUS) e, posteriormente, na Assistência Social (Cadastro Único, Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família - SIGPBF, dentre outros) (SANTOS, 2019SANTOS, F. Sistemas de informação e suas implicações no exercício profissional de assistentes sociais no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS, 16, 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília, 2019. p. 1-13. Disponível em: <https://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/CBAS/article/view/220/215 > Acesso em 08 mar. 2020.
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).

Com efeito, observa-se que a partir da década de 1990, a administração pública vem se adaptando às novas ferramentas tecnológicas e processos de trabalho mediados por elas, entendidos como mecanismos importantes para dar agilidade e transparência no atendimento da população usuária desses serviços. Tais avanços proporcionados pelas TICs imprimem significativas mudanças nos contextos ocupacionais, incluindo os espaços de atuação do Serviço Social, introduzindo novos ritmos e racionalização do tempo, provendo maior controle sobre as ações dos trabalhadores e novas formas de mensuração do trabalho, assim como vêm estimulando o aumento da produtividade mediante o estabelecimento de metas institucionais.

Esse processo de adoção de tecnologias informacionais nos órgãos públicos, que já estava em curso, acabou ganhando maior velocidade com a pandemia da Covid-19, tendo em vista a necessidade de distanciamento social. Várias instituições adotaram sistemas eletrônicos, teleatendimentos, prontuários eletrônicos, atendimentos via e-mail, aplicativos de mensagens, entre outros, como forma de garantir que parte da classe trabalhadora pudesse executar suas atividades laborais em casa, ou mesmo no ambiente de trabalho, mas com a redução dos riscos decorrentes do contato interpessoal direto.

É notório que, no contexto da Covid-19, o capitalismo tem efetuado mudanças nas formas de organização do trabalho em escala global, face à pressão de organismos internacionais multilaterais e da mobilização política dos movimentos e lutas sociais em prol da adoção de medidas protetivas contra a propagação do vírus. No entanto, grande parte da classe trabalhadora se vê impossibilitada de interromper suas atividades laborais, manter o isolamento social ou trabalhar em home office, seja por estar inserida em serviços essenciais que precisam ser prestados presencialmente, ou ainda por estar em condição de desemprego ou subemprego, não dispondo de condições objetivas para manter o distanciamento social (ANTUNES, 2020ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo, 1ª edição, 2020.).

Nesse cenário, a garantia da continuidade dos serviços públicos essenciais se coloca como central diante das consequências drásticas da crise3 3 Antunes (2020, p.18) aponta a “simultaneidade e imbricação trágica entre sistema de metabolismo antissocial do capital, crise estrutural e explosão do coronavírus”, denominando de capital pandêmico a síntese desse processo. sanitária, econômica, política e social ampliada pela Covid-19, a qual atinge amplos segmentos da classe trabalhadora. O trabalho nas diferentes políticas sociais passou a ser alvo de discussões e ajustes em torno da manutenção dos atendimentos de forma presencial, com a adoção dos cuidados necessários para evitar a propagação da Covid-19; ou, de forma remota, mediados pelas TICs. Diante disso, emergem contradições e problematizações que envolvem as competências e atribuições profissionais, a dimensão ética, política e técnico-operativa da profissão, assim como a lógica produtivista e mecanicista imposta por muitas instituições.

Segundo Veloso (2010)VELOSO, R. S. Tecnologias da Informação e Serviço Social: notas iniciais sobre o seu potencial estratégico para o exercício profissional. Emancipação, Ponta Grossa, v. 10 n. 2, 2010. Disponível em: https://revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/766 . Acesso em 08 mar. 2020.
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, as TICs têm um importante papel de potencializar o exercício profissional dos assistentes sociais, pois permitem o acesso a informações que podem ser socializadas com os usuários, a construção de registros, sistematização de dados; contribuem para a construção de perfis dos usuários, que podem ser utilizados em pesquisas, na avaliação das ações profissionais, aperfeiçoamento das políticas, dentre outras possibilidades.

Ao mesmo tempo, conforme Dal Rosso (2008)DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008., as TICs também contribuem para a intensificação do trabalho, permitindo reduzir todo o tempo de trabalho considerado improdutivo. Através dessas tecnologias é possível ampliar a administração da execução de tarefas, quantificar as atividades realizadas e o tempo gasto e garantir um maior controle do empregador sobre o desempenho do trabalhador.

O controle sobre o tempo de trabalho traz sérias implicações quando se leva em conta as especificidades do trabalho do assistente social, cuja natureza do conteúdo laboral é complexa, predominantemente qualitativa e politicamente contrária à lógica produtivista e imediatista, quando alinhada ao Projeto Ético-Político herdeiro da tradição marxiana. O assistente social atua sobre as mais diversas expressões da questão social, sendo necessárias condições objetivas para a formulação de respostas qualificadas, que permitam a articulação das dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa.

Desse modo, Santos (2019SANTOS, F. Sistemas de informação e suas implicações no exercício profissional de assistentes sociais no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS, 16, 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília, 2019. p. 1-13. Disponível em: <https://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/CBAS/article/view/220/215 > Acesso em 08 mar. 2020.
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, p. 2), ao estudar os impactos dos sistemas de informação para o trabalho do assistente social, destaca que:

Os sistemas de informação refratam mudanças ao exercício profissional de assistentes sociais que atuam nesses espaços sócio-ocupacionais. Logo, os instrumentos de trabalho no campo das políticas sociais, como cadastros, questionários, relatórios, requerimentos para seleção de benefícios estão sendo informatizados, impondo nova dinâmica e, de um modo geral, acelerando o ritmo de trabalho – seja pela política de redução dos recursos humanos nessas áreas, seja pelo processo de racionalização e controle do tempo de atendimento – afinal, permitem que o/a trabalhador/a, dentro da mesma carga horária para que foi contratado/a, seja condicionado/a a aumentar a sua capacidade de realizar atendimentos. Em outras palavras, tende a intensificar o processo de exploração do trabalho, posto que parece vantajoso para as instituições a ampliação do número de atendimentos (considerado como produtividade) sem aumentar o tamanho das equipes profissionais.

As reflexões acerca das vivências dos assistentes sociais no contexto da Covid-19 retomam elementos que já vinham sendo problematizados pela categoria, acerca dos sentidos presentes na incorporação das tecnologias aos processos de trabalho, assim como trazem elementos novos para discussão.

Tais reflexões vêm adquirindo considerável acúmulo através de artigos, lives, aulas abertas promovidas por universidades públicas e transmitidas pelo YouTube, publicações do conjunto CFESS/CRESS e demais espaços da categoria, expressando o esforço da profissão em apreender criticamente os rebatimentos da situação sanitária nos seus diferentes espaços sócio-ocupacionais. A análise das situações concretas relativas ao uso de tecnologias na prática dos assistentes sociais permite indicar aos menos três questões fundamentais:

  • O fato de que a incorporação das TICs ao exercício profissional do Serviço Social é um processo histórico que antecede a pandemia, mas que se expande nesse contexto e tende a permanecer no período pós-pandêmico, ao considerarmos que o capital tem se utilizado das mudanças nos processos de trabalho como “laboratórios de experimentação” para o cenário pós-pandemia (ANTUNES, 2020ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo, 1ª edição, 2020., p. 28);

  • A utilização de novas tecnologias no trabalho profissional se dá de forma heterogênea e desigual nas diversas políticas e espaços sócio-ocupacionais nos quais estão inseridos os assistentes sociais, sendo necessário atentar, ainda, para as particularidades regionais;

  • No movimento contraditório da totalidade social, o uso das TICs mostra-se relevante diante do necessário distanciamento social, como forma de proteção aos profissionais e usuários dos serviços, ao mesmo tempo que traz dilemas ético-políticos, teórico-metodológicos e técnico-operativos na condução das intervenções face à tendência de aprofundamento da racionalidade instrumental no cerne da profissão.

Diante desses aspectos, é necessário atentar para a diversidade de realidades sócio-ocupacionais nas quais estão inseridos os assistentes sociais – desde serviços com estruturas totalmente precárias, que não dispõem de telefone fixo, celular institucional, acesso a computadores e internet, nos quais os profissionais, muitas vezes, utilizam recursos próprios como forma de viabilizar o atendimento dos usuários; assim como espaços nos quais os assistentes sociais manuseiam sistemas eletrônicos sofisticados e que agora estão sendo redimensionados em decorrência do atual contexto.

Considerando os limites do presente trabalho, sem deixar de atentar para a totalidade de espaços sócio-ocupacionais nos quais se insere a profissão e que se relacionam com o uso das TICs – a exemplo da Assistência Estudantil nas Instituições Federais de Ensino, do Sócio-jurídico, das diversas Organizações Sociais, entre outros –, discutimos, no item a seguir, sobre algumas expressões da incorporação de tecnologias na prática dos assistentes sociais que atuam nas políticas de Saúde, Assistência e Previdência Social em tempos de Covid-19.

A incorporação das TICs no tripé da Seguridade: expressões e desafios ao Serviço Social

A Saúde, um dos principais espaços sócio-ocupacionais do Serviço Social ao longo de sua história, tem evidenciado um significativo aumento das contratações de assistentes sociais no período da pandemia. Segundo Soares, Correia e Santos (2020), esse aumento, no entanto, vem sendo marcado pela precarização dos vínculos e condições de trabalho, pela estratégia de plantonização e por constantes ataques às competências e atribuições profissionais.

No âmbito da saúde pública, a adoção ou proposição do uso de Tecnologias da Informação e Comunicação não é algo inteiramente novo. Contudo, a heterogeneidade e sucateamento dos serviços e o (des)financiamento da política, acentuados no processo de contrarreforma, refletem na ausência de recursos tecnológicos mínimos para a atuação profissional.

Diferente de outros espaços ocupacionais que tiveram a suspensão parcial ou total de suas atividades presenciais, a depender da curva de infecção da Covid-19 e das políticas estaduais e municipais adotadas, nos serviços de saúde, em decorrência do caráter essencial, observou-se a predominância das atividades presenciais desde o início da pandemia até o presente momento, com exceção dos profissionais que, sendo do grupo de risco, foram afastados e realocados para atividades remotas.

A experiência prática na política de Saúde, sobretudo, no contexto hospitalar, permite apontar algumas demandas requisitadas aos assistentes sociais com a mediação das TICs: 1- o preenchimento de prontuários eletrônicos; 2- a realização de atendimentos remotos aos usuários e familiares através de contatos telefônicos; 3- reuniões e articulações de redes por meio de contatos telefônicos, e-mails e serviços de comunicação por videochamada; 4- a requisição de visitas virtuais por videochamadas de familiares a pacientes internados sem direito à acompanhante, tendo o assistente social como mediador desse contato; 5- o repasse de informações sobre pacientes a familiares (comunicações de óbitos, transferências e boletins médicos) através de contatos por telefone, celular e WhatsApp.

Diante de tais requisições, os assistentes sociais se deparam com questões éticas, a exemplo das evoluções em prontuários eletrônicos que, em alguns casos, podem ser acessados por vários profissionais; do teleatendimento, que não assegura as condições necessárias à garantia da privacidade e sigilo; das pressões institucionais para que os profissionais assumam atribuições médicas, como o repasse de boletins, comunicação de óbitos, regulação de vagas para transferências e internações; assim como questões que dizem respeito à qualidade das intervenções, na perspectiva de garantir uma instrumentalidade crítica mesmo diante de um contexto de emergencialização, que exige respostas pragmáticas, urgentes.

Nesse processo, o conjunto CFESS/CRESS vem publicando uma série de orientações aos profissionais, no esforço de construir, coletivamente, estratégias que respondam às demandas sem perder de vista os avanços consolidados no Projeto Ético-Político. Dentre as questões apontadas, cabe ressaltar o caráter relativamente novo de uma delas: a solicitação da mediação de assistentes sociais na realização de visitas virtuais por videochamadas. Tal demanda suscitou inquietações sobre os riscos de ordem psicológica e emocional que podem ocorrer no contexto da visita virtual, afetando o paciente e seus familiares. Trouxe, também, reflexões sobre competências que podem ultrapassar os limites do Serviço Social, requisitando a atuação de outros profissionais, como psicólogos e médicos.

O fato de não haver regulamentação específica para o atendimento por videoconferência, remoto ou online, amplamente solicitado no período da pandemia, a exemplo das regulamentações do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal de Medicina, também acentua as inquietações na busca por parâmetros de atuação que, sem desconsiderar o emergencial, não constituam retrocessos aos avanços consolidados pela cultura profissional nas últimas quatro décadas.

Não obstante a isso, é possível identificar que a relativa autonomia profissional e o horizonte da instrumentalidade crítica se colocam como mediações centrais defendidas pelo conjunto CFESS/CRESS nessa conjuntura.

Em relação especificamente ao trabalho do Serviço Social, as/os profissionais devem decidir com autonomia (preferencialmente de forma coletiva) sobre a forma de atendimento mais adequada em cada situação, de modo a atender às orientações, conforme acima mencionado, assim como proteger a saúde do/a profissional e do/a usuário/a. No entanto, caso decidam por atendimentos por videoconferência, estes devem ter caráter absolutamente excepcional, considerando a particularidade deste momento (CFESS, 2020CFESS. CFESS divulga nota sobre o exercício profissional diante da pandemia do Coronavírus. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1679. Acesso em: 10 maio 2021.
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, p.1).

Vale ressaltar que não há consensos no que se refere às respostas às novas e velhas demandas requisitadas ao Serviço Social nessa conjuntura, o que indica a necessidade de aprofundamento do debate de tais pautas na categoria profissional, sem deixar de atentar para as particularidades em relação a cada espaço sócio-ocupacional.

Também reconhecida no âmbito dos serviços essenciais, a Política de Assistência Social, através do Sistema Único de Assistência Social, é chamada a fortalecer sua articulação com o SUS no período de pandemia. A partir da publicação da Portaria nº 54, em 1º de abril de 2020, o Governo Federal estabeleceu uma série de recomendações aos gestores e trabalhadores do SUAS, enfatizando a continuidade da prestação dos serviços socioassistenciais e a necessidade de implantar protocolos de segurança aos trabalhadores e usuários (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Portaria nº 54, de 1º de abril de 2020. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-54-de-1-de-abril-de-2020-250849730. Acesso em: 5 set. 2021.
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).

No referido documento, a orientação posta é a de que o funcionamento dos serviços esteja condicionado às realidades locais, sendo sugerida a flexibilização das jornadas de trabalho, com a adoção de escalas de revezamento, horário reduzido, permissão para o trabalho remoto e fluxos de remanejamento dos profissionais.

Se, por um lado, o reconhecimento enquanto serviço essencial reafirma a importância do SUAS, tal relevância não têm se expressado na garantia das condições mínimas necessárias aos trabalhadores da Assistência, que enfrentaram e continuam enfrentando dificuldades no acesso a Equipamentos de Proteção Individual (EPIs)4 4 Sobre a ausência de EPIs, cabe destacar o Parecer Jurídico nº 5 /2020 - E, que apresenta um levantamento de denúncias a nível nacional, e constata que o maior número de denúncias sobre a não garantia de EPIs é proveniente da política de assistência social (CFESS, 2020a). de qualidade, além de sua inclusão tardia como grupo prioritário no Plano Nacional de Imunização.

Cabe destacar que, nos serviços da Política de Assistência Social, o atendimento presencial continuou sendo prestado pelos trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sobretudo, em resposta ao aumento exponencial das demandas relativas ao CadÚnico e ao Auxílio Emergencial, para além do Bolsa Família (BF), do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e demais auxílios da proteção social básica (BRASIL, [2021]BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. Acesso em: 5 set. 2021.
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).

Da mesma forma, a média e alta complexidade também se deparam com o aumento das demandas relativas à violação de direitos5 5 Em março de 2021 o Disque 100 registrou um aumento de 165% de denúncias relativas à violação de direitos em comparação com o mesmo período em 2020 (BRASIL, 2021). e do agravamento das situações de vulnerabilidade e risco social das populações que são encaminhadas a serviços como o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), Centro POP, Casas de Acolhimento e Repúblicas.

A orientação estabelecida na Portaria nº 54/2020 tornou regra os atendimentos remotos, embora os atendimentos presenciais e visitas domiciliares também tenham permanecido no cotidiano de trabalho das equipes, de forma excepcional – ao menos inicialmente – para a realização de intervenções não executáveis por meios remotos, de forma a requisitar a avaliação constante das equipes sobre a adequação dos meios às situações de cada usuário e família acompanhada (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Portaria nº 54, de 1º de abril de 2020. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-54-de-1-de-abril-de-2020-250849730. Acesso em: 5 set. 2021.
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).

Observa-se6 6 Tal observação adveio da prática como assistente social na Política de Assistência, assim como do conjunto de experiências socializadas pelo Conjunto CFESS/CRESS e de outros espaços da categoria profissional. que a incorporação das TICs na Política de Assistência Social vem se ampliando devido à necessidade dos atendimentos remotos7 7 A entrevista realizada pelo CFESS Coronavírus: e quem trabalha na política de assistência social? (CFESS, 2020b), com a Assistente Social Kelly Mellati, traz importantes elementos que problematizam o trabalho remoto na Assistência Social. e tem sido marcada pela utilização de computadores, muitas vezes pessoais, para o acesso a serviços de comunicação por vídeo8 8 Google Meet, Zoom, Skype, Microsoft Teams, entre outros. – espaços nos quais são realizadas reuniões remotas entre as equipes da política e outros serviços que compõem a rede de proteção social –, bem como o uso de telefone, celular e aplicativos de mensagens para o contato com os usuários acompanhados. A partir dessa nova modalidade de intervenção ampliada na pandemia, emergem dilemas éticos, técnicos e o debate do acesso às políticas mediado pelas tecnologias.

A garantia da segurança e do sigilo durante atendimentos remotos a famílias acompanhadas por situações de violação de direitos se constitui como uma das preocupações centrais dos assistentes sociais que atuam nos CREAS, tendo em vista o fato de ser impossível garantir que uma terceira pessoa não esteja controlando, monitorando ou ameaçando o usuário atendido, o qual, muitas vezes, convive com o violador.

Além disso, a adoção dos atendimentos remotos também evidenciou os limites das intervenções com crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade, grupos que podem apresentar certa dependência em relação aos familiares, acentuando a discussão sobre questões que envolvem a ética profissional no âmbito das metodologias de trabalho remoto.

Os processos de reintegração familiar e o direito ao contato das famílias com crianças e adolescentes em situação de acolhimento também foram afetados pela pandemia, despertando especial atenção dos profissionais à necessidade da proteção à saúde das crianças e adolescentes sem desconsiderar a garantia da integridade psicossocial e das possíveis implicações dessas interações à distância.

Importa destacar que as populações atendidas pela Assistência Social geralmente se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica, não dispondo de meios básicos de inclusão digital, como celular, telefone e internet, evidenciando o fato de que as TICs estão longe de se adequarem às realidades vivenciadas por esses sujeitos para o acesso às políticas sociais.

Já no âmbito da Previdência Social, o processo de (des)financiamento e reestruturação que vem ocorrendo desde os anos 1990, ganha fôlego no período de pandemia sob a justificativa da necessidade de distanciamento social. Expressão disso é o fomento à digitalização do acesso, caracterizado pela ampliação dos atendimentos via aplicativo (Meu INSS) e telefone (através do 135), com a migração de serviços antes ofertados presencialmente e que passam a ser disponibilizados apenas nos meios digitais. Ressalte-se que os investimentos do INSS no uso das TICs antecedem o cenário pandêmico, como estratégia de substituição do atendimento presencial nas agências.

Paralelo a isto, se observa a progressiva redução do quadro de profissionais em decorrência de aposentadorias e não reposições; o aumento do tempo de espera nas análises dos processos, diante das suspensões temporárias das avaliações e pareceres sociais para concessão de benefícios previdenciários; e a redução dos atendimentos às demandas espontâneas, mediante a priorização dos atendimentos por agendamento (CFESS, 2020cCFESS. Coronavírus: e quem trabalha no INSS?. Brasília, 2020c. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1744. Acesso em 10 mai. 2021.
http://www.cfess.org.br/visualizar/notic...
).

Vale destacar que muito antes da pandemia, as TICs já estavam presentes de forma significativa no cotidiano do Serviço Social, uma vez que quase todas as intervenções requisitam informações localizadas nos sistemas da instituição. Da mesma forma, não é novidade que o trabalho dos assistentes sociais na Previdência Social vem, há algum tempo, sofrendo sérios ataques potencializados a partir da introdução das TICs nos processos de trabalho. Contudo, o contexto da pandemia amplia os desafios para a categoria profissional, demandando investimentos na sua capacidade de resistência e organização frente aos avanços da precarização.

No início da pandemia, os atendimentos do Serviço Social passaram a ser realizados exclusivamente de forma remota; mas, alguns meses depois, parte da categoria voltou a atender de forma presencial, considerando o aumento das demandas por benefícios previdenciários; a própria complexidade do trabalho na política, assim como o fato de que o público-alvo do INSS, em sua maioria, apresenta dificuldades de acesso às tecnologias informacionais para a utilização do sistema eletrônico Meu INSS.

O conjunto de demandas postas aos assistentes sociais do INSS é representado, sobretudo, pelas competências que envolvem o Serviço de Reabilitação Profissional e a Socialização de Informações Previdenciárias e Assistenciais, principais atribuições da profissão no âmbito da Previdência. Nesse período pandêmico, foi requisitado pela instituição que os profissionais realizassem remotamente tais serviços; no entanto, o CFESS, através de Manifestação Técnica9 9 Manifestação Técnica sobre a proposta de pontuação das atividades e estabelecimento de meta de pontuação mensal para fins de estabelecimento de salário, publicada em 1º de fevereiro de 2020. , se colocou contrário à possibilidade de realização remota das ações concernentes à Socialização de Informações Previdenciárias e Assistenciais considerando:

A dimensão ético-política da garantia do sigilo por meio telefônico e condições técnicas objetivas para a execução dessa atividade. A escuta qualificada e segura pela via telefônica apresenta fragilidades para o/a profissional, pois não é possível confirmar se é o/a próprio usuário/a que está recebendo as informações de caráter pessoal, associada à realidade concreta das/os usuárias/os (dificuldade de receber comunicação por e-mail) (CFESS, 2020dCFESS. Manifestação Técnica CFESS - Sobre as atividades de assistentes sociais nos serviços previdenciários: Serviço Social e Reabilitação Profissional. Brasília, 2020d. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/Manifest-TecnicaINSS-2020.pdf. Acesso em 10 abr. 2021.
http://www.cfess.org.br/arquivos/Manifes...
, p.5).

Tal direcionamento, no entanto, não significa a inexistência de atendimentos remotos realizados pelo Serviço Social da Previdência, os quais, por sua vez, vêm ocorrendo nos mesmos moldes observados nas demais políticas (contatos telefônicos, contatos via aplicativos de mensagens, articulações de rede por videoconferência e a utilização de recursos privados dos trabalhadores, diante da não disponibilização de meios institucionais), mas, que tais intervenções não têm sido caracterizadas pela categoria como próprias à Socialização de Informações Previdenciárias e Assistenciais, compreendendo que tal processo de atuação é complexo e mais amplo, de modo a exigir intervenções presenciais.

Assim como nas demais políticas, a questão do não acesso de grande parte da população aos recursos digitais se coloca como central. Na particularidade da Previdência Social, os profissionais têm problematizado os riscos decorrentes da digitalização do acesso, atentando para a possibilidade de fraudes, do aumento de atravessadores – pessoas que se oferecem como mediadores entre os usuários e o INSS, com fins de extorsão –, assim como a tendência de judicialização dos processos e contrapartida de recursos dos usuários, posto que diante dos entraves para o acesso aos serviços, a população mais desprovida desses meios digitais tende a recorrer à contratação de advogados, ou ainda, à mediação de familiares e terceiros.

Outra expressão das tentativas de precarização do trabalho na Previdência é o recente ataque representado pela publicação da portaria 1.199, de 30 de novembro de 2020, que propôs a pontuação do trabalho e o estabelecimento de metas de produtividade para os servidores da autarquia, incluindo os assistentes sociais, em substituição aos registros de frequência.

O CFESS também se posicionou contrário a tal proposta, tendo em vista que, ao incidir diretamente sobre os salários, o programa de pontuação traz sérias implicações para a qualidade dos serviços prestados pelos assistentes sociais e fomenta uma lógica produtivista, que desconsidera a complexidade da instrumentalidade profissional.

É nesse cenário que os assistentes sociais atuantes na Previdência Social se deparam com o desafio de manter a qualidade dos serviços prestados à população usuária em meio às exigências de produtividade, resistindo, ao mesmo tempo, às ofensivas constantes da precarização e defendendo a ampliação do acesso aos direitos sociais.

Considerações Finais

Em tempos de pandemia, assiste-se à crescente incorporação das TICs no cotidiano dos assistentes sociais como forma de adequação a essa nova realidade. Um balanço geral das observações mais visíveis de tal incorporação permite identificar que o manuseio das tecnologias no trabalho profissional vem sendo marcado, predominantemente, não pela utilização institucional de sofisticados sistemas e recursos informacionais – ainda que estes estejam presentes de forma significativa e particular no âmbito de algumas políticas, como a Previdência Social, Assistência Estudantil, Sócio-Jurídico, entre outras – mas, pela precária utilização de recursos institucionais e pessoais (dos profissionais), a exemplo dos meios tradicionais de comunicação por voz e texto (telefone, celular, e-mail) e das novas tecnologias de comunicação (aplicativos e serviços de texto, voz e vídeo).

Observa-se que a utilização dessas ferramentas produz efeitos contraditórios, posto que possibilita, em determinadas situações, a continuidade dos atendimentos nos serviços públicos, de forma a garantir o distanciamento social necessário, ao mesmo tempo que potencializa tendências de precarização do trabalho, como o aumento da produtividade e do tecnicismo via padronização de tarefas, além de não garantir o atendimento das necessidades das populações em situação de vulnerabilidade socioeconômica, desprovidas dos meios digitais.

Assim, é evidente o necessário aprofundamento desse debate de forma ampla na categoria profissional e o investimento em pesquisas que busquem entender as contradições presentes nessa relação, colocando-se para além de uma perspectiva focada numa suposta recusa “descabida” dos profissionais à modernização tecnológica. Longe disso, o que se defende ao longo deste artigo é que as recusas dos assistentes sociais à utilização das TICs no cotidiano de trabalho têm suas razões de ser e resistir, as quais demandam análises críticas que não menosprezem as formas de reprodução da racionalidade formal abstrata, da precarização do trabalho no capitalismo atual, e seus impactos sobre a profissão.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, ao corpo docente e, em especial, aos Professores Doutores Sébastien Antoine e Ana Elizabete Mota pelas discussões que instigaram a construção deste trabalho ao longo das disciplinas Trabalho na Contemporaneidade e Estudos Avançados em Serviço Social. Agradecemos também às colegas Assistentes Sociais que dialogaram conosco sobre os seus contextos de trabalho durante a pandemia. Por motivos éticos, não citaremos seus nomes, mas fica registrado o nosso profundo agradecimento.

  • 1
    Até novembro de 2020, a autora Erika Valentim atuou como assistente social nas políticas de Assistência Social e Saúde, mais especificamente no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) e em hospitais de referência contra a Covid – 19. Atualmente é assistente social atuante na Política de Educação, assim como a autora Fernanda Paz.
  • 2
    Entende-se como Tecnologias da Informação e Comunicação o conjunto de recursos tecnológicos integrados, como hardwares, softwares, redes, equipamentos móveis, serviços e plataformas de comunicação, entre outros meios que possibilitam a transmissão de informações e constituem canais tecnológicos de comunicação.
  • 3
    Antunes (2020ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo, 1ª edição, 2020., p.18) aponta a “simultaneidade e imbricação trágica entre sistema de metabolismo antissocial do capital, crise estrutural e explosão do coronavírus”, denominando de capital pandêmico a síntese desse processo.
  • 4
    Sobre a ausência de EPIs, cabe destacar o Parecer Jurídico nº 5 /2020 - E, que apresenta um levantamento de denúncias a nível nacional, e constata que o maior número de denúncias sobre a não garantia de EPIs é proveniente da política de assistência social (CFESS, 2020aCFESS. Parecer Jurídico nº 05/2020-E. Brasília, 2020a. <Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/Cfess-ParecerJuridico05-2020-E-EPI.pdf. Acesso em: 5 set. 2021.
    http://www.cfess.org.br/arquivos/Cfess-P...
    ).
  • 5
    Em março de 2021 o Disque 100 registrou um aumento de 165% de denúncias relativas à violação de direitos em comparação com o mesmo período em 2020 (BRASIL, 2021BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. Acesso em: 5 set. 2021.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ).
  • 6
    Tal observação adveio da prática como assistente social na Política de Assistência, assim como do conjunto de experiências socializadas pelo Conjunto CFESS/CRESS e de outros espaços da categoria profissional.
  • 7
    A entrevista realizada pelo CFESS Coronavírus: e quem trabalha na política de assistência social? (CFESS, 2020bCFESS. Coronavírus: e quem trabalha na política de assistência social?. Brasília, 2020b. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1717. Acesso em 05 abr 2021.
    http://www.cfess.org.br/visualizar/notic...
    ), com a Assistente Social Kelly Mellati, traz importantes elementos que problematizam o trabalho remoto na Assistência Social.
  • 8
    Google Meet, Zoom, Skype, Microsoft Teams, entre outros.
  • 9
    Manifestação Técnica sobre a proposta de pontuação das atividades e estabelecimento de meta de pontuação mensal para fins de estabelecimento de salário, publicada em 1º de fevereiro de 2020.
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação Consentimento das autoras.

Referências

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  • BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020 Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm Acesso em: 5 set. 2021.
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  • BRASIL. Março tem aumento de 165% em denúncias de violação a direitos relacionadas à pandemia. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/marco-tem-aumento-de-165-em-denuncias-de-violacao-a-direitos-relacionadas-a-pandemia .Acesso em 09 ago 2021.
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  • CFESS. Coronavírus: e quem trabalha no INSS?. Brasília, 2020c. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1744 Acesso em 10 mai. 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2021
  • Aceito
    31 Ago 2021
  • Revisado
    14 Set 2021
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