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Da bio à necropolítica: a política de saúde, narrativas e ações do neoliberalismo do governo Bolsonaro e seus impactos junto aos idosos na pandemia de Covid-19

Resumo:

O presente artigo é parte do projeto de pesquisa sobre as narrativas de autoridades e grupos sociais e seus impactos na sociedade, tendo como tema geral a pandemia de Covid-19. Aborda as falas e ações do governo Bolsonaro sobre a pandemia e suas consequências junto à população de idosos no Brasil. Do ponto de vista metodológico, são consideradas as falas e ações que tiveram repercussão em portais da internet, jornais e redes sociais. A discussão sobre os dados parte da concepção de biopolítica, do fim do Estado de Bem-Estar Social e avanço do neoliberalismo sobre as políticas públicas de saúde e a necropolítica adotada pelo governo, abandonando as populações de maior vulnerabilidade ao vírus SARS- CoV-2, causador da pandemia. Os resultados demonstram que a opção pelo não enfrentamento governamental ao coronavírus tem imposto sofrimento e mortes à população formada por pessoas acima de 60 anos, compondo mais 73% do total de óbitos no Brasil até abril de 2021.

Palavras-chave:
Políticas Públicas; Neoliberalismo; Necropolítica; Saúde

Abstract

This article is part of a research project on the narratives of authorities and social groups and their impacts on society, having as a general theme the coronavirus pandemic. The following text addresses the speeches and actions of the Bolsonaro government about the pandemic and its consequences for the elderly population in Brazil. From a methodological point of view, the speeches and actions that had repercussions on internet portals, newspapers and social networks are considered. The discussion about the data is based on the concept of biopolitics, the end of the Welfare State and the advance of neoliberalism on public health policies and the necropolitics adopted by the government, abandoning populations most vulnerable to the SARS-CoV-2 virus, which causes of the coronavirus pandemic. The results demonstrate that the option for not fighting the governmental coronavirus has imposed suffering and deaths on the population made up of people over 60 years of age, making up over 73% of the total deaths in Brazil until April 2021.

Keywords:
Public Policies; Neoliberalism; Necropolitics; Health


Introdução

Os primeiros casos de Covid-19 surgiram no final de 2019 na cidade de Wuhan e posteriormente se espalharam por quase todos os países do mundo, inclusive o Brasil. Esta doença, apesar de não apresentar uma elevada taxa de mortalidade, apresenta uma elevada taxa de transmissibilidade, sendo particularmente letal em populações imunodeprimidas e em idosos. Por este motivo, a maioria dos países afetados pela doença decretou medidas extremas de isolamento e quarentena para proteger as populações vulneráveis.

Ao contrário de muitos países, no Brasil, a pandemia de Covid-19 tem mostrado que a opção do governo do Presidente da República, Jair Bolsonaro, é cada vez mais a de minimizar o espaço da biopolítica e maximizar o da necropolítica. A estratégia do governo neoliberal de extrema direita para garantir o processo de acumulação capitalista em tempos de crise estrutural, uma combinação de crise econômica e político-ideológica, é adotar medidas que desprezem a vida da população mais vulnerável (trabalhadores, idosos e populações pretas e pobres) em favor de uma pequena fração da burguesia (financeira, comercial e agroindustrial) que dá apoio político ao governo. A hipótese inicial tem apontado na ideia de que as falas negacionistas e as atitudes contrárias do Presidente Jair Bolsonaro ao isolamento social, lockdown, vacina e sua insistência em tratamento à base de medicamentos descartados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e demais autoridades em saúde têm contribuído progressivamente para a produção do desastre sanitário vivido no País desde o início de 2020.

Assim, neste artigo, se fará uma discussão sobre a opção do governo em minimizar a gravidade da pandemia a partir das narrativas e das ações do Presidente da República, Jair Bolsonaro durante o primeiro ano do caos sanitário que foi construído no Brasil. Para tanto, se faz uma discussão sobre as teorias que embasam o pensamento político em torno da biopolítica e da necropolítica, tendo como referência Foucault, Agamben e Mbembe. Serão apresentados ainda, o processo de desconstrução das políticas de bem-estar social e a radicalização do projeto neoliberal no País, tendo como recorte a emenda 95/2016, conhecida como emenda do teto de gastos (BRASIL, 2016BRASIL. Emenda constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em 21/06/2021.
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), e aprofundada por outros projetos, como as reformas trabalhista e previdenciária.

Neste artigo se pensa a necropolítica praticada em larga escala durante o processo pandêmico como parte de um projeto econômico que opta pela concentração da riqueza e pela eliminação de setores sociais indesejáveis ao capitalismo financeiro. Nesse sentido, o enfoque se dará sobre os efeitos da pandemia junto à população idosa no Brasil, até o momento, a mais afetada pelo número de mortes causado pelo SARS CoV-2.

Materiais e métodos

Foram consultados portais de notícias e vídeos com a finalidade de coletar material acerca das falas e ações do presidente relacionados à pandemia, desde seu início até o mês de abril de 2021. Além disso, a análise desse material foi feita a partir de seus efeitos junto à população. Para tanto, várias fontes foram consultadas e muito material foi coletado para análise: Fundação Getúlio Vargas Social (FGV Social), Conselho Nacional de Saúde, Fundação Getúlio Vargas, Tribunal Superior Eleitoral, DataFolha, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2020DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Boletim Especial: quem são os idosos brasileiros. Dieese, n. 1, 30 abr. 2020.), Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) e outras, além de leis específicas como a emenda 95/2016 e a Lei nº 10.741/2003. Todos os dados são de domínio público, não necessitando de autorização específica para seu uso.

Discussão e resultados

Os conceitos de biopolítica e necropolítica têm se tornado cada vez mais relevantes nas ciências sociais e, mesmo, na mídia, para interpretar as contradições e as violências da época atual, caracterizada por um sistema capitalista globalizado, neoliberal e financeiro, cuja raiz está o aumento da exploração do trabalho que tem como resultado de acumulação de capital, baixos salários, desemprego, ausência de proteção social e a miséria de populações no mundo inteiro.

Pode-se compreender a biopolítica como forma de poder e gestão da vida humana, da população e da sociedade como parte da espécie, a partir de seus componentes biológicos e existenciais. Além disso, é entendida como uma função “protetora” e, ao mesmo tempo, de controle e disciplina sobre corpos e grupos humanos, exercida pelo Estado por meio de leis e políticas públicas.

Na década de setenta do século passado, Foucault (2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população: curso dado no College de France. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes: 2008., p. 3) criou o termo “biopoder”. O biopoder envolve um certo número de técnicas que permitem o controle da população e dos corpos ou seres individuais. Dessa forma, o biopoder se divide em dois ramos: a anatomopolítica e a biopolítica. Por um lado, o biopoder será exercido por meio da anatomopolítica, que se refere ao controle do corpo e se encontra no nível individual. Este ramo irá proibir certos comportamentos considerados anômalos ou inadequados para a sociedade, como as perversões, a homossexualidade, os comportamentos anti-higiênicos, entre outros. Por outro lado, o biopoder será exercido em nível populacional por meio da biopolítica, seu segundo ramo. A biopolítica ficará encarregada de regular o nível de saúde da população, as estratégias de vacinação, o controle de doenças, a natalidade, entre outros. Esses dados populacionais, referentes às suas características de vida, são periodicamente documentados para que constituam estatísticas sobre a evolução das características biológicas da sociedade.

Segundo Ayala (2020AYALA, J. Viropolítica e governamentalidade capitalista: Sobre a gestão da pandemia do início do século 21. Desde el Sur, v. 12, n. 2, p. 377-395, 2020., p. 380), para administrar a pandemia do século XXI correspondente à Covid-19, uma série de aparatos de poder tem sido utilizada, por meio de uma prática chamada de “governamentalidade capitalista”. O autor chamou esse tipo de governo de viropolítica, uma forma de biopolítica que usaria o aparato jurídico, estabelecendo as limitações da população, o aparato disciplinar que exercerá a vigilância, o aparato de segurança que tentará normalizar os indivíduos e o aparato do algoritmo, no qual modernos meios eletrônicos de recuperação e interconexão de dados, bem como a inteligência artificial, vão moldar padrões de comportamento da população, no marco de um sistema capitalista e neoliberal.

Se a política é voltada para maior produtividade, o trabalhador deve manter-se saudável e apto para realizar suas tarefas diárias. Para isso, o governante biopolítico implementa medidas de proteção à saúde, e cada vez mais intervém na promoção e controle da biologia do cidadão, com ações como exames médicos periódicos, controle de natalidade, desenho e administração do sistema de saúde, entre outros. Atualmente, a biopolítica direciona os destinos de várias nações, baseando-se no saber das disciplinas científicas e nos conhecimentos mais recentes sobre o SARS-CoV 2, produzido pela medicina, biologia e tecnologia. O isolamento social, o uso obrigatório de máscaras para andar pelas ruas e para entrar em qualquer local que não seja a casa do cidadão, tornaram-se recomendações obrigatórias. É obrigatória a lavagem rigorosa das mãos e o uso de álcool em gel após o contato com outras pessoas ou objetos; os cumprimentos devem ser a distância; há uma gama de proibições de expressões de afeto como beijos, abraços ou apertos de mão devido à alta probabilidade de transmissão do vírus, assim o uso da biopolítica permite a instalação de novas formas de vigilância e controle.

O vírus é onipresente, estaria no ar, em objetos de metal, em objetos de plástico, nas solas dos sapatos, nos cabelos, nas narinas e na garganta, sendo transmitido pela tosse ou pelo hálito de qualquer pessoa. Diante desse inimigo invisível, a biopolítica se apresenta como um poder totalitário indispensável, que modifica a vida de todos os habitantes da terra, criando distâncias entre seus diversos integrantes, diante do real perigo de contágio e da possibilidade de morte.

Essa função protetora e controladora do Estado é exercida por meio do biopoder, o poder do Estado de regular a sociedade em vários aspectos da vida, desde o nascimento à morte. No período entre guerras, essa política foi redesenhada a partir da crise do capitalismo de 1929 e recebeu o nome de Welfare State. O Welfare State era formado por um conjunto de políticas públicas e sociais de bem-estar social de responsabilidade do Estado, que garantiu a promoção de serviços públicos básicos e essenciais à população. Isto é, educação, saúde pública, moradia, manutenção da renda e seguridade social. O Estado de Bem-Estar Social, como ficou conhecido no Brasil, ocorreu principalmente nos países centrais do capitalismo.

A partir da década de oitenta do século passado, a política de bem-estar social, promovida pelo Estado sofreu perdas consideráveis, ocasionada pela nova expansão do capitalismo e um novo processo de acumulação se iniciou, aumentando a exploração do trabalho em outras regiões do planeta. A China e outros países asiáticos se tornaram o centro do capitalismo produtivo e os países centrais do capitalismo, como Reino Unido, Alemanha, França, Estados Unidos e outros precisaram remodelar a estrutura do Estado com a finalidade de manter a lucratividade do empreendimento capitalista, desregulamentando a atividade econômica e trabalhista.

Segundo Gomes (2006)GOMES, F. G. Conflito social e welfare state: Estado e desenvolvimento social no Brasil. RAP Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 40, v. 2, p. 201-36, mar./abr. 2006., o neoliberalismo e a ideologia contrária ao Welfare State ganharam maior dimensão com a chegada ao poder de Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, na Inglaterra, na passagem da década de 1970 para 1980. Para o autor, houve uma mudança na condução da política econômica e a entrega do sistema de proteção social às forças do mercado, [...] reduzindo o papel do Estado, em última instância, isso trouxe amplas possibilidades de expansão dos mercados para a realização de lucros capitalistas”. (GOMES, 2006GOMES, F. G. Conflito social e welfare state: Estado e desenvolvimento social no Brasil. RAP Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 40, v. 2, p. 201-36, mar./abr. 2006., p. 2017).

Isso significou, basicamente, diminuir as atribuições do Estado na sociedade a fim de aliviar o peso fiscal e os custos financeiros da produção. Mishra (1996)MISHRA, R. O bem-estar das nações. In: BOYER, R.; DRACHE, D. (org.). Estado contra mercados. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 359-377. acentua que uma das saídas foi retirar boa parte dos financiamentos das políticas públicas, acabando com serviços destinados à população mais pobre. Ocorreu ainda o encorajamento do aumento de subsídios fornecidos ao setor privado e ao empregador ao “[...] introduzir mais competição no fornecimento da previdência social, através da privatização e da atividade lucrativa” (MISHRA, 1996MISHRA, R. O bem-estar das nações. In: BOYER, R.; DRACHE, D. (org.). Estado contra mercados. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 359-377., p. 363).

Quais foram os efeitos da crise do estado social? Eles podem ser resumidos em três, em relação aos fenômenos que os causaram. Em primeiro lugar, a redução da proteção das camadas sociais médias e mais vulneráveis por um Estado cada vez mais mínimo e mais privatizado que aloca menos recursos às necessidades públicas e mais às necessidades privadas, o que implica uma reconfiguração do capital mundial em que a concentração da riqueza nas mãos de uma elite minoritária aumenta, enquanto cresce desproporcionalmente a desigualdade; em segundo lugar, a passagem da pobreza à exclusão social, conceito que propõe novas formas de exploração e precariedade e; talvez a menos óbvia, mas a mais profunda de todas, o grande aumento da desconfiança pública em relação ao Estado social e o retorno do medo de cair na marginalização, mergulhando enormes camadas das classes média e baixa na desmoralização e na falta de esperança, entre outras coisas, porque se dão conta de como o poder econômico busca controlar o poder político, o que negaria o próprio conceito de democracia.

Diante do quadro de agudização do fim do sistema de proteção social, o Estado passou a decidir quais segmentos da população deve ou não proteger, estabelecendo hierarquias com recortes étnicos, sexuais, de classe, idade ou de gênero contra aqueles que supostamente representam uma ameaça para o resto da população: por exemplo, isto ocorre com a criminalização da imigração e a negação de serviços de saúde para refugiados; quando o governo Bolsonaro se recusou a fornecer água potável aos povos indígenas; com a decisão sobre qual é a vida mais importante, se a dos jovens ou dos idosos; quando os respiradores são escassos em um hospital lotado de centenas de pessoas infectadas com Covid-19 (BOLSONARO..., 2020aBOLSONARO sanciona, com vetos, projeto que prevê medidas para tentar proteger indígenas. G1, São Paulo, 08 jul. 2020a. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/08/bolsonaro-sanciona-com-vetos-projeto-que-preve-medidas-para-tentar-proteger-indigenas.ghtml. Acesso em: 21 jan. 2022.
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), entre outras questões.

Ao contrário da biopolítica, a necropolítica parte do pressuposto de que o biopoder global na periferia não funciona da mesma forma que no centro capitalista. Refere-se a outro tipo de poder, o de matar por meio de tecnologias e dispositivos, legais e ilegais, com efeitos muito mais radicais, como a guerra às drogas, o feminicídio, o desaparecimento forçado, a escravidão, o tráfico de drogas e de pessoas, entre outras graves violações de direitos humanos. Seu objetivo é lidar com a morte, não mais com a vida.

Na África, Ásia e América Latina, mas também, acrescenta-se, nas periferias do sistema na Europa ou nos Estados Unidos, atinge seus extremos: populações inteiras sobrevivem como mortos-vivos ou caminhantes espectrais dentro de novos campos de concentração, microestados de exceção para lidar com o dispensável ou descartável da sociedade.

Não há dúvida de que a morte está explícita no debate sobre a necropolítica. Mbembe (2008), em sua análise, entende que o capitalismo desde o século XV até a revolução industrial, quando se inventou a maquinaria, não poderia ter funcionado sem a escravidão dos povos africanos. Assim, a escravidão supõe toda a disponibilidade da existência de outrem nas mãos do senhor, simplesmente pelo medo de perder a «vida nua» — como diria Agamben (2007, p. 14) — mera sobrevivência biológica. Para Mbembe (2016)MBEMBE, A. Necropolítica. biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-51, dez. 2016., dessa rendição total da liberdade emana uma perda tripla para o sujeito, que o obriga a desistir de uma casa própria, a dispor de seu corpo e, claro, dos direitos políticos (MBEMBE, 2016MBEMBE, A. Necropolítica. biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-51, dez. 2016., p. 131). De alguma forma, isso o torna aquele homo sacer de Agamben (2002)AGAMBEN, G. H. S. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., um indivíduo que estava destinado a morrer de qualquer modo segundo o direito romano arcaico, seja pela ação do aparato legal ou não e que poderia ser morto impunemente, já que tal ato não era reconhecido como homicídio (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, G. H. S. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 16). Transforma-o em um ser descartável que certamente ninguém reclamará, ao qual todas as garantias civis foram suspensas, a começar pelo Habeas corpus, deixando-o à mercê da violência em uma ambígua terra de ninguém, entre a natureza e a política. Na sociedade escravista, essa distribuição desigual de poder era sustentada pela tática recorrente do pânico, por meio do castigo corporal e do isolamento, que funcionava como reforço e lembrança daquele medo original que havia levado os curvados a renunciar à liberdade. As políticas modernas de terror e crueldade continuam a fazer uso dos princípios que ainda estão nas profundezas da psique humana. Portanto, há uma concatenação entre o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio.

Sobre essas bases surge o conceito de necropolítica, a ideia de que “a expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de decidir quem pode viver e quem pode morrer” (MBEMBE, 2016MBEMBE, A. Necropolítica. biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-51, dez. 2016., p. 123). A esta ideia deve-se acrescentar o fato de que a violência econômica não se expressa tanto na exploração do proletariado, mas em tornar supérflua uma parte significativa da população mundial. Um mundo que, como diz Mbembe (2020MBEMBE, A. Poder brutal, resistência visceral. São Paulo: n-1 edições, 2020., p. 7): “questiona radicalmente o projeto democrático herdado do Iluminismo”, regido pelo lema da igualdade, liberdade e fraternidade emanado da Revolução Francesa. Devido à maquinização primeiro, depois à digitalização e, por último, à financeirização econômica, que deslocou o investimento monetário das esferas agrícola e industrial para a especulação financeira, o capitalismo vem produzindo um excedente de trabalhadores que não precisa mais explorar.

A forma de se desfazer desses excedentes populacionais é “expô-los a todos os tipos de perigos e riscos, muitas vezes fatais” (MBEMBE, 2020MBEMBE, A. Poder brutal, resistência visceral. São Paulo: n-1 edições, 2020., p. 10), como é o caso do gotejamento de feminicídios no México ou das operações eugênicas descobertas durante o Holocausto, ou mesmo, das operações policiais que ocorrem nas favelas brasileiras. Nesse sentido, não surpreende a situação a que estão submetidos os idosos e trabalhadores atualmente, para os quais o coronavírus parece ter se desencadeado.

Em alguns países, como Reino Unido, Brasil, Suécia e Estados Unidos, seus respectivos governos tentaram, em um estágio inicial, deixar o vírus se espalhar como principal estratégia para sua posterior contenção.

O Reino Unido e a Suécia, de um lado qual, quando 60% da população se infectasse, a transmissão do vírus cessaria ao encontrar uma população que deixaria de estar sujeita ao contágio. Esses governos mostraram práticas políticas erradas, pois o número de casos e a mortalidade nesses países aumentaram dramaticamente. Por isso, tiveram que implementar as medidas clássicas de isolamento social. Os Estados Unidos e o Brasil, por outro lado, implementaram medidas semelhantes, por um motivo diferente: não prejudicar a economia. “O que há de errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só será livre quando um certo número de pessoas se infectar e criar anticorpos”. (BOLSONARO, 2020bBOLSONARO diz haver ‘histeria’ com coronavírus. PODER 360, 18 mar. 2020b. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-haver-histeria-com-coronavirus/. Acesso em: 09/03/2022.
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, p. 1).

Essa decisão errada, que transformou o Brasil no epicentro da pandemia, pode ser considerada um ato de necropolítica. No texto comentado acima, Mbembe coloca como exemplos o massacre e a segregação das populações palestinas em Israel, a falta de soluções para os problemas da pobreza e da fome na África; ou seja, a necropolítica se realiza quando certas populações são deixadas à própria sorte, quando já se sabe que não dispõem de recursos para resolver seus problemas básicos (MBEMBE, 2016MBEMBE, A. Necropolítica. biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-51, dez. 2016., p. 135).

A regulação da vida e da morte são duas faces do mesmo medalhão, os objetivos da bio e da necropolítica, na prática, são conduzidos pelo Estado-nação, mas também por atores privados e paraestatais como milícias, oligopólios e poderes criminosos legais e ilegais (ou uma mistura de ambos), em plena harmonia com o modelo socioeconômico e ideológico dominante, do tipo privatizante e saqueador de bens e direitos comuns em todo o mundo.

No Brasil, a pandemia Covid-19 mostrou que a opção do governo Bolsonaro, é cada vez mais de minimizar o espaço da biopolítica e maximizar o da necropolítica. A estratégia do governo neoliberal de extrema direita para garantir o processo de acumulação capitalista em tempos de crise estrutural, uma combinação de crise econômica e político-ideológica, é adotar medidas que desprezem a vida da população mais vulnerável (trabalhadores, idosos e populações pretas e pobres) em favor de uma pequena fração da burguesia (financeira, comercial e agroindustrial) que dá apoio político ao governo. “Obviamente, temos uma crise agora, uma pequena crise. Na minha opinião, muito mais fantasia. a questão do coronavírus, que não é tudo que a grande mídia espalha ou divulga pelo mundo” (BOLSONARO... 2020cBOLSONARO diz que ‘pequena crise’ do coronavírus é ‘mais fantasia’ e não ‘isso tudo’ que a mídia propaga. G1, São Paulo, 10 mar. 2020c. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/10/bolsonaro-diz-que-questao-do-coronavirus-e-muito-mais-fantasia.ghtml. Acesso em: 22 jan. 2020.
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).

Quando os governadores de Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Bahia e Maranhão propuseram o fechamento dos aeroportos e o isolamento social, Bolsonaro não apenas se manifestou contra, como afirmou que isso se tratava de enganar a população sobre a gravidade da crise sanitária: “Em breve, as pessoas saberão que esses governadores e grande parte da mídia as enganaram sobre a questão do coronavírus” (POPULAÇÃO..., 2020POPULAÇÃO saberá que foi enganada por governadores e imprensa sobre coronavírus, diz Bolsonaro. Folha UOL, Porto Alegre, 20 mar. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/povo-sabera-que-foi-enganado-por-governadores-e-imprensa-sobre-coronavirus-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em: 22 jan. 2022.
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).

Assim, as falas negacionistas e as atitudes contrárias do Presidente Jair Bolsonaro ao isolamento social, lockdown, vacina e sua insistência em tratamento à base de medicamentos descartados pela OMS e demais autoridades em saúde tem contribuído progressivamente para a produção do desastre sanitário vivido no País desde o início de 2020 com uma média diária de 2.481 mortes por Covid-19, durante os meses de março e abril do ano de 2021, segundo os dados do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS, 2020)

Em primeiro lugar, atenta-se para o discurso do presidente com relação à gravidade da pandemia e ao isolamento social em março de 2020, quando havia ainda 19 casos no País.

Todas as falas do presidente fazem propaganda contra a saúde pública, definida como o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas não comprovadas cientificamente, com o objetivo de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da Covid-19. A opção pela morte como política do governo, contribuiu para o aprofundamento da crise do coronavírus no país. Seu custo era tempo fundamental para a resposta e também vidas. Mas hoje, apesar de seus erros estarem documentados, Bolsonaro se recusa a admitir sua responsabilidade em lidar com a emergência em um ano já completado de pandemia.

No dia 19 de abril de 2020, enquanto no Rio de Janeiro estava sendo concluída a construção de um hospital de emergência para atender os mais de 7 mil pacientes com coronavírus na cidade, o presidente participou de uma passeata em Brasília, capital do país, exigindo o fim das medidas de quarentena implementadas pelos governadores dos estados. Esse também foi o dia em que o presidente, com o rosto descoberto, foi fotografado tossindo nas mãos enquanto fazia um discurso (BORGES, 2020BORGES, L. Bolsonaro fura quarentena e participa de manifestação no QG do Exército. Veja, São Paulo, 19 abr. 2020. Disponível em:https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-fura-quarentena-e-participa-de-manifestacao-no-qg-do-exercito/. Acesso em: 22 jan. 2022.
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).

Como demonstrado, desde o início da crise, Bolsonaro negou a catástrofe. Ele chamou o vírus de gripezinha (HÁ UM ANO..., 2021HÁ UM ANO, Bolsonaro chamava COVID de gripezinha em rede nacional; relembre. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24 mar. 2021. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/24/interna_politica,1250005/ha-um-ano-bolsonaro-chamava-covid-de-gripezinha-em-rede-nacional-relembre.shtml. Acesso em: 22 jan. 2022.
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), pediu aos cidadãos que voltassem aos seus empregos e zombou das medidas de distanciamento, garantindo que um dia todos morreremos. Agora, embora a crise tenha se agravado deixando mais de 534.000 mortos (dados de 13 de julho de 2021), o messias, como os bolsonaristas o batizaram, foge de qualquer tipo de responsabilidade por sua resposta à emergência sanitária. “Lamento. O que você quer que eu faça? Eu sou o Messias, mas não faço milagres” (GARCIA; GOMES; VIANA, 2020).

Mas, a necropolítica de Bolsonaro, que continua convencido de que a pandemia está sendo exagerada, é antes uma estratégia de eliminação da população, sobretudo de idosos e pobres e não fez nada para evitar esse cenário. Ele pôde trabalhar junto com os governadores, prefeitos e demais autoridades para controlar o caos sanitário estabelecido. Também pôde pedir aos seus cidadãos que evitassem sair de casa, comprar ou consumir, para não propagar o vírus. E pôde ouvir o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que estava pronto para trabalhar com os cientistas do país para achatar a curva, mas mudou em meio à crise, demitiu o ministro em abril de 2020 e colocou militares no Ministério da Saúde que simplesmente ignoraram a gravidade da pandemia, deixando de comprar insumos para uso hospitalar como: medicamentos necessários para intubação de pacientes com Covid-19, oxigênio e mais grave, deixaram de comprar vacinas e seringas, quando recebeu propostas da Pfizer para compra de 170 milhões de doses, o governo ignorou (AZEVEDO, 2021AZEVEDO, A. A. Governo recusou seis propostas de vacinas da Pfizer; veja quais foram. Exame, Brasília, 13 maio de 2021. Disponível: https://exame.com/brasil/governo-recusou-seis-propostas-de-vacinas-da-pfizer-veja-quais-foram/. Acesso em: 22 jan. 2022.
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), preferindo apostar em remédios sem eficácia comprovada. O quadro atual se mostra extremamente grave e tarde demais para responder de forma eficaz ao surto, já que a crise de saúde foi acompanhada por uma postura negacionista e anticientífica do governo central. Sua abordagem arrogante da pandemia o colocou em confronto direto com governadores estaduais e outros líderes locais, alguns dos quais estavam entre seus aliados. A atitude de Bolsonaro também minou qualquer resposta coerente do governo federal. Uma administração Bolsonaro competente estaria apoiando os estados com recursos, coordenando a resposta para garantir que os suprimentos cheguem onde são necessários e ajudando a adquirir medicamentos e outros equipamentos do exterior.

Segundo Ayres (2020), um dos problemas fundamentais da forma como o governo tem tratado a pandemia de Covid-19 é que nos últimos anos, principalmente depois que os conservadores governos federais chegaram ao poder em 2016, houve uma notável falta de recursos para o sistema público de saúde, aprofundando problemas estruturais e históricos e aumentando as desigualdades regionais.

Desde então, diversas medidas têm sido tomadas para reduzir a proteção do Estado, principalmente para a classe trabalhadora de baixa renda e para os idosos: Emenda Constitucional 95/2016 que limita os gastos do Estado em todas as áreas por vinte (20) anos, ficando conhecida como emenda do teto de gastos; reforma trabalhista realizada pela Lei nº 13.467/2017, que afrouxa em vários pontos os direitos dos trabalhadores, inclusive férias e demissão (BRASIL, 2017BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 20 jun. 2020.
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); reforma previdenciária criada pela emenda constitucional 103/2019, que aprofunda a desproteção da população, já agravada no campo da saúde, pela emenda do teto de gastos. A emenda 95/2016 afetou sobremaneira o Sistema Unificado de Saúde (SUS), o investimento em ciência, educação e as universidades federais (BRASIL, 2016BRASIL. Emenda constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em 21/06/2021.
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).

Assim, desde que a Emenda Constitucional (EC) 95 foi aprovada, em dezembro de 2016, o orçamento para a Saúde tem diminuído cada vez mais. Somente em 2019, a perda de investimentos na área representou R $20 bilhões, o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde.

Segundo dados apresentados no relatório da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), desde 2017, quando a emenda passou a vigorar, os investimentos em serviços públicos de saúde representavam 15,77% da arrecadação da União. Já em 2019, os recursos destinados à área representaram 13,54%. O que se percebe desde então, é o encolhimento da receita da área de saúde. Conforme metodologia de cálculo apresentada pelo Cofin, se em 2019 o governo tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017 (15% da receita corrente líquida de cada ano), a Saúde teria um orçamento de cerca de R $142,8 bilhões e não R $122,6 bilhões aplicados. Ou seja, um encolhimento de R $20,19 bilhões nos recursos (BRASIL, 2020BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016. Brasília, DF: 28 fev. 2020. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 22 jan. 2022.
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).

É preciso ainda atentar-se que o EC 95/16 congelou o orçamento da União e demais entidades federadas por 20 anos, assim, os cortes no Sistema Único de Saúde (SUS) devem ultrapassar R $400 bilhões nos próximos 15 anos, segundo cálculos do CNS. O presidente do órgão, Fernando Pigatto declarou que com base nesses cálculos, pode-se dizer que, “o SUS, que nunca teve financiamento adequado e sempre foi subfinanciado, agora enfrenta um quadro ainda pior, de desfinanciamento, que poderá causar grave impacto à vida e à saúde da população brasileira” (BRASIL, 2020BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016. Brasília, DF: 28 fev. 2020. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, p. 1).

Apesar de ter sempre havido um subfinanciamento da saúde pública no Brasil desde a criação do SUS em 1988, é preciso observar ainda uma redução progressiva do que se chama o CNS denomina de renda per capita em saúde (BRASIL, 2020BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016. Brasília, DF: 28 fev. 2020. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas...
). O CNS aponta para a redução progressiva da chamada “renda per capita da Saúde”, isto é, o valor aplicado em um ano pelo poder público na Saúde da população dividido pelo número de habitantes. O valor investido por pessoa, que chegou a R $595,00 em 2014, passou a ser de R $555,00 em 2020. Ao invés de crescer, os investimentos em saúde têm diminuído, considerando que a população está crescendo e envelhecendo como se pode ver no Gráfico 1.

Gráfico 1
- Porcentagem aplicada na saúde de 2016-2019

Portanto, existe uma curva decrescente dos investimentos em Saúde associados ao envelhecimento dos brasileiros e a uma remuneração cada vez mais insuficiente da aposentadoria.

Segundo o Estatuto do Idoso criado pela Lei nº 10741/2003, são considerados idosos pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.741, 1 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em 19 jun. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). A Lei ainda estabelece os direitos da pessoa idosa em ter prioridade no atendimento em políticas públicas de saúde, significando que o estado deveria ter dado à população idosa prioridade no atendimento, sobretudo em situação de pandemia, todavia, no Brasil, os efeitos da necropolítica têm sido observados na alta mortalidade de pessoas acima de 60 anos, totalizando em abril de 2021 mais 73% das mortes por Covid-19, conforme demonstrado no Gráfico 2.

Gráfico 2
- Mortes por faixa etária

Quando se analisa o Gráfico 2 pelo recorte de idade, os idosos aparecem como um segmento da população bastante vulnerável ao vírus, seja pelas comorbidades que agravam as infecções, seja pela situação socioeconômica de sua maioria. Segundo levantamento feito Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2020DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Boletim Especial: quem são os idosos brasileiros. Dieese, n. 1, 30 abr. 2020.), os idosos vivem em 25,4 milhões dos 73,0 milhões de domicílios existentes no Brasil, o que significa que em 34,5% dos lares brasileiros há, pelo menos, uma pessoa com 60 anos ou mais. As informações revelam que, apesar de representarem menos de 17% da população total, os idosos estavam presentes em mais de um terço dos domicílios e representam o maior número de mortes por Covid-19 no País.

A Fundação Getúlio Vargas Social, numa pesquisa publicada em 2020, identifica que os idosos acima de 60 anos recebem 59,64% das aposentadorias da previdência social e 40,78% dos Benefícios de Prestação Continuada (BPC). Tanto a previdência quanto o BCP pagam ao menos um salário mínimo. Entretanto, a pesquisa aponta um dado importante na definição de campanhas de comunicação para o público idoso: a baixa educação de grande parte desse grupo. Cerca de 30% dos analfabetos no país são idosos. Entre as pessoas com apenas de 1 a 3 anos de estudos, a taxa de idosos chega a 16,6%. Nesse sentido, é necessário pensar em campanhas educativas de conscientização sobre a pandemia que seja compreensível para este tipo de público, do mesmo modo, deve-se considerar que boa parte dele, cerca de 22,47 não tem acesso à internet, ressaltando a necessidade de campanhas no rádio, televisão e visitas domiciliares de agentes de saúde. (FGV Social, 2020, n.p.)

Todavia, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA, 2020IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Morte de idosos por causa da Covid-19 pode alterar drasticamente a renda das famílias. 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=36198. Acesso em: 30 abr. 2021.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
), a morte por Covid-19 de pessoas com 60 anos ou mais retirou R $3,8 bilhões de circulação do mercado até. Até abril de 2021, foram 301 mil vítimas da Covid-19 constatadas dentro dessa faixa etária. À época, a faixa etária dos que tinham 60 anos ou mais tinha rendimento total médio de R $2.249,00, o equivalente a 1,3% do rendimento total da população em todo o ano de 2019 ou R $294,4 bilhões. O Ipea diz que, em 25,4 milhões dos mais de 72 milhões de domicílios no País, vivem idosos que dividem sua renda com outros membros do grupo familiar. Em 15,4 milhões de lares, mais de 50% da renda vem do idoso. Isso significa diminuição de renda entre os grupos familiares que dependem da aposentadoria ou BCP do componente de mais 60 anos.

Paradoxalmente, os idosos em sua maior parte, compunham a parte do eleitorado de Bolsonaro em 2018. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) indicou que os idosos formavam em 2018, 18,2% do eleitorado brasileiro, 50% desse total declararam voto em Bolsonaro, contra 34% do adversário Fernando Haddad em pesquisa divulgada pelo Datafolha em 26 de outubro de 2018, na véspera do 2º turno da eleição presidencial. A pesquisa considerou somente os votos válidos.

Apesar de ter recebido voto de maior parte dos idosos,em entrevista ao programa Brasil Urgente da Band, no dia 08/04/2020 e reproduzido pelo site CartaCapital, Bolsonaro rejeitou abertamente o dever do governo de proteger as pessoas idosas ao dizer: “Cada família tem que proteger seus idosos, não jogar isso para o Estado. É colocar os idosos em casa e o resto ir trabalhar, porque os empregos estão sendo destruídos”.

Segundo Canineu e Brown (2020)CANINEU, M. L.; BROWN, B. Bolsonaro precisa mudar o discurso em relação aos idosos e agir durante a pandemia. UOL, 5 de maio de 2020. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2020/05/05/375159. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, em análise para Human Rights Watch, além dos baixos rendimentos, mais de 4 milhões de idosos vivem sozinhos no País. O governo deveria protegê-los, assim como aqueles que vivem com suas famílias ou em instituições. A pandemia aumenta os riscos à saúde desta faixa etária, mas também os riscos de violência, sobretudo contra mulheres idosas, negligência e outros abusos praticados por parceiros, filhos e cuidadores. As políticas públicas servem exatamente para poder ampliar as chances de sobrevivência dessa população.

As falas do presidente Jair Bolsonaro e a negligência do estado em proteger as populações idosas, influenciaram diretamente no número de mortes, infecções e na ausência de autoproteção por parte da população. Embora não tenha uma pesquisa que trate diretamente da influência da falas e das ações do presidente junto aos idosos, pode-se pensar na possibilidade dessa influência, considerando-se os dados sobre as intenções de voto entre pessoas acima de 60 anos, comentada acima e o levantamento feito por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de Cambridge, publicado no Jornal da USP em 06/05/2021, no qual é retratado que nos municípios em que Bolsonaro teve maior número de votos, houve uma adesão menor ao isolamento social imposto por prefeitos e governadores.

Gráfico 3
- Porcentagem eleitoral de idosos no Brasil em 2018

Para a referida pesquisa, foram coletados dados de geolocalização de 60 milhões de aparelhos celulares, depois disso, foram cruzados com as informações do Tribunal Superior Eleitoral acerca do resultado das eleições presidenciais de 2018. A metodologia utilizada considerou que o usuário de celular furou o isolamento, quando se afastou pelo menos 450 metros do domicílio residencial os dados finais obtidos permitiram concluir que os níveis de adesão ao isolamento caíram, em média, até três pontos percentuais em municípios que concentram mais apoiadores de Bolsonaro em dois eventos específicos, que tiveram grande repercussão nacional e internacional, nos dias 15 e 24 de março de 2020. Em ambas as situações, o presidente minimizou os impactos da Covid-19: em 15 de março de 2020, Bolsonaro participou das manifestações de seus apoiadores em Brasília (DF), não fazendo uso de máscara e no dia 24 de março de 2020, ele fez um pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, chamando a pandemia de gripezinha mais uma vez; criticou as medidas de isolamento social impostas por governadores e prefeitos e solicitou a todos, a retomada das atividades econômicas, religiosas e escolares.

Considerações finais

O Brasil é liderado por um presidente cujo desprezo pela ciência e pela vida coloca em risco a saúde da população brasileira e põe o mundo em alerta, com as possibilidades dos surgimentos de variantes mais letais do coronavírus. A promessa de combate à corrupção que embasaram a campanha eleitoral de 2018, não se concretizou durante o seu governo e camuflam políticas neoliberais que enriquecem pessoas que já eram ricas, aumentando a concentração de renda do País e o retorno ao mapa da fome. Essa política tem interrompido o atendimento de políticas públicas para setores sociais vulneráveis, compreendendo idosos e demais populações pobres, enfraquecendo o enfrentamento à pandemia, promovendo o caos sanitário ao se posicionar sempre contrário às medidas recomendadas pela OMS e adotadas por prefeitos e governadores. A necropolítica de Bolsonaro não constitui uma agenda isolada; tem se espalhado pelo mundo, à medida que os políticos mobilizam pessoas inseguras com suas perspectivas de declínio para ir contra os inferiores estruturais de raça, gênero, orientação sexual e social, além, é claro, de imigrantes, como, por exemplo, a Turquia, Índia, Hungria, Filipinas e os Estados Unidos da era Trump.

A necropolítica de Bolsonaro, foi facilitada por décadas de políticas neoliberais, reforçando prerrogativas corporativistas, privatização dos serviços públicos, aumento do preconceito e do ódio em relação às populações e indígenas, afro, escândalos de corrupção de governos anteriores e pânicos morais em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, à orientação sexual e a dimensão da transgeneridade. Esse complexo de políticas autoritárias tem criado condições adequadas para mais neoliberalismo, austeridade, flexibilização das leis trabalhistas, estagnação de programas de bem-estar social e muitos milhões retirados do sistema público de saúde.

Ao contrário do que está ocorrendo, o governo deve ser um fazedor, não apenas um financiador, fornecendo diretamente cobertura de saúde e engajando-se no desenvolvimento de medicamentos, insumos e vacinas via universidades públicas e institutos de pesquisas ao invés de pagar laboratórios privados para realizar tais tarefas.

A necropolítica bolsonarista tem imposto sofrimento aos brasileiros mais vulnerabilizados, expondo as fragilidades da ordem social e sanitária e a interconexão da sociedade. É necessária uma nova política de bem-estar social, cujo apelo repousa em uma visão de prosperidade compartilhada e um sistema de proteção social que garanta o acesso universal ao processo de inclusão social.

Agradecimentos

Não se aplica.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    08 Mar 2022
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