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ONDE AGONIZAM OS MORTOS DA PANDEMIA? APAGAMENTOS E DISPUTAS DE FUTURO NAS NARRATIVAS IMAGÉTICAS DA COVID-19

WHERE ARE THE DEAD OF THE PANDEMIC AGONIZING? OBLIVIONS AND DISPUTES FOR THE FUTURE IN COVID-19’S IMAGERY NARRATIVES

Resumo

Esta contribuição é resultado de reflexões desenvolvidas ao longo do período de isolamento social, a partir de levantamento de imagens na imprensa, nas exposições virtuais dos museus cariocas, na ArtRio e nos sites especializados em arte. De um lado, as imagens apresentam testemunhos e narrativas coletivas sobre o isolamento e a doença; de outro, implicam tomadas de posição política, em escopo ampliado.

Palavras-chave
Imagens da pandemia; sociologia da arte; arte e política

Abstract

This text is the result of reflections developed during the period of social distancing, based on a research of images in the press, in virtual exhibitions of museums in Rio, on ArtRio and on sites specialized in art. On the one hand, the images present testimonies and collective narratives about isolation and illness; on the other hand, they imply the political positions, in an expanded scope.

Keywords
Pandemic images; sociology of the arts; art and politics

Esta contribuição é resultado de reflexões desenvolvidas ao longo do período de isolamento social, a partir de levantamento de imagens na imprensa, nas exposições virtuais dos museus cariocas, na ArtRio e nos sites especializados em arte. A primeira parte foi parcialmente publicada no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social e foi concluída ainda em março de 2020, com as impressões iniciais sobre as imagens veiculadas pela imprensa. A segunda parte foi redigida em novembro do mesmo ano, passados mais de sete meses do texto inicial. Ali, apresento, além da reflexão sobre as imagens publicadas nos jornais, breve análise de um conjunto de obras de arte contemporânea que vêm ordenando, nestes meses de distanciamento, narrativas compartilhadas sobre a covid-19. De um lado, as imagens apresentam testemunhos e narrativas coletivas sobre o isolamento e a doença; de outro, acompanhando tendências já apontadas em outras ocasiões, elas implicam tomadas de posição política, em escopo ampliado.

O debate sobre a autonomia é central no âmbito da sociologia da arte e ordena muito da produção sobre o assunto nos meios acadêmicos. O campo da arte, o mundo da arte, o sistema de arte são categorias recorrentes para entender relações sociais que se travam no ordenamento da produção estética. Seja pensando os conflitos e disputas em torno dos processos de consagração (Bourdieu, 1996Bourdieu, Pierre. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia. das Letras.), seja refletindo sobre relações colaborativas contidas no fazer artístico (Becker, 2010Becker, Howard. (2010). Mundos da arte. Lisboa: Livros Horizonte.), seja discutindo processos de institucionalização (Bürger, 2008Bürger, Peter. (2008). Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac e Naify.), as reflexões sobre a arte parecem sempre pensá-la como produção autorreferida. Raros são, no entanto, os autores que não reconhecem sua heteronomia e seu papel na ordenação de interpretações compartilhadas com a sociedade envolvente. Nos últimos anos, tenho me dedicado a refletir sobre tensionamentos que em tempos recentes têm ampliado seu reconhecido papel na esfera pública (Sant’Anna, Marcondes & Miranda, 2017Sant’Anna, Sabrina Parracho; Marcondes, Guilherme & Miranda, Ana Carolina F.A. (2017). Arte e política: a consolidação da arte como agente na esfera pública. Sociologia & Antropologia, 7/3, p. 825-849.; Sant’Anna, 2019Sant’Anna, Sabrina Parracho. (2019). Museus, cidades e crítica institucional: o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e o Museu de Arte do Rio em análise comparativa. Todas as artes: revista luso-brasileira de arte e cultura, 2.).

Quanto ao tema da pandemia que concerne a este registro de pesquisa, cabe ressaltar que se os primeiros discursos imagéticos foram difundidos pela imprensa na esfera pública, num segundo momento artistas também tomaram posição, ganharam protagonismo e se colocaram como importantes agentes na consolidação de interpretações significativas, reivindicando também posições no campo político. Tomo, portanto, como centro do debate a produção imagética veiculada pela imprensa e os primeiros discursos que vêm ganhando proeminência na produção da arte contemporânea brasileira. Ainda que o sistema de arte não seja uníssono, processos de consagração registram posições predominantes dentro da arte contemporânea e permitem perceber as tensões entre autonomia e heteronomia da arte e suas relações com a sociedade ampliada.

MARÇO DE 2020

Trancados em casa com as mãos besuntadas de álcool gel, assistimos, atônitos, ao noticiário de todos os dias. No Brasil do século XXI, o termo quarentena volta à cena, com um sentido tão preciso quanto aquele com que foi cunhado há centenas de anos. Na etimologia, quarentena provém, naturalmente, de 40. Segundo o Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes (1955Nascentes, Antenor. (1955). Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica.: 425), “Como profilaxia contra as pestes do Oriente na Idade Média, estabeleceu- se o prazo de isolamento durante quarenta dias para os viajantes”.

No Japão, há cerca de um mês, acompanhamos o cruzeiro atracado em Yokohama fazendo valer os dias, reduzidos a 14, no isolamento imposto aos possíveis portadores da doença. Em terra, nas aglomerações metropolitanas, os 14 já anunciam voltar provavelmente aos 40 e, ao que parece, se estenderão ainda além, paralisando a vida, que segue em suspenso.

Na estante da sala, reencontro A peste. Faço-o junto com tantos leitores que voltaram a fazer de Camus best seller, mais de 70 anos depois. Releio também o Decameron e noto, para minha surpresa, que a Primeira Jornada, justo onde consta a narrativa da epidemia que dá sentido à obra de Bocaccio, foi suprimida da bela seleção de capítulos, editada pela Cosac & Naify e organizada por Maurício Santana Dias, em 2013. Talvez naquele momento pouco interesse houvesse para uma geração que havia vencido a aids e atribuía o sentido de epidemia a males e doenças não contagiosos, como o câncer ou a desnutrição.

Na atual conjuntura, insisto, no entanto, em Boccaccio. Encontro uma edição de bolso online. As narrativas parecem tornar, fazendo dobrar-se a realidade e colar 1348 a 2020:

E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse. É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse.

Das recomendações que chegam pela imprensa e dos diagramas das redes sociais: a evitação, o medo das coisas que vêm das ruas, a assepsia e a desinfecção. Novas rotinas diárias. Nas narrativas que vêm da Itália, os cadáveres que se deixam ficar mais de dia aguardando a remoção, os caminhões abarrotados de caixões, os enterros e as cremações sem velório. A concretude da morte à espreita. A literatura pregressa antecipa o futuro, trazendo à memória a certeza de que a sobrecarga do sistema de saúde pode fazer a morte chegar aos borbotões. Retorno à barbárie. Ruína das previsões, que, à la Malthus, projetavam o futuro a partir do presente e faziam acreditar numa expectativa de vida num crescendo ad infinitum. Literatura e história informam o devir, e, mesmo quando ouço que devemos nos resguardar no conforto estatístico dos grupos de risco, ressoa a primeira morte de peste na Oran de Camus, atribuída a quem, de “peito fraco”, tinha o agravante de tocar o pistão. Hoje também reservamos a morte aos idosos, aos hipertensos, aos tabagistas, aos fracos. Primeiro, o conforto das mortes justificadas; em seguida, a carnificina generalizada, aqui especialmente reforçada pela desigualdade no acesso à saúde.

A literatura informa a experiência, garante sentido ao presente, cria expectativas para o porvir. Os quadros da memória voltam a Bocaccio e apresentam-se, portanto, na advertência da ONU ao G20, que trata de uma epidemia de “proporções apocalípticas”, e também nas manchetes da CNN sobre Nova York: “when all hell broke loose”.1 1 Cf: https://edition.cnn.com/2020/03/25/health/coronavirus-covid-hospitals/index.html. Acesso em 30 mar. 2020. As metáforas nos jornais retomam imagens que habitam o ima- ginário do Ocidente sobre mazelas sociais, genocídios, fome, epidemias.

Do ponto de vista imagético, no entanto, um silêncio grita. Duas imagens me vêm à mente ao lado de Bocaccio. Na primeira, dentro da tradição flamenca, muito mais tocado pela iconografia do medievo que pelas técnicas do Renascimento, Pieter Bruegel remonta à narrativa do Juízo Final para apresentar o Triunfo da morte, em c.1562. No quadro, pintado sobre madeira, a metáfora de um fim que atinge e irmana a todos num sofrimento compartilhado. Sobre a terra devastada, exércitos de esqueletos ceifam os últimos viventes. Chegam em carruagens e tocam trombetas anunciando o fim que não vê distinções. Os corpos se amontoam ao centro do quadro. A imagem remete às epidemias e aos genocídios. Imagem que se torna clássica, retomada séculos depois no quadro homônimo de Felix Nussbaum, em 1944, tematizando o holocausto.

A segunda imagem que retorna é o Hospital de apestados, de Francisco Goya, de c. 1808-1810. Pintado em momento completamente distinto, o quadro de Goya, ao contrário de sua série de gravuras Caprichos, que retoma de algum modo uma iconografia compartilhada com Bruegel, apresenta a imagem laicizada da epidemia. Após a internação que o deixa entre a vida e a morte e, sabidamente marca a experiência do artista, o quadro apresenta moribundos encarcerados à espera do fim. Não por acaso, o quadro ecoa na luz sombria de outra famosa tela de Goya, Uma cena da prisão, de 1814. Os enfermos trancados ao abrigo da luz e de toda convivência, aparecem caídos uns sobre os outros. No canto direito, um corpo jaz sobre o que parece ser um bebê. No canto esquerdo, uma figura com o rosto tapado se ergue com dificuldade para dar de beber ao que parece um quase cadáver. A imagem do isolamento no fim.

As telas, mais do que conhecidas, habitam o imaginário do Ocidente. O que chama a atenção, no entanto, é que, embora as narrativas da atual pandemia se colem a Bocaccio e Camus, o mesmo não se pode dizer das imagens que habitam o fotojornalismo hodierno. Raras são as filmagens borradas dos doentes hospitalizados e fotografias de caixões cerrados ou dos caminhões que os transportam.

Como já chamou a atenção David Le Breton (2003)Le Breton, David. (2003). Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus., a imagem da morte é marcada por tabu e, não à toa, vem substituída na imprensa pela imagem heroica de médicos e enfermeiros paramentados. Da China, diante da ausência de casos de contaminação local, chega a imagem das equipes de Wuhan fazendo o gesto de vitória. Máscaras, ambulâncias e equipamentos protagonizam a iconografia. O triunfo da técnica sobre a morte. Gráficos apresentam, ainda assim, índices assustadores − 10.000 mortos na Itália, de 29 de fevereiro a 28 de março.2 2 Cf: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em 31 mar. 2020. Números significativos, mas que despersonificam os dados e garantem que o risco possa ser posto entre parênteses para seguir em frente. Segurança ontológica, diria Giddens (2002)Giddens, Anthony. (2002). O eu: segurança ontológica e ansiedade existencial. In: Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar..

As imagens da agonia, tão presentes quando referidas ao outro, e restritas às advertências dos maços de cigarro ou às imagens da desnutrição na África, estão ausentes agora. Substituídas por imagens marcadas pela distância da técnica, abrem caminho para as carreatas daqueles que dizem duvidar da ciência. Milano non si ferma; O Brasil não pode parar. A saturação de imagens heroicas da medicina se expõe a uma crítica cujo cerne parece se prestar, não ao contrapoder, mas a um capitalismo sem peias e a um totalitarismo genocida.

Não por acaso, as primeiras imagens de choque nos vêm do Equador, onde, em Guayaquil, o colapso funerário deixa os corpos estendidos nas calçadas. Ali, as imagens da pandemia servem de advertência ao Estado liberal. Sem manifestações nas ruas, fazem sacudir o acordo com o Fundo Monetário Internacional e, como em outros países, trazem esperança de que o coronavírus possa fazer ressurgir das cinzas um novo Estado de bem-estar social.

NOVEMBRO DE 2020

Passados mais de sete meses dos primeiros casos de contaminação comunitária pela covid-19 no Brasil, o mundo parece ainda se deparar com interrogações persistentes sobre as dramáticas consequências do período pandêmico. Se, no momento de minhas primeiras reflexões sobre o tema, o país começava a apresentar incipientes sinais de disseminação da doença, contabilizando, em 31 de março de 2020, apenas 38 mortes, hoje, em 02 de novembro do mesmo ano, no simbólico dia de finados, o país ultrapassa a marca de 160.000 mortes, ostentando o título de segundo país mais atingido pela letalidade da doença. Em termos absolutos, o Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos, cuja desigualdade no acesso à saúde vem também refletida no número de óbitos. Em termos relativos, são 75,1 brasileiros mortos a cada 100.000 habitantes. Nesse quesito, o país ocupa a sexta posição.

A tranquilizadora curva de mortalidade em descenso, que começou a se desenhar a partir de setembro,3 3 Depois de alcançar o pico em julho de 2020, a curva de mortalidade volta a apresentar, em novembro, os mesmo índices de abril. Cf: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em 02 nov. 2020. poderia apaziguar os ânimos, apontando a esperança de retomada da vida cotidiana e da atividade econômica. De fato, a crise sem precedentes provocada pela paralisação generalizada de setores inteiros da economia é fator de inquietação que se reflete em números de desempregados e desalentados e tem colocado em primeiro plano os indicadores econômicos, em detrimento de outras reflexões sobre o tema. A inflação da cesta básica, a insegurança alimentar grave, o crescimento da desigualdade à espreita do fim do auxílio emergencial assomam no horizonte de expectativas como perspectivas de futuro distópico (Altmann, Sant’Anna & Scovino, 2020Altmann, Eliska, Scovino, Felipe & Sant’Anna, Sabrina Parracho. (2020). Arte e distopia: memórias futuras, entranhas e fissuras. Arte & Ensaios, 26/40, p. 311-317.), tirando o foco de efeitos sobre a saúde pública e deslocando-o para o debate sobre impactos sociais. No entanto, o atual cenário ganha contornos ainda mais sombrios quando as notícias que chegam da Europa, após o verão de celebrações da reabertura, anunciam o crescimento de uma segunda onda de contaminações. À espera da vacina, as notícias sobre o tema fazem ecoar na memória coletiva o segundo inverno de gripe espanhola, ainda mais letal que o primeiro (Goulart, 2005Goulart, Adriana da Costa. (2005). Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 12/1, p. 101-142.) e fazem duvidar de uma recuperação econômica mais vigorosa.

Desde outubro, seguidos lockdowns foram anunciados pela imprensa: Espanha (09/10/2020), França (20/10/2020), Itália (04/11/2020), Reino Unido (05/11/2020). Se nos Estados Unidos, às vésperas das eleições, as pesquisas de opinião apontam que a pandemia pode colocar a pá de cal sobre o projeto de direita de Donald Trump, do outro lado do Atlântico, a Europa assiste à eclosão de protestos que começam a tensionar países que aderiram ao isolamento social. Tanto as novas barricadas de Barcelona (Sant’Anna, 2019Sant’Anna, Sabrina Parracho. (2019). Museus, cidades e crítica institucional: o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e o Museu de Arte do Rio em análise comparativa. Todas as artes: revista luso-brasileira de arte e cultura, 2.) como a ameaça de questionamento às eleições americanas (Huyssen, 2020Huyssen, Andreas. (2020). Behemoth levanta-se novamente: reflexões sobre o fascismo no século XXI. Arte & Ensaios, 26/40.) colocam o mundo pós-covid em futuro incerto. Nas grandes cidades brasileiras, se os panelaços acompanharam as sucessivas demissões de ministros da Saúde que tentavam impor restrições à circulação de pessoas ou garantir a difusão de informações amparadas no esteio das pesquisas científicas, nos últimos meses as janelas parecem se haver calado embotadas pela normalização da necropolítica (Mbembe, 2018Mbembe, Achille. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018)

A parábola de Kafka recuperada por Hannah Arendt (2016)Arendt, Hannah. (2016). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva. em Entre o passado e o futuro parece se adequar novamente aos tempos que vivemos. Premidos por um futuro incerto que nos empurra para trás, voltamo-nos para o passado. Em vez, porém, de nos deparar com sua serenidade, “a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza” (Arendt, 2016Arendt, Hannah. (2016). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva., p.154-155), ele nos assombra agora com o ressurgimento do fascismo (Huyssen, 2020Huyssen, Andreas. (2020). Behemoth levanta-se novamente: reflexões sobre o fascismo no século XXI. Arte & Ensaios, 26/40.). A sociedade de risco concretizado parece estar paralisada, buscando também na difusão de imagens apaziguadoras certezas capazes de eliminar a insegurança ontológica para seguir em frente.

No fotojornalismo, se, conforme havia argumentado, as primeiras imagens da morte foram apagadas em detrimento dos retratos médicos da ciência, elas começaram timidamente a aparecer ao final de abril e se consolidaram no símbolo recorrentemente acionado das fotografias de um sem-número de covas abertas em Manaus. No levantamento realizado na imprensa, é especialmente digno de nota um conjunto muito similar de fotografias aéreas, aparentemente extraídas como diferentes frames de um mesmo vídeo, apresentando as sepulturas cavadas no cemitério de Manaus. As imagens foram recursivamente acionadas para ilustrar matérias sobre a letalidade da covid-19 no Brasil. Nos dados coletados no período, há pelo menos 1.070 capturas de imagens similares veiculadas nos mais diferentes veículos da imprensa brasileira: O Globo, Época, Isto É, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense, Estado de Minas, entre outros. Na imprensa estrangeira, a imagem também se tornou símbolo internacional da covid-19 no Brasil e foi veiculada pelo The Mirror, DW, Daily Mail, Reuters, Washington Post. Inicialmente vinculadas ao colapso do sistema de saúde no Amazonas, as fotos passaram a ser acionadas quase diariamente para ilustrar recordes nos números de morte no Brasil, ou apenas divulgar as médias móveis semanais.

Da ausência à saturação, e novamente à ausência, deparamo-nos mais uma vez com a supressão das imagens da morte. Nos últimos meses, diante da curva em descenso e da defesa de retomada da economia pelos periódicos, o sofrimento é paulatinamente substituído pelas imagens de ruas apinhadas de gente usando máscaras faciais. Imagens externas começam a se sobrepor às tomadas internas de médicos paramentados em hospitais. Tudo aponta para esforços de fazer pôr novamente o risco entre parênteses e nos fazer seguir em frente, como tão bem nos apontou Anthony Giddens.

Não apenas o fotojornalismo, mas também a arte de rua mundo afora, selecionada nas imagens veiculadas pela imprensa, parece sublimar a narrativa da morte no heroísmo das imagens médicas. Em maio, foi largamente noticiada a imagem do desenho de Bansky, deixado no hospital da Universidade de Southampton. Ali, uma criança brincava com uma boneca enfermeira fazendo as vezes de super-heroína. Na obra, Batman e Homem Aranha aparecem relegados à cesta de lixo.

Nos museus, o prejuízo da queda de arrecadação das bilheterias (Villas Bôas, 2021Villas Bôas, Glaucia. (2021). O saldo da pandemia: perspectivas de mudança para os museus de arte. O público e o privado, 38.) mantém em cartaz exposições virtuais previstas para o quadro de normalidade. Na ArtRio, o mercado dita os padrões e a arte contemporânea demora a repercutir as imagens da pandemia. Foi, portanto, nas ruas que duas obras saltaram das redes sociais, ganharam projeção no discurso especializado nos últimos meses4 4 Cf: https://wsimag.com/art/63727-tupinamba-lambido. Acesso em 28 out. 2020. e parecem repercutir tendências já apontadas, consolidando o papel da arte na esfera pública e difundindo narrativas no debate político (Sant’Anna, Marcondes & Miranda, 2017Sant’Anna, Sabrina Parracho; Marcondes, Guilherme & Miranda, Ana Carolina F.A. (2017). Arte e política: a consolidação da arte como agente na esfera pública. Sociologia & Antropologia, 7/3, p. 825-849.).

Em agosto de 2020, circulou nas redes sociais uma série de vídeos mostrando uma carreata percorrendo a avenida Paulista em marcha à ré. O cortejo era organizado por pessoas que, com gestos de manobristas, trajavam macacões brancos e máscaras de paramentação médica. Ao fundo, ouvia-se um permanente ruído perturbador: o som dos respiradores utilizados nas unidades de tratamento da covid-19. Situado no palco das manifestações políticas de 2013 e 2016, o trajeto fazia também referência às carreatas de protesto contra o isolamento social que ocuparam a mesma via em abril de 2020. Num primeiro momento, as reações faziam crer se tratar de um novo protesto. O ato, no entanto, ganhou a imprensa e a crítica especializada e logo se pôde saber tratar-se de performance fílmica realizada pelo Teatro da Vertigem, idealizada em parceria com Nuno Ramos. Filmado por Eryk Rocha, o trabalho foi comissionado pela Bienal de Berlim e originalmente previa “uma procissão antifascista, pela liberdade de expressão e o livre pensamento, que percorreria uma avenida da cidade e terminaria em uma praça”, conforme depoimento de Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, publicado no site da Escola de Comunicação e Arte da USP.5 5 Cf: http://www3.eca.usp.br/noticias/professor-de-artes-c-nicas-realiza-performance-contra-negacionismo-do- governo-diante-da. Acesso em 31 out. 2020. Impedido o deslocamento pelo fechamento das fronteiras, a procissão antifascista se transformou, no Brasil, na anticarreata que rumava pela avenida Paulista em direção a seu clímax. Depois de passar pela frente de símbolos políticos da cidade, como o vão livre do Masp e o prédio da Fiesp, a carreata terminaria diante do cemitério da Consolação. Ali, emoldurada pelas colunas do pórtico de entrada, uma reprodução monumental de um dos desenhos da Série Trágica, de Flavio de Carvalho. A retomada da imagem de 1947, sob luz dramática e ao som do hino nacional tocado ao inverso, colocava ali, na entrada do cemitério da Consolação, a morte da mãe agonizante, clara referência ao grupo etário mais atingido pela covid-9, mas também referência à dor de vínculos familiares perdidos.

No Rio de Janeiro, chama a atenção a ação do coletivo Tupinambá Lambido de outubro do mesmo ano. Criado na esteira do OcupaMinc, como gesto de resistência ao fechamento do Ministério da Cultura pelo governo Temer e centrado no discurso de oposição a um estado de exceção, o coletivo ganhou as ruas do Rio de Janeiro a partir da confecção de lambe-lambes e a divulgação de imagens vocacionadamente políticas (Burocco, 2019Burocco, Laura. (2019). Atrocidades Maravilhosas e Tupinambá Lambido: ocupações imagéticas na cidade do Rio de Janeiro entre afeto, política e arte. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, 9/18, p. 172-198.). Formado por integrantes do Atrocidades Maravilhosas – um dos principais coletivos do Rio de Janeiro, na primeira década do século – e artistas que se mantêm no anonimato, o Tupinambá Lambido povoou as ruas da cidade com imagens críticas que se referiam claramente à relação entre pandemia e tomadas de posição governamentais. Das imagens coladas nos muros da cidade, algumas chamam especial atenção. Em um dos cartazes, a silhueta de um homem nu, cortada pela faixa presidencial. No canto à esquerda, uma laranja amassada e uma caixa de hidroxicloroquina. Em outro cartaz, as palavras “sem sonho” e “sem saber” são envolvidas por onze figuras de coronavírus representados como personagens de cartoons, muito semelhantes às imagens veiculadas para explicar às crianças regras de higiene em tempos de pandemia. Fechava a série a imagem de uma criança negra, sentada à mesa. A testa encostada sobre a mão que sustenta a cabeça prostrada e segura uma colher diante do prato vazio. Palavras de ordem também estão incluídas no lambe-lambe: “Fora Bozo”; “Ouçam as mulheres”.

O que chama a atenção nas duas obras – construídas coletivamente, como tem chamado a atenção Ana Miranda (2020)Miranda, Ana Carolina F.A. (2020). Cotidiano como utopia: memória, política e autoria na arte colaborativa contemporânea. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro. – é o caráter político das duas intervenções sobre as cidades. De um lado, a anticarreata se coloca em clara inversão das manifestações de direita que ocuparam o país nos últimos meses. De outro, os lambe-lambes retomam deliberadamente discursos de movimentos artivistas que têm se alastrado pelo país desde 2013.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos anos 1970, Peter Burger construiu seu argumento sobre a autonomia da arte, discutindo o papel das vanguardas históricas na autocrítica do sistema de arte e sua aproximação da práxis vital pelo discurso contra a sociedade burguesa. Naquele período, o autor teve, ainda, relevância fundamental ao atribuir aos museus e às neovanguardas o papel de institucionalização e esvaziamento da eficácia crítica do discurso da arte contemporânea. Nos últimos anos, no entanto, o ressurgimento da crítica institucional no Brasil – ou, como prefere Izabela Pucu (2017)Pucu, Izabela. (2017). Arte como trabalho (e vice-versa). Tese de Doutorado/PPGAV/Universidade Federal do Rio de Janeiro., a constituição da instituição como crítica – parece fazer emergir novamente a função social da contestação nos discursos artísticos. Não por acaso, as imagens da pandemia que saltaram das ruas para os fóruns especializados de arte são os dois trabalhos aqui mencionados.

É certo que o debate é prematuro, que outras imagens da pandemia virão, que os museus as acolherão e que serão comercializadas no mercado de arte. É, no entanto, digno de nota, que no calor dos acontecimentos, as representações da covid-19 venham acionadas para marcar posições políticas. Ao que tudo indica, as duas obras são capazes de transformar em discursos imagéticos uma certa estrutura de sentimento, para usar expressão de Raymond Williams (2011)Williams, Raymond. (2011). Cultura e materialismo. São Paulo: Unesp., que vem se tornando hegemônica na arte contemporânea, mas que também é capaz de captar, da práxis vital, posições políticas que se somam às manifestações antifascistas mundo afora.

NOTAS

REFERÊNCIAS

  • Altmann, Eliska, Scovino, Felipe & Sant’Anna, Sabrina Parracho. (2020). Arte e distopia: memórias futuras, entranhas e fissuras. Arte & Ensaios, 26/40, p. 311-317.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2020
  • Aceito
    06 Maio 2021
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