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Os trabalhadores em meio à Covid-19 no Brasil: flexibilidade, precariedade, e a mobilização internacional

Workers amid Covid-19 in Brazil: flexibility, precarious work and international mobilization

Resumo

O artigo trata dos trabalhadores de entrega em plataformas digitais no Brasil sobre o pano de fundo da pandemia da Covid-19 iniciada em 2020. Argumenta-se que a crise pandêmica exacerbou tendências recentes na organização do trabalho e propõe-se um quadro interpretativo que enfatiza as transformações em curso nas esferas da produção e da regulação trabalhista, com ênfase para as relações de emprego e trabalho nas plataformas digitais que operam sob a lógica do “trabalho sob demanda”. Dessa perspectiva, são apresentados os resultados de pesquisa conduzida com entregadores em diferentes estados do país durante paralisação nacional da categoria, em julho de 2020, o que permitiu traçar um perfil dos trabalhadores no setor. Finalmente, são discutidas as formas de organização coletiva emergentes entre esses trabalhadores, em particular articulações internacionais estabelecidas por fora das estruturas tradicionais de representação sindical.

Palavras-chave
trabalho; plataformas digitais; Covid-19; precarização; uberização

Abstract

The article deals with delivery workers on digital platforms in Brazil against the backdrop of the Covid-19 pandemic that started in 2020. We argue that the pandemic crisis has exacerbated recent trends in work organization and propose an interpretive framework that emphasizes the ongoing transformations in the spheres of production and labor regulation, with an emphasis on employment and labor relations in digital platforms operating under the logic of “work on demand”. From this perspective, we present the results of a survey conducted with delivery workers in different states of the country during the national strike of the category, in July 2020, which allows us to draw a profile of workers in the sector. Finally, we discuss emerging forms of collective organization among these workers, in particular international articulations established outside the traditional structures of trade union representation.

Keywords
labor; digital platforms; Covid-19; precarious work; uberization

Introdução

Muito embora este seja um processo ainda em pleno desenvolvimento e cujas consequências de longo prazo só poderão ser avaliadas de forma definitiva com maior distanciamento histórico, parece seguro afirmar que o surgimento da Covid-19, enfermidade que se difundiu como surto global por meio da disseminação do novo coronavírus (ou Sars-Cov-2) durante o primeiro semestre de 2020, será no futuro visto como um dos mais importantes acontecimentos das primeiras décadas do século XXI, tendo provocado deslocamentos econômicos, políticos e sociais de relevo por todo o mundo. De fato, certos comentadores já tratam a pandemia como um “acontecimento de época”, isto é, como um evento capaz de acelerar de tal forma a ruptura com arranjos previamente estabelecidos que marca a transição irreversível para um novo período. Como apontaram Smith e Fallon (2020, p. 237)35 SMITH, Nicholas R.; FALLON, Tracey. An epochal moment? The COVID-19 pandemic and China’s international order building. World Affairs, v. 183, n. 3, p. 235-255, 2020., dessa perspectiva, a pandemia da Covid-19 pode ser comparada aos “momentos críticos ou pontos de inflexão que rompem com o status quo, resultando em novas realidades uma vez que a poeira assente”.1 1 Os autores tratam da política internacional. Argumento parecido pode ser encontrado, para citar alguns exemplos ilustrativos, nos estudos sobre a educação (Gurukkal, 2020), no debate sobre o futuro da automação do trabalho por meio da Inteligência Artificial (Coombs, 2020), na reflexão sobre as relações entre a sociedade humana e o meio-ambiente (Silva; Arbilla, 2020) etc. Visões mais abrangentes, de caráter generalizante e com tom crítico, podem ser encontradas em Santos (2020) e Agamben et al. (2020), entre outros.

Por outro lado, analistas diversos têm argumentado que as desigualdades e violências que emergiram em meio à pandemia não foram um raio em céu azul; na realidade, elas expressam tensões profundamente enraizadas nas sociedades contemporâneas (Lauda-Rodriguez et al., 202023 LAUDA-RODRIGUEZ, Zenaida; MILZ, Beatriz; SANTANA-CHAVES, Igor M.; TORRES, Pedro H. C.; JACOBI, Pedro R. Editorial N° 03/2020 The COVID-19 epoch: interdisciplinary research towards a new just and sustainable ethic. Ambiente & Sociedade, v. 23, p. 1-12, 2020. https://doi.org/10.1590/1809-4422asoceditorialvu2020L3ED
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; Carlos, 20209 CARLOS, Ana F. A. (org.). COVID-19 e a crise urbana. São Paulo: GESP/FFLCH-Universidade de São Paulo, 2020.). Nessa linha, Cook et al. (2020)10 COOK, Maria L.; DUTTA, Madhumita; GALLAS, Alexander; NOVAK, Joerg; SCULLY, Ben. global labour studies in the pandemic: notes for an emerging agenda. Global Labour Journal, p. 74-88, v. 11, n. 2, 2020. foram precisos ao considerar que a crise corrente demonstrou a centralidade continuada do trabalho no mundo contemporâneo. Segundo os autores, o contexto oferece à sociologia do trabalho e áreas correlatas a oportunidade para “estabilizar e expandir os campos de visão existentes”, reconsiderando ou revisitando pressupostos estabelecidos à luz dos deslocamentos em curso.

Neste artigo, exploramos as questões em tela com base no estudo de um caso cujas características têm despertado interesse significativo em anos recentes e cuja relevância foi reforçada pela crise – os trabalhadores empregados por plataformas digitais (em geral, na forma de aplicativos de celular) vinculadas a grandes empresas de entrega de refeições, trabalhadores considerados “essenciais” e que não puderam se afastar do trabalho durante a pandemia. Para isso, utilizamos dados obtidos por meio de questionário aplicado a 253 entregadores em julho de 2020 pelo Observatório da Precarização do Trabalho e a Reestruturação Produtiva. A pesquisa foi realizada em meio à paralisação da categoria, a qual esteve articulada com protestos semelhantes em outros países. Recorremos, adicionalmente, a evidências obtidas por meio da observação e interação com trabalhadores engajados nesse movimento, além de documentos ligados às iniciativas de organização coletiva da categoria.

Sem perder de foco o caso dos entregadores, o argumento de fundo é que lidamos com uma crise multidimensional que, atravessada por divisões e hierarquias diversas, não pode ser compreendida sem que se tenha em vista as forças globais que a alimentam. Nesse sentido, as seções a seguir analisam, respectivamente, as relações de emprego e a organização do trabalho nas plataformas digitais, com ênfase à lógica do chamado “trabalho sob demanda”, que se sugere como paradigma geral de regulação do trabalho em meio à pandemia. Em seguida, demonstra-se que essa lógica tem afinidade com reformas trabalhistas aprovadas no Brasil nos últimos anos e que, ademais, tem se afirmado de forma explícita em propostas legislativas e governamentais apresentadas durante a pandemia. Estabelecidos os contextos econômico-produtivo e institucional do caso investigado, o artigo passa à análise dos dados obtidos e à caracterização da categoria dos entregadores ou motofretistas em aplicativos e plataformas digitais, em particular no que diz respeito às suas experiências em relação ao trabalho e ao emprego. Isso abre o caminho para que, na seção seguinte, sejam feitas considerações sobre a paralisação internacional dos entregadores, realizada em julho de 2020. Busca-se, por esse caminho e em referência ao caso dos entregadores, a articulação entre três principais dimensões: a experiência do trabalho em meio a transformações estruturais de vulto; os enquadramentos do trabalho e da proteção social nesse contexto; o surgimento de novas formas de ação sindical e trabalhista entendidas de forma ampla. Finalmente, a conclusão retoma elementos apresentados durante a exposição e sintetiza as descobertas da pesquisa.

O trabalho e o emprego nas plataformas digitais

Há evidências de que a pandemia da Covid-19 funcionou como uma espécie de laboratório de experimentação para o mundo do trabalho. Robinson (2020)31 ROBINSON, William I. Global capitalism post-pandemic. Race & Class, v. 62, n. 2, p. 3-13, 2020. argumentou que as transformações costumeiramente associadas à globalização foram aceleradas pela pandemia do novo coronavírus, o que teria colocado em movimento uma nova rodada de reestruturação produtiva, sugerindo a emergência de um marco capitalista pós-pandêmico baseado em uma avançada digitalização da sociedade e economia globais. Um componente importante desse processo é o chamado capitalismo de plataforma, fenômeno fortemente relacionado ao uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs), destacadamente por plataformas digitais que intermedeiam relações comerciais, de prestação de serviços e de contratação de trabalhadores.

A expressão “capitalismo de plataforma” é empregada para se contrapor às versões mais apologéticas do modelo, cujas variações mais conhecidas são: economia-compartilhada, parceria, empreendedorismo e economia colaborativa. Outras denominações incluem ainda: digital economy e gig economy (De Stefano, 201613 DE STEFANO, Valerio. The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work, crowdwork, and labor protection in the “gig-economy”. Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, n .3, p. 471-504, 2016.; Kalil, 201920 KALIL, Renan B. Capitalismo de plataforma e Direito do Trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. 2019. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.). Há nuances entre elas, mas explorá-las com o devido pormenor e de forma exaustiva afastaria dos propósitos mais diretos deste artigo. Segundo Tom Slee (2017)34 SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017., o termo “economia de compartilhamento” (sharing economy) foi cunhado em 2011, mas seu uso se intensifica e começa a ganhar eco no mainstream a partir de 2013-14, período imediatamente posterior à grande recessão internacional de 2008. Desde cedo, o fenômeno foi associado às noções de “sustentabilidade” e de novas práticas de consumo, com base na sugestão de que o compartilhamento de produtos e serviços em plataformas digitais permitiria reduzir custos e evitar desperdícios.

Muito embora essas ideias continuem em voga, os discursos corporativos se mostraram vulneráveis no que toca à questão o trabalho. Nesse ponto, o termo “uberização” (Abílio, 20201 ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020., 2017; Antunes, 20187 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.), referência à marca-símbolo desse processo, a companhia norte-americana Uber Technologies, mas associado ao capitalismo de plataforma em geral (Srnicek, 201736 SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity, 2017.), assumiu sentido eminentemente crítico a suas relações laborais, tendo em vista os esforços das empresas para distanciar as tarefas realizadas sob sua guarida tanto de um enquadramento trabalhista (tratando os usuários como “parceiros” ou “empreendedores”) quanto de uma atividade propriamente econômica (o serviço de transporte de passageiros podendo ser tratado como simples “carona”, por exemplo). Na prática, porém, é difícil esconder que empresas como a Lift, nos Estados Unidos, e em seguida a própria Uber, internacionalmente, encontraram uma maneira de burlar a legislação trabalhista para criar negócios que disfarçam uma forte exploração laboral como economia de compartilhamento.

Ainda que o capitalismo de plataforma não seja uma ruptura com a relação capital-trabalho típica do capitalismo, ele introduz novidades, às quais faz-se mister dedicar uma atenção mais detida. As plataformas funcionam como um centro irradiador de externalizações (redes de clientes e fornecedores), operando como intermediadores entre os consumidores finais e os produtores, mas podem também organizar o processo de produção de bens e serviços e contratar trabalhadores (em geral, com vínculos instáveis e remuneração por hora).

No exemplo da empresa Uber, a plataforma funciona como intermediadora entre os usuários de transportes e os motoristas, fornecendo o instrumento de alocação de encontros – o aplicativo conectado aos telefones celulares, tanto dos motoristas quanto dos passageiros. Nesse caso, o elemento operatório (o trabalho) está vinculado a um contrato que prevê a realização não de tarefas repetitivas por determinado período (como no taylorismo), mas sim aleatórias, de acordo com a demanda. Há, aqui, afinidade evidente com recentes legislações trabalhistas que incorporam a lógica de um “contrato” que define um trabalho de caráter aleatório e eventual, vinculando a remuneração não a uma jornada (onde muitas tarefas – semelhantes ou diferentes – podem ser realizadas numa unidade de tempo), mas diretamente à tarefa realizada (uma corrida em determinado tempo).

Nesse sistema de produção de serviços (no caso da Uber, os transportes; no caso dos aplicativos de entregadores de refeições, as entregas por meio de delivery), a visão tradicional de uma relação de emprego parece se esfumar, já que não faria sentido a manutenção de uma posição ocupacional para a qual não haveria correspondência entre a prestação de um serviço fixo que se repete no tempo e o contratante desse serviço. Na esfera laboral, assim, essas tecnologias introduzem um componente de normalização do trabalho precarizado e intermitente, que antes era “atípico” (a informalidade, o vínculo sem reconhecimento de uma relação de emprego via carteira de trabalho) e agora pode se tornar “típico”. Há um debate internacional dentro do universo jurídico sobre as relações de trabalho no modelo Uber: a questão gira exatamente em torno do reconhecimento do vínculo trabalhista entre empresa (a plataforma) e seus trabalhadores, e o seu camuflar sob o termo “empreendedorismo” ou “prestação de serviços”.

Esse caráter aparentemente não-mediado por instituições (sindicatos, associações patronais, convenções coletivas, leis trabalhistas, e sequer pelo contrato de trabalho tal como tradicionalmente compreendido) torna o modelo do trabalho por plataforma sedutor para o tipo de empresa que busca se desvencilhar dos custos fixos e enxugar todas as fontes de deseconomias, isto é, os direitos trabalhistas e a massa salarial tidas como inflexíveis. Nesse sentido, a suposta independência do trabalhador por-conta-própria é a mais completa dependência em relação aos gostos e preferências de um mercado que, sob o verniz de uma simples intermediação mercantil, passa a ser submetido a uma administração de novo tipo – aquela operada pelos algoritmos, controlados pelas empresas, que intermedeiam os contatos e a concorrência nas plataformas (no caso em vista, o encontro do motofretista com o seu pedido e com o destino, mas também do cliente com o produto comprado e assim por diante), algoritmos cuja opacidade dificulta a supervisão democrática.

Como se sabe, as plataformas digitais não inauguraram as estratégias de externalização nas quais persiste um “forte controle dos processos produtivos”, tendência há muito identificada nas redes globais de produção (Yeung; Coe, 201541 YEUNG, Henry Wai-chung; COE, Neil M. Toward a dynamic theory of global production networks: GPN Theory. Economic Geography, v. 91, n. 1, p. 29-58, 2015., p. 47). Não obstante, elas aprofundam e radicalizam essas tendências. Um exemplo disso é a terceirização, componente absolutamente essencial desse modo de organização do trabalho, uma vez que ele se sustenta em um modelo em que as subcontratações arcam com o ajuste das variações dos negócios: a força de trabalho funciona como buffer, no sentido de que se lança mão dela apenas no momento necessário (sem arcar com os custos de contratação, manutenção e tributação). Entrar no jogo da plataforma digital implica aceitar uma disponibilidade absoluta da força de trabalho: ser demandado a qualquer hora e a qualquer lugar. As TICs viabilizam esse estado de atenção e prontidão permanentes, o que fornece uma percepção particular do tempo: a jornada não é mais regulada pelo relógio, nem pelo cronômetro, mas pela “escolha” do trabalhador.

No entanto, se a forma de contratação é atípica, isso não significa a ausência de controle sobre o trabalho. O aplicativo opera por meio de algoritmos que ditam o ritmo, por exemplo, do motofretista ou entregador (Mazzotti, 201725 MAZZOTTI, Massimo. Algorithmic life. Los Angeles Review of Books, 22 jan. 2017. Disponível em: https://lareviewofbooks.org/article/algorithmic-life/
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). Esse é o elemento novo, automático, que deve ser acrescentado ao modelo conhecido oriundo do universo industrial. Nisso, é relevante a participação do próprio cliente, por meio da atribuição de “pontos” (ranqueamento) atribuídos ao trabalho do entregador. Com isso, ela exerce uma enorme pressão no ritmo de trabalho, comprimindo o tempo entre uma entrega e outra, exigindo velocidade, prontidão e afabilidade, ou seja, riscos: risco de acidente, mas também de não estar à altura da “cordialidade” esperada pelo cliente. O julgamento do destinatário do serviço conta. Acontece, aqui, algo que pode ser comparado à “gestão” participativa presente nos círculos de qualidade, grupos de expressão, células de produção e trabalho em grupo em geral do mundo industrial e manufatureiro, na qual qualquer pretensão de envolvimento real é confrontada com o constrangimento de metas e performance exigidas pela empresa (Aguiar, 20175 AGUIAR, Thiago. Maquiando o trabalho. Opacidade e transparência numa empresa de cosméticos global. São Paulo: Annablume, 2017.; Lapa, 201422 LAPA, Thais. Processo de trabalho, divisão sexual do trabalho e práticas sociais das operárias na indústria eletroeletrônica no contexto da flexibilidade produtiva. 2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, 2014.; Durand, 200314 DURAND, Jean P. A refundação do trabalho no fluxo tensionado. Tempo Social, v. 15, n. 1, 2003.). Desse modo, em uma relação de trabalho atravessada por forte competição por metas e por prêmios, a apartação do trabalhador improdutivo pode significar uma sentença de morte laboral, da mesma forma que o cancelamento por parte do cliente, no caso dos entregadores de mercadorias. Se, no caso da indústria, o envolvimento do trabalhador podia ainda estar associado à qualidade do produto, no caso do serviço de entrega o único critério de julgamento do trabalho é o arbítrio do consumidor, além das exigências de cumprimento dos pedidos no tempo certo. Sumariamente, a forma atípica da relação contratual reforça a lógica do controle do trabalho.

Além disso, as plataformas permitem uma análise das performances, instrumento de avaliação que pode ser utilizado como forma de pressionar a força de trabalho no sentido de sua disciplinarização e conformidade à ordem de produção. Também nesse quesito as semelhanças com a organização fabril pós-reestruturação produtiva são notáveis, no que se refere aos seus efeitos de controle – o pavor de ter o nome “sujo” e, com isso, entrar em uma lista de indesejáveis.2 2 O pavor de ter o nome sujo é a situação que ocorre em fábricas onde a performance é exibida num painel “público” dentro da seção para que todos possam ver e “julgar” por si mesmos qual é a posição relativa de cada trabalhador em relação ao seu colega, quando se trata de alcançar metas ou objetivos de produção (Mello e Silva, 2004, p. 241). Esse procedimento de gestão, incômodo moralmente para aqueles que estão sob escrutínio, já foi inclusive questionado pela Justiça do Trabalho, por conta da queixa de representantes dos trabalhadores que veem nele uma forma obtusa de se obter produtividade, às custas do equilíbrio psíquico necessário. Ele foi muito utilizado em manufaturas sob a dominância dos métodos chamados toyotistas, nos anos 1990 e depois. O pavor de ter o nome sujo está ligado ao fato de que o trabalhador menos “performático” (leia-se: menos produtivo) corre o risco de ser alijado da equipe e, no limite, desligado da firma. A avaliação pelos pares, procedimento comum no trabalho dito em grupo da manufatura celular, reaparece em um formato mais cerrado e difuso, pois a não-conformidade (termo técnico empregado nas fábricas organizadas segundo os preceitos da filosofia da “qualidade”) agora se situa não apenas dentro da relação de trabalho, mas também fora dela (o consumidor do produto – no caso, um serviço – também julga).

No caso das plataformas digitais, existe um forte esquema de controle das performances, que é utilizado não só para orientar as demissões, mas também para oferecer benefícios mínimos para quem é “disciplinado” no aplicativo – por exemplo, pedidos considerados melhores pelos entregadores – em detrimento de quem não trabalha todos os dias ou é mais irregular, sendo que nesse último caso pode-se chegar à exclusão dos “improdutivos”. Punições indicam que o momento da decisão fatal pode estar se aproximando: relatos incluem ficar dois dias sem entrega, para no dia seguinte ser “premiado” com o pedido de entrega de vinte garrafas de dois litros de Coca-Cola em uma bicicleta (depoimento de um entregador, São Paulo, 1/07/2020). Mesmo com um mercado de trabalho pró-empregador (abundância da oferta de trabalho), é notável como isso não torna desnecessário um supercontrole do processo, destinado a minar as resistências dos trabalhadores, já que aquele, em regra, responde a uma ascensão da influência dos sindicatos, com a consequente restituição da prerrogativa patronal diante da ameaça de rigidez na barganha coletiva (a famosa flânerie operária analisada por Coriat, 197812 CORIAT, Benjamin. L’Atelier et le chronomètre. Paris: Christian Bourgois, 1978., traduzindo o “fazer cera” de Taylor, 199537 TAYLOR, Frederick W. Princípios de Administração Científica. São Paulo: Atlas, 1995.). Ora, no momento, os sindicatos estão na defensiva, e a ação coletiva da base, bastante fragilizada – especialmente em tempos de pandemia. Essa é uma das razões pelas quais as iniciativas mobilizadoras dos motofretistas ou entregadores, que serão analisadas a seguir, ganham relevância.

Finalmente, o contínuo alimentar de dados com informações próprias, ou da própria performance (que ademais, deixa de ser objeto de deliberação do agente mesmo e passa a ser possível por meio do acompanhamento de tempos e percursos efetuado pelo próprio dispositivo digital, de maneira que se torna difícil burlar o sistema) passa a ser um instrumento de dominação permanente – quanto mais completo, mais perigoso – a ser usado em qualquer circunstância mais conveniente para o empregador. Dessa maneira, estar sempre conectado, online, não é uma escolha, mas uma necessidade posta pelo próprio trabalho exercido pelos entregadores, seja pela necessidade da remuneração, seja pelas exigências implícitas ou explícitas do sistema. A servidão ao meio técnico digital (que se materializa, na ponta, pelo telefone celular) se torna circular: fundamental para obter uma renda, é também a fonte de mais subordinação, tanto pelo mercado quanto pelo processo de trabalho (tempos, ritmos, pausas etc.).

A crise da Covid-19, convém dizer, acelerou a adoção de tecnologias digitais de mediação do trabalho anteriormente estabelecidas (como o trabalho remoto e as próprias plataformas digitais, por exemplo), o que se deu em diferentes setores de atividade e deverá ter consequências relevantes nos próximos anos, inclusive no que diz respeito às questões do controle, vigilância e resistência nos locais de trabalho. Vislumbra-se, assim, uma “transição pandêmica” definida pela exacerbação de tendências no mundo do trabalho que já se desenhavam antes da crise (Pirone, 202129 PIRONE, Maurilio. Pandemic transition: Techno-politics and social reproduction struggles. Human Geography, v. 14, n. 2, p. 288-291, 2021.; Hodder, 202019 HODDER, Andy. New technology, work and employment in the era of COVID-19: reflecting on legacies of research. New Technology, Work and Employment, v. 35, n. 3, p. 262-275, 2020.; Verdin; O’Reilly, 202139 VERDIN, Rachel; O’REILLY, Jacqueline. A gender agenda for the future of work in a digital age of pandemics: jobs, skills and contracts. Düsseldorf: Hans-Böckler-Stiftung: Wirtschafts- und Sozialwissenschaftliches Institut (WSI), 2021.). Se é verdade que a opacidade dos algoritmos dificulta a supervisão democrática, não se trata de terreno inescrutável. Como se verá a seguir, as transformações analisadas têm motivado respostas regulatórias, inclusive no que diz respeito à administração da força de trabalho, e são objeto de resistência trabalhista (Joyce; Moore, 202027 MOORE, Phoebe.; JOYCE, Simon. Black box or hidden abode? The expansion and exposure of platform work managerialism. Review of International Political Economy, v. 27, n. 4, p. 926-948, 2020.), o que se acentuou durante a pandemia.

Plataformas digitais e o futuro da regulação do trabalho

As considerações até aqui apresentadas sugerem que há uma afinidade entre a flexibilização da relação contratual e as formas de controle do trabalho que emergem nas plataformas digitais (Abílio, 20172 ABÍLIO, Ludmila C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 19 fev. 2017. Disponível em: http://passapalavra.info/2017/02/110685
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). Em relação ao objeto mais imediato da pesquisa, será utilizada a designação: trabalho sob demanda por meio de aplicativos (TSDA),3 3 Essa é a designação proposta por Kalil (2019). expressão que descreve bem a situação dos entregadores. Convém reconhecer, no entanto, que as transformações em curso vão além das plataformas digitais, de modo que as definições utilizadas devem se integrar a um quadro de análise mais geral, como propuseram Abílio, Amorim e Grohmann (2021, p. 28)3 ABÍLIO, Ludmila C.; AMORIM, Henrique; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias v. 23, n. 57, p. 26-56, 2021. https://doi.org/10.1590/15174522-116484
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, que associaram o trabalho sob demanda à uberização, fenômeno amplo caracterizado pela “consolidação e gerenciamento de multidões de trabalhadores como trabalhadores just-in-time”.

Não por acaso, no âmbito regulatório, as movimentações do parlamento brasileiro em termos de uma proposta para estabelecer um “contrato com valor por hora” funcionam como um complemento perfeito para aquele tipo de organização do trabalho, em linha com o regime geral de flexibilização que marca as reformas trabalhistas de viés liberal em anos recentes. O caso do Projeto de Lei (PL) n° 3748/20 é emblemático, pois visa à criação de um novo contrato de trabalho que acolha a figura da “prestação de serviço” por demanda contratada por plataformas (exatamente o tipo de trabalho que fazem hoje os entregadores por aplicativos),4 4 Significativamente, o pronunciamento do advogado da Uber foi de que os termos do Projeto eram “equilibrados” (Barros, 2020). a concorrer com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O PL admite, por um lado, a necessidade de inserir direitos válidos para todos os outros trabalhadores formais – tais como repouso semanal; férias com adicional de 1/3; décimo-terceiro salário (pagos de forma proporcional ao tempo de trabalho); licença-maternidade; afastamento remunerado em caso de incapacidade por doença ou acidente de trabalho. Por outro lado, ela sanciona a remuneração por hora trabalhada. Isso não é o mesmo que o pagamento por quilometragem (como é feito hoje, e que conta ainda com um adicional de 30% de tempo de espera segundo uma tabela fixa de valores), mas, uma vez que ela não remunera o tempo à disposição do aplicativo, mas apenas o efetivamente dedicado às corridas, é pouco provável que essa alternativa modifique substancialmente a prática corrente, a não ser pelo fato de que limita a gestão da própria corrida pelos entregadores por meio da aceleração ou diminuição da velocidade.

Em suma, a ideia norteadora é afastar-se da relação salarial típica e remunerar apenas o tempo efetivamente trabalhado, sem qualquer compromisso contratual entre empregadora e empregado para além do curtíssimo prazo. Com o propósito de legitimar o trabalho “por demanda” ou o “contrato por hora” no interior de um regime protetivo que contém os direitos básicos da condição assalariada no país, o PL mina por dentro a correspondência entre jornada e remuneração, esgarçando os limites à flexibilidade que a lei até então bem ou mal lograva conter, abrindo as comportas da uberização do trabalho para o conjunto da classe trabalhadora no Brasil.

Essa proposta acompanha um processo mais geral de desregulamentação do marco legal do regime de trabalho no país, que tem na Lei n° 13.467, chamada de Reforma Trabalhista do Governo Temer (2016-2018), o passo que permitiu a extensão da jornada de 8h diárias e 44h semanais para 12h diárias com 36h de descanso, além da possibilidade de “fatiar” as férias de 30 dias em até três vezes e, por fim, a regulamentação do trabalho intermitente (um novo parágrafo para o Artigo 443 da CLT), reconhecido como um novo tipo de contrato. Daí a correlação que se estabelece, na discussão corrente, entre o trabalho intermitente (Oliveira, 201828 OLIVEIRA, Roberto V. de. Brazilian labour reform in historical perspective. Global Labour Journal, v. 9, n. 3, p. 319-338, 2018.; Krein, 201821 KREIN, José D. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Social, v. 30, n. 1, p. 77-104, 2018.), o “trabalho sob demanda” e o “contrato por hora”. O outro front de desregulamentação é a instituição da Pessoa Jurídica (PJ) na relação de trabalho, que concorre com o tipo de formalização trabalhista tradicionalmente reconhecida no país: o contrato regido pela CLT, no qual estão contidos os chamados “direitos”, inclusive os previdenciários. Também neste ponto, é evidente a afinidade com a lógica das plataformas digitais, que costumam caracterizar os trabalhadores contratados como “empreendedores”. A expansão das empresas de aplicativo, que alcançam, como se viu acima, milhões de trabalhadores, ocorre no quadro desse pano de fundo de ofensiva política das “reformas”. Nesse sentido, o tipo de contrato (flexível) e o tipo de trabalho (intermitente, inconstante, variável) estão relacionados coerentemente.

O contexto da pandemia ilustrou de forma dramática como as contrarreformas de viés liberal constituem ainda ameaça urgente, o que ficou patente no caso brasileiro. Embora a chamada “minirreforma trabalhista” proposta pelo governo de Jair Bolsonaro tenha sido barrada pelo Senado em abril, o que foi consequência de disputas entre os poderes executivo e legislativo em meio a acusações de que o governo estaria aproveitando a crise sanitária para aprovar sem escrutínio a supressão de direitos trabalhistas (Lemos, 202024 LEMOS, Iara. Senado barra minirreforma trabalhista de Bolsonaro. Folha de S.Paulo, 17 de abr. de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/lideres-do-senado-fecham-acordo-para-nao-votar-a-mp-do-emprego-verde-e-amarelo.shtml
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), os planos para a criação de uma “carteira de trabalho verde e amarela”, que instituiria uma categoria rebaixada de vínculo trabalhista, voltaram a ser noticiados recentemente. Desta vez, o centro da proposta seriam os contratos por hora: um mesmo trabalhador ofereceria seus serviços a diferentes empregadores, que pagariam apenas pelas horas trabalhadas, em proporção ao salário-mínimo. Segundo noticiou a imprensa, “Guedes e sua equipe consideram que o emprego mudou e vai mudar ainda mais no pós-covid, exigindo a simplificação dos contratos e a redução dos encargos e enfrentamento da CLT” (Fernandes, 202016 FERNANDES, Adriana. Em estudo por Paulo Guedes, Carteira Verde Amarela simplifica a contratação. O Estado de S. Paulo, 3 de jul. de 2020. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,em-estudo-por-paulo-guedes-carteira-verde-amarela-simplifica-a-contratacao,70003352560
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). Eis, aqui, a pandemia como laboratório de experimentação para o futuro da regulação do trabalho.

Os entregadores no Brasil: um trabalho precarizado, jovem, masculino e negro

As seções anteriores indicaram que transformações estruturais aceleradas pela pandemia impactaram o debate sobre a regulação do trabalho, que surge como um importante campo de disputa. Essa regulação, ainda que frequentemente assuma ares de generalização, não é compreensível se desconectada das experiências concretas dos trabalhadores submetidos aos deslocamentos em vista. Nessa linha, os entregadores motofretistas são a categoria emblemática do fenômeno da uberização do trabalho, juntamente com os motoristas de aplicativo da própria Uber e de suas concorrentes diretas. Mas o termo logo passou a ser associado também a operações parecidas – em suma, todas aquelas em que se observem as características do TSDA, sem contrato fixo (e, portanto, sem proteção social ou direitos do trabalho), e em que o próprio trabalhador é quem arca com os custos de obtenção e manutenção dos instrumentos de trabalho (o carro, a moto, a bicicleta etc.). Em termos mais amplos, a expressão designa todo o tipo de atividade que se realiza a partir de demandas pontuais por meio de um empregador, que funciona como uma agência prestadora de serviços (de entrega em domicílio, de tarefas domésticas, de beleza, de segurança, de consultoria, de aulas, de reparos e manutenção, e de uma infinidade de outros serviços) alocadora dessas capacidades, de acordo com as necessidades do cliente. Como se argumentou na seção anterior, a hipótese de fundo no debate sobre o assunto é que características encontradas no trabalho dos motofretistas e similares indicam tendências mais gerais de reorganização do trabalho contemporâneo.

Nas passagens que se seguem, serão analisados os dados de pesquisa realizada pelo Observatório da Precarização do Trabalho e a Reestruturação Produtiva5 5 Grupo de investigação sobre a situação de precarização do trabalho e os impactos da reestruturação produtiva na atualidade (http://www.esquerdadiario.com.br/Observatorio-de-precarizacao). , que cobriu 253 trabalhadores de entrega em aplicativos em diferentes regiões do país, categoria emblemática dos processos aqui discutidos. A pesquisa foi efetuada em um momento particular: o movimento de paralisação da categoria, realizado em 1º de julho de 2020. Formulários com perguntas sobre as condições de trabalho, emprego e saúde do entregador foram respondidos pelos trabalhadores, o que permite traçar um perfil geral da categoria no Brasil.

Os questionários foram preenchidos eletronicamente, por meio de uma “nuvem” criada pelos pesquisadores que conceberam o instrumento (ver nota 5, abaixo), mas coletados presencialmente. Constou de dez perguntas objetivas. Isso permitiu a sua pronta tabulação. O acesso aos respondentes dependeu do engajamento na manifestação do dia 1/07, pois o questionário foi entregue e recolhido no mesmo dia, e a abordagem foi ombro a ombro, sem filtragem prévia. Nesse sentido, ele foi aleatório, porém limitado pela circunstância da participação no movimento – não pretendeu, portanto, acompanhar qualquer fidelidade sociográfica da categoria como critério determinante. No entanto, os 253 questionários foram distribuídos nacionalmente, embora de maneira desigual, entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Bahia e Rio Grande do Norte, abrangendo neles os centros urbanos (por exemplo: em São Paulo, as cidades de Osasco, Guarulhos, Campinas e o ABC; no Rio, a capital e Niterói), mais o Distrito Federal (Brasília). Devido à rapidez do processo ligada à oportunidade que a ocasião facultava, não foi feita uma apuração exata da taxa de recusa, mas estima-se que tenha sido baixa (a maioria dos abordados concordou em participar).

Tabela 1
Distribuição dos questionários por estados da federação e regiões

Pode-se destacar vários aspectos dessa espécie de fotografia do grupo social dos motofretistas entregadores, incluindo-se aqui tanto os motoboys quanto os bikeboys. A estratificação entre uns e outros não é desimportante para se entender esse universo ocupacional: os segundos tendem a ser compostos por trabalhadores mais precarizados do que os primeiros, uma vez que as barreiras à entrada desses são mais elevadas (é necessário dispor do veículo próprio, uma motocicleta, de custo por vezes proibitivo para aqueles).

Os trabalhadores que fizeram parte da pesquisa são do sexo masculino em sua ampla maioria (96%), e jovens: 82% têm idade até 24 anos. Enquanto na Europa, Ásia e América Latina o pertencimento étnico da força de trabalho está fortemente associado à população imigrante (no caso da América Latina, de países mais pobres da região para os centros metropolitanos de cidades como Buenos Aires, por ex.), no Brasil a predominância é de negros (autodeclarados pretos e pardos) quando comparados com a população autodeclarada branca: 67% contra 31%. Significativamente, no dia da paralisação, alguns entregadores faziam alusões ao movimento norte-americano “Vidas Negras Importam” (Black Lives Matter), estampando dizeres em suas mochilas de trabalho que faziam referência aos protestos em curso naquele país.

As condições de trabalho atestam uma condição bastante precária e vulnerável, pela ausência de mecanismos de proteção, o que abre grande margem à exploração pelos empregadores. Com respeito à jornada diária, 34,7% declararam um trabalho que dura entre 10 e 12 horas, e 32,4% declararam uma duração até mesmo maior, entre 12 e 15 horas, enquanto um percentual de 9,8% declarou uma jornada de mais de 15 horas por dia. Essa ampla prontidão se explica não apenas pelas condições do mercado de trabalho (desemprego, alta disponibilidade para atividades informais e multiatividade), como também pelo modo como o trabalho é ajustado às necessidades do seu executor, dada a enorme flexibilidade horária e semanal que ele possibilita. Por isso, as longas jornadas são vistas como uma oportunidade de eventualmente compensar perdas com outras atividades ou então aumentar o ganho quando não há outra.

É preciso dizê-lo: longe de constituir um “bico”, isto é, uma atividade eventual ou transitória, o trabalho como entregador era a atividade principal há mais de 2 anos para 31% dos entrevistados; entre 1 e 2 anos para 28%; entre 6 e 12 meses para 16%; e de 3 a 6 meses para 15%. Aqueles que no momento da enquete realizavam a atividade há menos de 3 meses somavam apenas 8%. Além disso, reforçando a ideia de um provisório que se torna permanente, a pesquisa mostrou que 75% deles trabalha apenas com os aplicativos; somente 25% compatibilizam o trabalho de entregador com outra atividade, o que sugere que esse é suficientemente absorvedor de energia vital para não deixar muito espaço para outras possibilidades no interior de um mesmo ciclo (cuja duração – diária, semanal, quinzenal – pode ser variável, de acordo com os arranjos privados).

A relativa estabilidade na atividade contrasta, porém, com a enorme rotatividade intersetorial, isto é, entre empresas contratantes, uma vez que o entregador pode facilmente pular de uma para outra, passando por períodos (provavelmente curtos) de inatividade – ou ainda trabalhar simultaneamente em mais de um aplicativo, como atestou também a pesquisa: segundo os entrevistados, 69% afirmaram trabalhar na iFood,6 6 A iFood, empresa brasileira cuja controladora, Movile, tem sede em Campinas (SP), é uma das maiores empregadoras do setor. Trata-se de empresa de capital fechado e, portanto, seu balanço patrimonial não está disponível publicamente. Mas é possível enxergar um claro movimento de transnacionalização a partir de 2012, com operações no Vale do Silício norte-americano, bem como o aporte de investimentos de fundos globais. A iFood compete diretamente com outros gigantes na América Latina, o que coloca o país no mapa global do setor. 54% na UberEats, 53% na Rappi, 20% na Loggi, 9% na Bee Delivery, 5% na James Delivery e 16% disseram trabalhar em outras empresas (o total ultrapassando os 100% porque o questionário permitia resposta múltipla nesse quesito, denunciando a disponibilidade a múltiplos empregadores numa mesma jornada). Este fato – a maioria dos entregadores trabalhando para mais de uma empresa de aplicativo – é resultado do trabalho intermitente: como podem ficar muito tempo sem pedidos, os entregadores buscam driblar os vazios de demanda (que são também vazios de remuneração) com a ligação a mais de um aplicativo de entrega de refeições. Mas também é a reação aos “bloqueios indevidos” (termo nativo), isto é, ao cancelamento sumário em uma plataforma (forma “uberizada” de demissão, sem qualquer explicação ou justificativa), o que faz com que eles se protejam ligando-se a mais de um “patrão” ao mesmo tempo.

Os dois fatos se complementam na explicação do multiemprego do entregador: trabalho intermitente e medo do bloqueio ou cancelamento sumário (arbítrio patronal) faz com que o trabalhador busque segurar as alternativas à mão. É a insegurança funcionando como uma ferramenta de gestão do trabalho, pois o receio de perda da renda conduz a uma superdedicação e extensão do tempo disponível para as plataformas. Funciona aqui a tentação de ganhar mais, trabalhando mais, a partir de uma modulação pensada como própria, e por isso mesmo mais administrável e controlável pelo sujeito (“fazer seu próprio horário”). A própria forma como o sistema está concebido (oferecendo uma oportunidade ao executante) leva a uma gestão pela incitação permanente, que se alimenta de uma ideologia da liberdade individual, muito sedutora quando se trata de uma população mais jovem.

Relativamente à remuneração, é necessário distinguir os entregadores motoboys dos entregadores de bicicletas. Com relação aos primeiros, 16,7% declaram ganhar até R$ 1 mil; 21,8% entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil; 16,2% entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil; 13,9% entre R$ 2 mil e R$ 2,5 mil, e 26,9% mais de R$ 2,5 mil. Uma parcela de 4,4% declarou receber menos de R$ 500, ou seja, menos da metade do salário-mínimo. A maioria dos motoboys (54,6%) ganha até R$ 2 mil. Enfim, mesmo tendo em conta os gastos de reprodução, tais como alimentação, combustível, desgaste do veículo etc., sugere-se uma fixação nessa atividade, pois a renda auferida dificilmente seria muito maior com a adição de outros “bicos”. A figura do entregador vai assim, aos poucos, se constituindo como um emprego relativamente “normal” dentro do panorama das novas ocupações do mercado de trabalho.

Com relação aos entregadores-ciclistas, o panorama é um pouco diferente. Com respeito à remuneração, 49% declararam um ganho mensal de até R$ 1 mil. Comparando-se a mesma faixa percentual aproximada para ambas as categorias, o entregador-ciclista tem como renda mensal (bruta) a metade do ganho do entregador-motoboy. Tal percepção de ganhos menores para os ciclistas é confirmada quando nos movemos para a faixa de rendimento de até R$ 2 mil (um valor que não chega a dois salários-mínimos),7 7 O valor do salário-mínimo no Brasil, em setembro de 2020, era de R$ 1.045,00. Pelo câmbio de 29/09/20, equivalia a U$ 185,25. em que está concentrada a grande maioria (88%) deles (74% declararam receber até R$ 1,5 mil). Adicionalmente, a distância percorrida diária nesse grupo, declarada pela grande maioria (90%) dos respondentes do questionário, chega a 100km, enquanto a estimativa para os motoboys é de 52 km, em média.

Os números de distância percorrida/dia sugerem uma intensificação do trabalho que, quando contrastada com a os registros remuneratórios, desenham um quadro de exploração e desgaste. Os altos números de acidentes com as motos e bicicletas dos entregadores corroboram esse último aspecto: pouco mais da metade (51%) declarou já ter sofrido algum tipo de acidente. À condição de vulnerabilidade econômica soma-se o perigo iminente de sérios agravos à saúde, com traumatismos às vezes fatais. Trata-se de uma categoria que convive com o risco permanente, o que não deixa de conferir um certo aspecto de heroísmo, devidamente explorado na representação que os próprios agentes – jovens e fortemente influenciados por uma cultura do desafio – fazem de seu trabalho.

Com a Covid-19, muito desse trabalho foi rapidamente alçado à mira dos observadores, que, sem dificuldade, identificaram aí uma parcela dos chamados “serviços essenciais” em meio à pandemia (juntamente com os profissionais de saúde e os trabalhadores de supermercados e transportes, por exemplo). Parte da reivindicação dos entregadores de aplicativos em seus protestos foi endereçada aos empregadores no sentido de fornecer equipamentos de proteção individual, já que o contato direto com pessoas – os clientes – é quase incontornável. Esse tipo de pauta aproxima o movimento de uma reivindicação típica dos trabalhadores formais, representados por sindicatos.

Estando, portanto, no “olho do furacão” da pandemia, é impossível ficar indiferente aos riscos envolvidos em um tal “trabalho essencial”: o resultado da enquete mostrou que 37% dos entregadores declararam conhecer pessoas que tiveram sintomas de Covid-19, sendo que, dentro desse universo, 73% foram confirmados por meio de testes. A exposição à doença está posta inequivocamente. Além disso, uma vez que os locais de moradia desses trabalhadores estão situados majoritariamente nas periferias, o risco só aumenta. Um círculo vicioso de pobreza, riscos à saúde e condições precárias de trabalho que gira acelerado. É essa população de trabalhadores “essenciais” que forma parte do contingente da força de trabalho mobilizada em tempos de pandemia: saída de um mercado de trabalho congenitamente desestruturado e com forte pressão da informalidade.

A experiência da primeira paralisação internacional dos entregadores

O funcionamento do trabalho sob demanda, especialmente na modalidade de disponibilidade permanente à plataforma de distribuição de tarefas, parece radicalizar a ruptura com a noção tradicional de “empresa” fisicamente localizada. Os novos modelos de negócio – embora possam comercializar bens tangíveis – contém um componente desterritorializado, graças ao emprego das TICs e de novas relações contratuais. No entanto, como notaram Van der Linden e Breman (2020, p. 178)38 VAN DER LINDEN, Marcel; BREMAN, Jan. The return of merchant capital. Global Labour Journal, v. 11, n. 2, p. 178-182, 2020., refletindo sobre as transformações do capitalismo em meio à crise pandêmica, o fato de que parece haver um retorno do “capital mercantil”, dedicado a relações puramente comerciais (“comprar barato para vender caro”) não leva à diminuição do controle sobre a produção (e, portanto, sobre o trabalho); os conglomerados que hoje se dedicam a esse tipo de prática “são usualmente capazes de fazê-lo enquanto intensificam, em vez de relaxar, seu controle sobre a cadeia de produção”.

De fato, como revelam os dados apresentados na seção anterior, a precarização do trabalho, a terceirização, a flexibilização do emprego, a individualização contratual dos “autônomos”, entre outras tendências do trabalho contemporâneo não estão ligadas à operação de grandes empresas transnacionais apenas por relações comerciais difusas, como as atividades de fornecedoras sobre as quais elas podem alegar exercer pouca influência. No caso dos aplicativos de entrega, empresas e marcas globalmente estabelecidas são diretamente responsáveis pelo emprego e agenciamento de trabalhadores precarizados, o que oferece a trabalhadores em diferentes localidades ao redor do mundo alvos comuns e demandas compartilhadas, situação que, desde os anos ao redor da virada do século, tem despertado interesse nos estudos do trabalho como terreno fértil para o surgimento de um novo internacionalismo operário (Wills, 199840 WILLS, Jane. Taking on the CosmoCorps? Experiments in transnational labor organization. Economic Geography, v. 74, n. 2, p. 111-130, 2008.; Evans, 201015 EVANS, Peter. Is it labor’s turn to globalize? Twenty-first Century opportunities and strategic responses. Global Labour Journal, v. 1, n. 3, p. 352-379, 2010.) baseado em conexões “translocais” que desafiam os enquadramentos sindicais tradicionais.

Vale a pena, portanto, lançar o olhar para as respostas coletivas dos trabalhadores empregados pelas plataformas digitais. Evidentemente, quando tratamos de categorias como a dos motofretistas, há obstáculos relevantes. Em geral, aos entregadores empregados por plataformas e aplicativos não se reconhece sequer o vínculo empregatício e a condição de trabalhador, o que significa que frequentemente lhes é negado o direito à organização sindical e, consequentemente, à negociação coletiva tal como estabelecida pelos arranjos usuais de relações industriais. As fronteiras institucionais entre o trabalho reconhecido e o não reconhecido podem ser desafiadas, e há exemplos de sindicatos que as contestam, mas é preciso reconhecer que essas divisões podem também ser reforçadas pelo engessamento das estruturas de representação vigentes.

Uma análise que abarque todas as dimensões da mobilização desses trabalhadores, portanto, não deve ficar excessivamente presa às estruturas institucionais existentes (como os chamados Sindicatos Globais, por exemplo), uma vez que iniciativas por fora dos sindicatos estabelecidos, ainda que não necessariamente avessas a eles, são prováveis em categorias excluídas da representação sindical tradicional. Como um passo nesse sentido, será analisado a seguir o evento da paralisação internacional ocorrida em 1 de julho de 2020, uma emblemática demonstração do potencial de mobilização dos motofretistas-entregadores desde uma perspectiva de baixo para cima. É relevante, em especial, que uma categoria tipicamente “nova” tenha se auto-organizado em diferentes países para lutar por direitos e apresentar demandas às empresas.

Passemos então a uma breve análise dessa paralisação internacional. A partir da unidade crescente na base da categoria, estabeleceu-se uma série de contatos primeiramente entre entregadores do Brasil e da Argentina, difundidos depois para outros países latino-americanos, com vistas a desenvolver uma paralisação internacional. Isso acabou incluindo distintas organizações, entre as quais podem ser citadas a La Red de Trabajadorxs Precarizadxs (Argentina), a Raiders Unidos (Chile), Glovers Unidos (Ecuador), Treta no Trampo (Brasil), Entregadores Antifascistas (Brasil), Repartidorxs Unidxs (Costa Rica), Motociclistas Unidos (México), Ni un Repartidor Menos (México), e Agrupación Trabajadores de Reparto (Argentina). Foi essa articulação latino-americana que desencadeou a iniciativa da greve de julho, utilizando-se bastante de redes como Instagram e WhatsApp, em um processo de auto-organização que conseguiu, em alguns casos, exercer poder de atração sobre os sindicatos desses países.

O caso da La Red argentina mencionada acima é, sem dúvida, uma das experiências mais bem-sucedidas, na medida em que a iniciativa conseguiu organizar trabalhadores em muitos estados do país, com peso em Buenos Aires, mas também em Mar Del Plata, La Plata, Córdoba, Rosario, Neuquén, Tucumán e Mendoza. Além de tomar parte na convocação da paralisação internacional de 1º de julho, organizou um encontro em agosto de 2020 em que estiveram presentes mais de 100 entregadores de todo o país, colocando em primeiro plano a denúncia da situação de trabalho dos entregadores frente à pandemia da Covid-19, além de demandas econômicas e sociais que terminaram por fazer um questionamento mais amplo da uberização do trabalho. Nela, uma entregadora afirmou, no que é uma fala bastante significativa de uma demanda compartilhada também entre os entregadores no Brasil, que “votamos realizar uma grande campanha pela incorporação à Lei de Contrato de Trabalho, com um projeto que incorpore a nossa atividade” (“Repartidores y trabajadores...”, 202030 REPARTIDORES y trabajadores precarizados de todo el país se reunieron para definir medidas de lucha. El Ciudadano, 11 de ago. de 2020. Disponível em: https://www.elciudadanoweb.com/repartidores-y-trabajadores-precarizados-de-todo-el-pais-se-reunieron-para-definir-medidas-de-lucha/
https://www.elciudadanoweb.com/repartido...
).

Trata-se, nesses casos, de manifestações de auto-organização dos trabalhadores. O fato de que nem sempre essas lutas são reconhecidas como legitimamente sindicais pelo Estado ou pelos empregadores, e que elas frequentemente tenham sido construídas por fora das burocracias sindicais estabelecidas, em nada altera sua relevância. A convivência entre os sindicatos tradicionais e formas emergentes de organização trabalhista nem sempre é pacífica, mas o central é que pautas tipicamente sindicais continuam a aparecer. Como há muito argumentou Anderson (1967, p. 265)6 ANDERSON, Perry. The limits and possibilities of trade union action. In: BLACKBURN, R.; COCKBURN, A. (org.). The incompatibles: trade union militancy and the consensus. Middlesex: Penguin Books, 1967. p. 263-280., “os sindicatos são, essencialmente, a representação de facto da classe trabalhadora no local de trabalho”. Portanto, a ação sindical não pode ser reduzida às estruturas de representação sindical institucionalmente reconhecidas em momentos e contextos específicos, que representam tão somente a consolidação de arranjos temporários. Efetivamente, as demandas da paralisação do 1º de julho no Brasil, por exemplo, emergiram das particularidades do trabalho cotidiano dos entregadores – especificamente, estiveram ligadas ao aumento da remuneração (valor e taxa mínima); ao controle do trabalho (fim dos bloqueios, desligamentos e sistema de pontuação); e à saúde e segurança no trabalho (taxa para a compra de Equipamento de Proteção Individual). Com ou sem a presença de sindicatos propriamente ditos, essa é uma pauta essencialmente sindical.

Enfim, se o conflito entre o capital e o trabalho não pode ser suprimido nas experiências dos entregadores, tampouco desaparece a ação sindical como potencial implícito, o que indica a relevância continuada da proteção social ao trabalho como horizonte para a organização coletiva. Caso as estruturas de representação tradicionalmente estabelecidas aos níveis local, nacional ou global sejam impermeáveis a esses movimentos, é razoável a expectativa de que novas organizações sejam criadas, o que parece ser confirmado, por exemplo, pelo surgimento de iniciativas como a Alliance of App-Based Transport Workers (IAATW) e a Global Digital Workers Conference, que em junho de 2020 fundou a Transnational Workers Network (TWN) (Gonsales, 202017 GONSALES, Marco. Trabalhadores plataformizados do mundo, uni-vos. Esquerda Diário, 4 de jul. 2020. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Trabalhadores-plataformizados-do-mundo-uni-vos
https://www.esquerdadiario.com.br/Trabal...
). Trata-se, sobretudo, de um processo aberto e indeterminado, cuja evolução dependerá do desfecho de disputas concretas, de modo que uma sensibilidade a novas experiências de contestação deve ser acompanhada da cautela em relação a conclusões apriorísticas, o que sugere um lugar privilegiado para a investigação sociológica da ação sindical (conceptualizada de forma ampla) em meio às transformações aceleradas pela crise pandêmica.

Conclusão

Este artigo analisou, tendo como pano de fundo os deslocamentos provocados pela Covid-19 no mundo do trabalho no Brasil, a organização produtiva e o processo de trabalho em plataformas digitais, os impactos disso sobre as relações de emprego, a regulação e a proteção social ao trabalho; e a experiência do trabalho sob demanda propriamente dita, por meio do caso de trabalhadores empregados em aplicativos de entrega, inclusive no que diz respeito à organização coletiva. Como resultado, observou-se o reforço da lógica da precarização e da flexibilidade com pendor patronal, ao mesmo tempo em que ocorreram episódios de mobilização dos trabalhadores, que buscaram se organizar, inclusive ao nível internacional, e angariar apoio por meio de campanhas de solidariedade.

Em conjunto, as conclusões apresentadas sugerem tendências que se amparam em uma lógica mais geral de (não) regulação do trabalho. No caso do Brasil, país no qual uma ampla margem de trabalho informal convive constitutivamente com o mercado de trabalho segundo a norma estatutária da CLT, o espaço para o desenvolvimento de atividades flexíveis é bastante vasto e foi aproveitado pelo TSDA, sobretudo durante a pandemia da Covid-19. Ao mesmo tempo, a incorporação a uma regulação do trabalho típica das plataformas digitais, ainda que sob o véu de uma nova formalidade, é ameaça real para um conjunto cada vez mais amplo de trabalhadores. Em uma ponta, o rebaixamento das proteções sociais ao trabalho aproxima o emprego “típico” da lógica uberizada e, na outra, a difusão do enquadramento de trabalhadores como “microempreendedores”, “autônomos” ou “parceiros” (como no desenho do crowdworking) parece dar ares de legitimidade e formalidade a relações contratuais até então vistas como indiscutivelmente precárias e informais.

Não obstante, é patente a fragilidade dessa situação: sem a formalização da atividade como emprego propriamente dito, não se pode cobrar um piso da categoria, de maneira que o salário percebido é diretamente proporcional às horas em serviço para a empresa contratante. A associação com um trabalho de tipo autônomo, independente ou “empreendedor”, finalmente, justificaria o distanciamento dessa atividade da subordinação que é condição necessária para a caracterologia de um direito que protege a parte mais fraca. Em suma, a precarização não advém da atividade em si mesma – a qual, ademais, poderia ser organizada de outro modo –, mas da forma como o serviço é incorporado em uma lógica de externalização e de extensão da cadeia de fornecedores que exime a empresa dos custos fixos, fazendo com que ela se concentre em seu core business. Em sociedades como a brasileira, onde o peso da informalidade sempre deu o tom do mercado de trabalho, essa problemática ocupa uma posição muito sensível no debate público. A extensão e difusão da lógica das plataformas só piora esse cenário, introduzindo mais um elemento que reforça a exclusão da relação salarial protegida.

Ainda assim, as experiências de organização coletiva dos entregadores empregados em arranjos de trabalho sob demanda têm demonstrado que esse enquadramento tem sido contestado “a partir de baixo” – o que os entregadores exigem é que se reconheça seu estatuto de trabalhadores empregados por uma empresa, o que passa pela formação de identidades coletivas “de categoria” e, inclusive, a apresentação de demandas tipicamente trabalhistas, ou mesmo sindicais. Nesse sentido, as conclusões do artigo iluminam elemento que ocasionalmente escapa às caracterizações recentes sobre o tipo de trabalho organizado sob plataformas: o de que ele incide não sobre uma nova classe de trabalhadores precários, em completa ruptura com a “velha” classe operária industrial-fordista, e cuja morfologia social diferenciada atestaria o seu afastamento em relação à experiência da geração anterior; ao contrário, o sentimento de usura física e mental do modo “enxuto” de lidar com a força de trabalho antes aproxima do que divide as duas gerações. Se é verdade que elas estão separadas por instrumentos, espaços e contratos em tudo diferentes, elas acabam por se encontrar na luta por direitos do trabalho.

  • 1
    Os autores tratam da política internacional. Argumento parecido pode ser encontrado, para citar alguns exemplos ilustrativos, nos estudos sobre a educação (Gurukkal, 202018 GURUKKAL, Rajan. Will COVID 19 turn higher education into another mode? Higher Education for the Future, v. 7, n. 2, p. 89-96, 2020.), no debate sobre o futuro da automação do trabalho por meio da Inteligência Artificial (Coombs, 202011 COOMBS, Crispin. Will COVID-19 be the tipping point for the Intelligent Automation of work? A review of the debate and implications for research. International Journal of Information Management, v. 55, e102182, 2020.), na reflexão sobre as relações entre a sociedade humana e o meio-ambiente (Silva; Arbilla, 202033 SILVA, Cleyton M. da; ARBILLA, Graciela. COVID-19: challenges for a new epoch. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 53, e20200270, 2020.) etc. Visões mais abrangentes, de caráter generalizante e com tom crítico, podem ser encontradas em Santos (2020)32 SANTOS, Boaventura de S. La cruel pedagogía del virus. Buenos Aires: CLACSO, 2020. e Agamben et al. (2020)4 AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. Buenos Aires: ASPO, 2020., entre outros.
  • 2
    O pavor de ter o nome sujo é a situação que ocorre em fábricas onde a performance é exibida num painel “público” dentro da seção para que todos possam ver e “julgar” por si mesmos qual é a posição relativa de cada trabalhador em relação ao seu colega, quando se trata de alcançar metas ou objetivos de produção (Mello e Silva, 200426 MELLO E SILVA, Leonardo. Trabalho em grupo e sociabilidade privada. São Paulo: Ed. 34, 2004., p. 241). Esse procedimento de gestão, incômodo moralmente para aqueles que estão sob escrutínio, já foi inclusive questionado pela Justiça do Trabalho, por conta da queixa de representantes dos trabalhadores que veem nele uma forma obtusa de se obter produtividade, às custas do equilíbrio psíquico necessário. Ele foi muito utilizado em manufaturas sob a dominância dos métodos chamados toyotistas, nos anos 1990 e depois. O pavor de ter o nome sujo está ligado ao fato de que o trabalhador menos “performático” (leia-se: menos produtivo) corre o risco de ser alijado da equipe e, no limite, desligado da firma.
  • 3
    Essa é a designação proposta por Kalil (2019)20 KALIL, Renan B. Capitalismo de plataforma e Direito do Trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. 2019. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019..
  • 4
    Significativamente, o pronunciamento do advogado da Uber foi de que os termos do Projeto eram “equilibrados” (Barros, 20208 BARROS, Carlos J. Nem CLT, nem autônomo: o projeto de lei que quer 'regrar' a relação de aplicativos com trabalhadores. UOL, 14 de jun. de 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2020/07/14/nem-clt-nem-autonomo-o-projeto-de-lei-que-quer-regrar-a-relacao-de-aplicativos-com-entregadores.htm
    https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc...
    ).
  • 5
    Grupo de investigação sobre a situação de precarização do trabalho e os impactos da reestruturação produtiva na atualidade (http://www.esquerdadiario.com.br/Observatorio-de-precarizacao).
  • 6
    A iFood, empresa brasileira cuja controladora, Movile, tem sede em Campinas (SP), é uma das maiores empregadoras do setor. Trata-se de empresa de capital fechado e, portanto, seu balanço patrimonial não está disponível publicamente. Mas é possível enxergar um claro movimento de transnacionalização a partir de 2012, com operações no Vale do Silício norte-americano, bem como o aporte de investimentos de fundos globais. A iFood compete diretamente com outros gigantes na América Latina, o que coloca o país no mapa global do setor.
  • 7
    O valor do salário-mínimo no Brasil, em setembro de 2020, era de R$ 1.045,00. Pelo câmbio de 29/09/20, equivalia a U$ 185,25.

Referências

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  • 2
    ABÍLIO, Ludmila C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 19 fev. 2017. Disponível em: http://passapalavra.info/2017/02/110685
    » http://passapalavra.info/2017/02/110685
  • 3
    ABÍLIO, Ludmila C.; AMORIM, Henrique; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias v. 23, n. 57, p. 26-56, 2021. https://doi.org/10.1590/15174522-116484
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  • 7
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2021
  • Aceito
    08 Jul 2022
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