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Mentoria: vantagens e desafios da educação on-line durante a pandemia da Covid-19

Mentoring: advantages and challenges of online education during the Covid-19 pandemic

Resumo:

Introdução:

A mentoria é uma importante estratégia de ensino em cursos de graduação e no treinamento profissional, especialmente no momento em que o mundo vivencia a pandemia da Covid-19. Essa estratégia possibilita aprendizado dinâmico e coletivo, ao mesmo tempo que minimiza os impactos sociais e emocionais gerados pela pandemia, sem comprometer o isolamento físico.

Relato de experiência:

A experiência dos alunos da UFMG com a mentoria nos formatos presencial (realizada em 2019) e virtual (durante a pandemia de 2020) demonstrou que, apesar de a modalidade virtual ter aspectos negativos, as vantagens são superiores. O aspecto mais vantajoso elencado por todos os mentorandos foi a possibilidade de discutir temas que iam além do aprendizado da medicina, como uma forma de preparação prática para a vida profissional.

Discussão:

A mentoria é uma estratégia singular de grande importância na educação médica. O formato misto, composto por reuniões virtuais e presenciais, foi considerado o melhor modelo para sua aplicação.

Conclusão:

Acreditamos que o presente relato estimulará outras instituições a adotar disciplinas no formato de mentoria, além da utilização do recurso remoto como estratégia de ensino.

Palavras-chave:
Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Tutores; Tutoria; Estudantes de Medicina

Abstract:

Introduction:

Mentoring is an important teaching tool in undergraduate courses and in professional training, especially at a time when the world is experiencing the Covid-19 pandemic. This strategy enables dynamic and collective learning, while minimizing the social and emotional impacts generated by the pandemic, without compromising physical isolation.

Experience report:

The experience of UFMG students with mentoring in the face-to-face (held in 2019) and virtual (during the 2020 pandemic) format demonstrated that, although the virtual modality has negative aspects, these are outweighed by the advantages. The most advantageous aspect listed by all the mentors was the possibility of discussing topics that went beyond the learning of medicine, as a way of practical preparation for professional life.

Discussion:

Mentoring is a unique strategy of great importance in medical education. The mixed format, composed of virtual and face-to-face meetings, was considered the best model for its application.

Conclusion:

We believe that the present report will encourage other institutions to adopt disciplines in the form of mentoring, in addition to using the remote resource as a teaching strategy.

Keywords:
Medical Education; Undergraduate Medical Education; Mentors; Mentorship; Medical Students

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, iniciou-se um debate profundo sobre a eficácia dos métodos de ensino tradicionais. A metodologia presencial, com aulas longas e pouco produtivas, começou a ser vista como obsoleta e impraticável, especialmente em uma cultura que tem sofrido grandes mudanças pelo processo de dinamização exercido pelas atuais tecnologias. Tornou-se clara a incapacidade de prender a atenção dos estudantes em um mundo cada vez mais virtual11. Gonçalves MCN, Bellodi PL. Ser mentor em medicina: uma visão arquetípica das motivações e transformações na jornada. Interface (Botucatu). 2012;16(41):501:14.)-(44. Aguilar-da-Silva RH, Perímetro GL, Abdalla IG, Costa NMSC, Lampert JB, Stella RCR. Abordagens pedagógicas e tendências de mudanças nas escolas médicas. Rev Bras Educ Med. 2009;33(1):53-62..

Nesse contexto, o isolamento social determinado pela pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19) acelerou o processo de reformulação do sistema educacional, que estava dando seus primeiros passos55. Nimmons D, Giny S, Rosenthal J. Medical student mentoring programs: current insights. Adv Med Educ Prac. 2019;10:113-23.),(66. Wesson LT, Cusmano A, Meli L, Louh I, Falzon L, Hampsey M, et al. Association between learning environment interventions and medical student well-being: a systematic review. JAMA. 2016;316(21):2237-52.. As redes de ensino foram obrigadas a se adaptar rapidamente, passando de uma estratégia fundamentalmente presencial para a educação por meio do ensino remoto emergencial (ERE). Este último se difere da educação a distância (EaD), que envolve planejamento e uso de estratégias de gerenciamento específicas, abrangendo aspectos como: 1. oferta de uma estrutura informacional adequada, 2. suporte técnico aos professores e estudantes, 3. cuidadosas elaboração e entrega de materiais didáticos a serem utilizados nas aulas, 4. alocação das turmas no ambiente virtual, 5. apoio pedagógico aos estudantes e 6. treinamento contínuo em tecnologia aos professores. No contexto da pandemia da Covid-19, foram necessárias adaptações ao modelo EaD, o que ficou conhecido como ERE77. Gusso HL, Archer AB, Luiz FB, Sahão FT, de Luca GG, Henklain MHO, et al. Ensino superior em tempos de pandemia: diretrizes à gestão universitária. Educ Soc. 2020;41:e238957.. Nessa modalidade, são utilizados recursos on-line de modo não planejado, desconsiderando aspectos importantes da realidade de estudantes e professores, bem como aspectos pedagógicos e tecnológicos envolvidos.

As estratégias de ensino remoto, largamente testadas em outros países, ainda eram subtilizadas em boa parte do Brasil88. Chaves LJ, Gonçalves ECQ, Ladeira LR, Ribeiro MS, Costa MB, Ramos AAM. A tutoria como estratégia educacional no ensino médico. Rev Bras Educ Med . 2014;38(4):532-41.. O aumento da demanda pela modalidade levou ao aperfeiçoamento das plataformas, de modo a propiciar a transmissão de aulas e discussão em tempo real e reduzir o prejuízo dos estudantes afastados das atividades presenciais na universidade.

No âmbito do ensino médico, os desafios foram ainda maiores55. Nimmons D, Giny S, Rosenthal J. Medical student mentoring programs: current insights. Adv Med Educ Prac. 2019;10:113-23.),(99. DeLuca GC, Ovseiko PV, Buchan AM. Personalized medical education: reappraising clinician-scientist training. Sci Transl Med. 2016;8(321):321fs2.),(1010. Frei E, Stamm M, Buddeberg-Fischer B. Mentoring programs for medical students - a review of the PubMed literature 2000-2008. BMC Med Educ. 2010;1-14.. Além da necessidade de readequação para as plataformas virtuais, surgiu a dificuldade em relação à demanda por atividades práticas, que são fundamentais à formação de um profissional de excelência. Além disso, os professores, que em sua maioria são médicos atuantes, e os estudantes das áreas da saúde foram chamados a atuar na linha de frente contra o vírus mortal. Os impactos foram sentidos com esgotamento físico, mental e emocional. Tornaram-se mais frequentes os relatos de burnout, ansiedade, sensação de impotência, medo e tristeza. Assim, foi necessário reinventar o ensino médico, adaptando o currículo da graduação à formação de profissionais aptos a lidar com a nova realidade1111. Burguess A, van Diggele C, Mellis C. Mentorship in the health professions: a review. Clin Teach. 2018;14:1-6..

Uma estratégia de ensino amplamente utilizada em todo o mundo, especialmente em áreas de gestão e empreendedorismo, assim como na medicina, é a mentoria, que consiste em encontros periódicos entre mentores e mentorandos. Os mentores são profissionais com bagagem teórica sólida aliada a uma experiência prática extensa e bem-sucedida na área que será debatida22. Schichtel M. Core-competence skills in e-mentoring for medical educators: a conceptual exploration. Med Teach. 2010;32:e248-e262.),(1212. Chong JY, Ching AH, Renganathan Y, Lim WQ, Toh YP, Mason S, et al. Enhancing mentoring experiences through e-mentoring: a systematic scoping review of e-mentoring programs between 2000 and 2017. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2020;25(1):195-226.. Os mentorandos são alunos que buscam adquirir novos conhecimentos e habilidades. Nesse modelo, não existem aulas expositivas. O processo de aprendizado ocorre com discussões horizontais, em que os participantes expressam suas opiniões e questionam os mentores sobre quais as melhores estratégias para resolução de problemas. Trata-se de um processo de aprendizado ativo, baseado em questionamentos e problemas reais, tornando mais viável a sincronia entre teoria e prática22. Schichtel M. Core-competence skills in e-mentoring for medical educators: a conceptual exploration. Med Teach. 2010;32:e248-e262.),(33. Jaffer U, Vaughan-Huxley E, Standfield N, John NW. Medical mentoring via the evolving World Wide Web. J Surg Educ. 2013;70(1):121-8.),(66. Wesson LT, Cusmano A, Meli L, Louh I, Falzon L, Hampsey M, et al. Association between learning environment interventions and medical student well-being: a systematic review. JAMA. 2016;316(21):2237-52.),(88. Chaves LJ, Gonçalves ECQ, Ladeira LR, Ribeiro MS, Costa MB, Ramos AAM. A tutoria como estratégia educacional no ensino médico. Rev Bras Educ Med . 2014;38(4):532-41.),(1212. Chong JY, Ching AH, Renganathan Y, Lim WQ, Toh YP, Mason S, et al. Enhancing mentoring experiences through e-mentoring: a systematic scoping review of e-mentoring programs between 2000 and 2017. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2020;25(1):195-226.),(1313. Nassrallah G, Arora S, Kulkarni S, Hutnik CML. Perspective on a formal mentorship program in ophthalmology residency. Can J Ophthalmol. 2017;52(4):321-2..

Na área médica, a mentoria teve seus primórdios na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ainda em 1983 com a iniciativa “Projeto Padrinho”. Em 2001, tornou-se uma disciplina obrigatória para os alunos do quinto período do curso de Medicina, que é atualmente oferecida no segundo período. Esse modelo foi inspirado em escolas estrangeiras que tinham como objetivo auxiliar o estudante nos primeiros atendimentos, momento no qual ele costuma se sentir incapaz e inseguro frente às novas responsabilidades, fornecendo suporte pessoal e estimulando o desenvolvimento profissional do futuro médico1414. Fidelis GTA. A tutoria na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais: de um sonho necessário à construção. Rev Méd Minas Gerais. 2014;24(4):525-34.),(1515. Alpes MF, Wolf AE. Tutoria acadêmica (“Mentoring”): relato de experiência de um tutorado a tutor. Revista Extensão em Foco. 2018;16:90-8..

As metodologias utilizadas pelos mentores são variadas e dependem das experiências do responsável por cada grupo e, principalmente, das características dos mentorandos. Utilizam-se diálogos, relatos de experiências e discussões, algumas destas baseadas em vídeos, para que o estudante possa conhecer o funcionamento dos diversos setores e órgãos em que o profissional médico possa vir a atuar em sua prática diária22. Schichtel M. Core-competence skills in e-mentoring for medical educators: a conceptual exploration. Med Teach. 2010;32:e248-e262.),(33. Jaffer U, Vaughan-Huxley E, Standfield N, John NW. Medical mentoring via the evolving World Wide Web. J Surg Educ. 2013;70(1):121-8.),(55. Nimmons D, Giny S, Rosenthal J. Medical student mentoring programs: current insights. Adv Med Educ Prac. 2019;10:113-23.),(88. Chaves LJ, Gonçalves ECQ, Ladeira LR, Ribeiro MS, Costa MB, Ramos AAM. A tutoria como estratégia educacional no ensino médico. Rev Bras Educ Med . 2014;38(4):532-41.),(1212. Chong JY, Ching AH, Renganathan Y, Lim WQ, Toh YP, Mason S, et al. Enhancing mentoring experiences through e-mentoring: a systematic scoping review of e-mentoring programs between 2000 and 2017. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2020;25(1):195-226.)-(1414. Fidelis GTA. A tutoria na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais: de um sonho necessário à construção. Rev Méd Minas Gerais. 2014;24(4):525-34.),(1616. Molinari-Gomes LC, Goulart GC, Fidélis GTA.Tutoria: mentoring na Faculdade de Medicina da UFMG: uma visita às instituições médicas. Relato de experiência. Anais do 50º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 11 a 14 de outubro de 2012; São Paulo. São Paulo: Abem; 2012.)-(1818. Ribeiro MMF, Martins AF, FidelisGTA, Goulart GC, Molinari-Gomes LC, Tavares EC. Tutoria em escola médica: avaliação por discentes após seu término e ao final do curso. Rev Bras Educ Med . 2013;37(4):509-14..

Em 2020, com as medidas de isolamento durante a pandemia do coronavírus, a disciplina passou a ser ministrada no formato e-mentoring (remoto). A adaptação da Tutoria da Faculdade de Medicina da UFMG foi uma das primeiras experiências com esse formato a distância em educação médica no país, envolvendo encontros semanais por meio da plataforma Microsoft Teams. Ressaltamos que existem dois grupos de mentoria: uma realizada no segundo período, de caráter obrigatório; e uma optativa, com alunos após o segundo período. Ao final de 13 a 15 encontros, em média, cada um dos 28 alunos produziu um relato da experiência com a disciplina. As atividades contaram com a presença de um único mentor (coautor 4), o que uniformizou o desenvolvimento das atividades.

O presente trabalho tem o intuito de comparar a experiência dos alunos com a mentoria nos formatos presencial (realizada em 2019) e virtual (durante a pandemia de 2020), destacando-se os pontos positivos e negativos de cada uma, bem como sua relevância na formação médica. As informações foram coletadas por meio dos relatórios finais da disciplina Tutoria da UFMG.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Foram coletados 29 relatórios relacionados à vivência da mentoria no formato presencial e 28 relatórios sobre o formato e-mentoria.

A análise dos dados se baseou na leitura dos relatórios para avaliação da percepção geral dos alunos sobre a experiência de mentoria, identificação dos pontos de maior relevância discutidos nos encontros sob a percepção dos mentorandos e comparação entre a vivência presencial e a distância.

Percepção geral sobre a vivência e aspectos relevantes

Durante a revisão dos arquivos, preponderou o relato de que a mentoria era uma disciplina completamente diferente das demais, presentes na grade curricular do curso, o que foi avaliado como positivo pela grande maioria dos alunos.

As discussões se estabeleceram em um ambiente considerado acolhedor, leve e respeitoso, o que proporcionou aos acadêmicos a sensação de liberdade e segurança para debater de forma profunda os mais variados assuntos. Além disso, havia alunos de diversos períodos na mesma turma na disciplina optativa, o que enriquecia as discussões e proporcionava uma grande troca de experiência entre eles. Nesse caso, chamamos de aconselhamento aos pares ou aconselhamento de colegas, quando temos uma orientação feita por mentores juniores ou monitores, dentro de um grupo com períodos variados. Isso enriquece a troca de conhecimentos e valoriza o veterano, que pode ajudar e comentar os aspectos curriculares já vivenciados por ele.

O aspecto mais vantajoso elencado por todos os mentorandos foi a possibilidade de discutir temas que iam além do aprendizado da medicina, como uma forma de preparação para a vida profissional. Abordaram-se aspectos relevantes, como:

  • As funções do Conselho Regional de Medicina (CRM), do Sindicato dos Médicos e da Associação Médica de Minas Gerais.

  • Residência médica: aspectos importantes sobre a prova de seleção, como enriquecer o currículo ao longo da faculdade e alguns pontos de destaque das principais especialidades.

  • Aspectos éticos relacionados à prática profissional.

  • Mercado de trabalho atual e perspectivas futuras.

  • Relação médico-paciente.

  • Tecnologias e sua aplicação na área da saúde, incluindo discussões sobre a postura dos médicos nas redes sociais.

  • Gestão do tempo e estratégias de estudo.

  • Autoaceitação, empatia e saúde mental dos estudantes, incluindo discussões sobre depressão e suicídio entre alunos de Medicina.

  • Gestão de finanças pessoais.

  • Mecanismos que estabeleçam mais equilíbrio e qualidade de vida durante a atuação como estudante de Medicina e como médico.

As discussões contaram ainda com uso de recursos complementares, como documentários e vídeos do YouTube e da plataforma TedTalks, com o propósito de fomentar pontos de vista diferentes e as suas discussões correlatas, promovendo um ambiente mais dinâmico e informal. A flexibilidade dos temas foi outro aspecto importante a ser ressaltado, adequando-se à real necessidade da turma e suprindo as lacunas que frequentemente se formam ao longo da formação médica.

Do ponto de vista de saúde mental, a mentoria se mostrou uma ferramenta importantíssima. Vários foram os relatos de que, por ser uma disciplina inserida no currículo da faculdade, os alunos se viam “obrigados” a parar e ter um momento de socialização e discussão de temas importantes, mas de forma amena e acolhedora. Grande parte dos mentorandos disseram que não faziam isso normalmente, pois sempre havia um sentimento de “culpa” por não estarem estudando todo o tempo. Esse aspecto é tão marcante que alguns alunos optaram por fazer a disciplina exatamente por terem vivenciado momentos difíceis na faculdade e não terem encontrado um ambiente acolhedor, como o que se formava na mentoria.

Podemos explicitar tais fatos com os seguintes fragmentos:

É triste pensar que na medicina o normal é nos sentirmos sobrecarregados e esmagados pela carga pesada do cotidiano acadêmico, e que quase não temos oportunidade de termos experiências que nos libertem das pressões do curso.

Sinto que recebi algo que sempre quis durante a faculdade de medicina: Alguém para conversar. Sempre achei difícil me abrir.

Nem somente de aprendizado técnico se forma um médico.

Cabe também pontuar que alguns aspectos negativos foram observados pelos mentorandos. O principal foi a dificuldade que tiveram por horários extras nas disciplinas regulares da grade curricular, que se sobrepunham à mentoria, na turma de atividade optativa, e inviabilizavam a participação dos alunos em alguns encontros. Esse fato reflete uma desorganização na gestão dos horários das disciplinas obrigatórias e uma subvalorização das disciplinas suplementares. Pode-se inferir que situações como essa se fundamentam em uma visão arcaica de aprendizado e que, durante o processo de reavaliação e atualização das metodologias de ensino, esse tipo de problema tende a reduzir.

Outros pontos divergentes, observados como positivos para a grande maioria, porém citados como negativos por uma pequena parcela dos participantes, foram: a variabilidade de períodos dos mentorandos e a intervenção do mentor.

Em relação à diversidade de períodos, alguns alunos sentiram que era prejudicial, pois o foco e o interesse dos participantes se tornavam muito divergentes e, por vezes, até contraditórios. Já em relação à atuação do mentor, alguns participantes avaliaram que a intervenção era excessiva - “engessando” um pouco as discussões; enquanto outro grupo sugeriu que o mentor deveria intervir mais para que a discussão se tornasse mais objetiva.

Um aspecto fundamental nos relatos foi a importância de um mentor engajado, que acredite nesse processo de aprendizado e tenha expertise nele. O aproveitamento da experiência foi relacionado ao perfil do mentor e pôde ser explicitado por alguns alunos que participaram de outras disciplinas de mentoria e tiveram uma percepção de menor aproveitamento.

Experiência da e-mentoria

O processo de transição das aulas presenciais para as virtuais já era pauta de debate entre os principais gestores de ensino de todo o mundo, mas era planejado para que ocorresse de forma gradual. No Brasil, o ERE já havia começado em algumas instituições, especialmente nas privadas. Entretanto, a pandemia da Covid-19 acelerou esse processo e o tornou abrupto, trazendo consigo desafios peculiares.

Na disciplina de mentoria da UFMG, o processo ocorreu da seguinte maneira: a primeira aula foi ministrada presencialmente (pré-isolamento) e, em sequência, suspenderam-se todas as atividades a partir de 18 de março de 2020, por um período de cinco meses - durante o qual a instituição se reorganizou para proporcionar acesso ao ambiente virtual por todos os alunos, com retorno dos encontros de formato a distância em 5 de agosto de 2020.

A experiência com ambiente remoto foi considerada uma surpresa positiva para os mentorandos, minimizando os déficits gerados pela suspensão das atividades. Nos relatórios, foi preponderante o sentimento de que a mentoria ajudou a reduzir a ansiedade e proporcionou socialização durante o período de isolamento.

Além disso, os temas propostos se adequaram ao momento vivenciado e abordaram questões importantes de saúde mental relacionadas ao trabalho médico durante um momento tão delicado como a pandemia da Covid-19. Outro impacto importante foi gerar um sentimento de pertencimento entre os alunos, que compartilhavam suas angústias, promovendo sentimentos de compaixão e empatia uns com os outros.

Foi relatada também a experiência de que naquele ambiente o aluno estava sendo visto como um ser humano completo, com suas forças e vulnerabilidades - levando as reflexões para além da medicina teórica. As percepções foram de que esse tipo de ambiente e de discussão era fundamental para se tornar um médico melhor.

Apesar de os encontros serem virtuais, a adoção de dinâmicas conseguiu promover uma aproximação entre os participantes, fato que também foi sedimentado pela participação ativa do mentor e por sua facilidade de adaptação ao ambiente virtual.

Como pontos positivos da e-mentoria, destacam-se:

  • Redução de custos e de tempo com deslocamentos.

  • Maior conforto para assistir às aulas.

  • Menor gasto com alimentação.

  • Socialização durante o período de isolamento.

  • Suporte emocional em meio à pandemia.

Para a maioria dos participantes, o formato virtual não gerou grandes prejuízos e ainda permitiu que o processo de adaptação acontecesse de forma mais amena e acolhedora.

Alguns pontos negativos apresentados foram:

  • Menor formação de vínculo entre os participantes.

  • Impessoalidade quando os participantes não usavam o vídeo.

  • Dificuldades de adaptação ao home office.

  • Dificuldades técnicas relacionadas à conexão com internet, impedindo a participação de alguns alunos nos encontros presenciais.

  • Ausência de visitas externas como as que eram realizadas no CRM, na Associação Médica de Minas Gerais e no Sindicato dos Médicos.

Durante a revisão dos relatórios, foi nítido o fato de que os mentorandos fizeram reflexões mais detalhadas e profundas quando a disciplina foi realizada no período da pandemia em formato virtual. Esse fato pode ser justificado pelo grande impacto que a mentoria teve na saúde mental dos alunos durante um período de grande fragilidade, associada a uma menor carga horária de outras disciplinas, permitindo que os alunos dedicassem mais tempo às reflexões abordadas na e-mentoria.

Outra característica importante também abordada durante a mentoria foi a necessidade de um mentor acolhedor, aberto a sugestões e críticas e que se preocupe com o bem-estar e o cotidiano dos mentorandos - resumida no seguinte fragmento: “Pude sentir a empolgação de um professor que estava ali por prazer e não por obrigação ou status”.

Ou seja, não é apenas o formato (presencial versus remoto) que interfere no impacto e aproveitamento da disciplina, mas também a formação e postura do mentor - o que nos remete à necessidade de preparar e escolher mentores que realmente acreditem e pratiquem a empatia, o cuidado e o acolhimento. Deve-se ressaltar que esse fato já havia sido identificado nos relatórios das reuniões presenciais.

Em conclusão, a maioria dos mentorandos sugeriu que fosse adotada uma estratégia mista: aulas on-line com encontros presenciais esporádicos. Essa seria uma forma de tentar agregar as vantagens do ERE e do presencial. Segundo os mentorandos, as discussões em geral deveriam ser realizadas virtualmente, e os encontros físicos poderiam ser feitos em visitas a instituições, como o CRM, o Sindicato dos Médicos e a Associação Médica de Minas Gerais, ou de bate-papos mais informais em parques ou cafeterias - para aumentar a socialização e o vínculo entre os participantes.

DISCUSSÃO

Experiências anteriores em universidades norte-americanas e alemãs já haviam demonstrado eficiência do formato e-mentoria. Foi demonstrado que a abordagem ideal envolveria uma mistura, com atividades “síncronas” e “assíncronas”. As atividades síncronas seriam compostas por 1. encontros virtuais periódicos em tempo real, inicialmente mais frequentes, podendo ser espaçados conforme fosse estabelecido o vínculo entre estudantes-colegas e mentores e 2. encontros presenciais intercalados. As atividades “assíncronas” seriam compostas por 1. atividades on-line com prazo de submissão e 2. relatório final sobre o curso33. Jaffer U, Vaughan-Huxley E, Standfield N, John NW. Medical mentoring via the evolving World Wide Web. J Surg Educ. 2013;70(1):121-8.,1919. Farkas AH, Allenbaugh J, Bonifacino E, Turner R, Corbelli JA. Mentorship of US medical students: a systematic review. J Gem Intern Med. 2019;34(1):2602-9..

O presente estudo corrobora os dados da literatura, especialmente por trazer vivências tanto no formato presencial quanto no ensino remoto - inclusive com alguns mentorandos que vivenciaram ambos. A estratégia on-line se mostrou factível e com grandes vantagens em relação à presencial, especialmente no ponto de vista de custo e tempo; entretanto, a formação de vínculo e a socialização ficaram prejudicadas. Nesse contexto, o formato misto seria a solução por unir as vantagens do ambiente virtual com o presencial.

CONCLUSÃO

Durante a pandemia do coronavírus, inúmeras dificuldades têm sido enfrentadas pelos profissionais médicos, como sobrecarga de trabalho, esgotamento físico e estresse emocional. Como em todos os momentos de crise já enfrentados pela humanidade, foi necessário nos adaptarmos a uma nova configuração social, adequando nosso ambiente de trabalho. Nesse sentido, a implementação mais efetiva da estratégia de EaD pode ser vista como um ponto positivo.

A utilização de uma plataforma virtual adaptada permitiu a manutenção da disciplina “Tutoria” na UFMG. Nos relatos dos alunos de graduação, tornou-se claro o quanto os encontros da mentoria foram benéficos, aumentando a socialização (sem comprometer o isolamento físico necessário) e atuando como um grupo de apoio que permitiu minimizar os impactos sociais e emocionais gerados pela pandemia.

Apesar das vantagens do ensino remoto, como a economia de tempo de deslocamento e conforto, os mentorandos concluíram que a melhor estratégia, após o período de isolamento social, é a forma mista. A intenção é manter as vantagens da EaD, porém mesclando com encontros presenciais que promovam a socialização, além de expansão dos temas com visitas a instituições de grande importância para o médico.

Acreditamos que o presente relato estimulará outras instituições a adotar disciplinas no formato de mentoria, além da utilização do ensino remoto como estratégia de ensino.

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  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora: Lia Marcia Cruz da Silveira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2021
  • Aceito
    08 Abr 2021
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