ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Crianças e COVID-19, devemos nos preocupar?

Children and COVID-19, should we be concerned?

RESUMO

Crianças com doenças virais são, em geral, consideradas disseminadores destas infecções. Com o surgimento da COVID-19 pensou-se nas crianças como um dos principais agentes de disseminação da doença. Além disso, considerou-se inicialmente que a faixa etária pediátrica seria uma população de alto risco de complicações e mesmo mortalidade, quando o vírus infectasse um maior número de pessoas pelo mundo. Porém, a disseminação do vírus pelo mundo demonstrou que as crianças são um grupo privilegiado, com menor número de infecções graves e, além disso, uma menor taxa de internações e, principalmente, de mortalidade. Ao mesmo tempo, trabalhos epidemiológicos observaram que a soroprevalência em crianças é mais baixa do que na população adulta e que a transmissão de crianças para outras pessoas na COVID-19 parece apresentar uma taxa muito baixa. Considerando esses dados, a volta às aulas seria importante para a população infantil, que muitas vezes precisa da escola não só para o ensino, como também para alimentação pela merenda escolar.

Palavras-chave: Criança Infecções por Coronavírus Transmissão de Doença Infecciosa Síndrome Respiratória Aguda Grave Educação Infantil.

ABSTRACT

Children with viral diseases are generally considered to be spreaders of this infection. With the appearance of COVID-19, children were thought to be one of the main agents in the spread of this disease. In addition, it was initially considered that the pediatric age group would be a population at high risk of complications and even mortality when the virus infected a greater number of people around the world. However, the spread of the virus around the world has shown that children are a privileged group, with a lower number of serious infections and, in addition, a lower rate of hospitalizations and especially mortality. At the same time, epidemiological studies have observed that seroprevalence in children is lower than the adult population and that the transmission of children to others in COVID-19 appears to have a very low rate. Considering this data, going back to school would be important for the child population, who often need school not only for teaching but also for food, through school lunch.

Keywords: Child Coronavirus Infections Disease Transmission Infectious Severe Acute Respiratory Syndrome Child Rearing.


Conhecidamente a faixa etária pediátrica é a mais atingida por quadros virais, sendo comum crianças apresentarem oito ou mais infecções de vias aéreas superiores por ano e isto ser considerado normal1. Neste contexto, no surgimento da doença na China, logo se contextualizou que as crianças seriam uma das principais agentes na transmissão do vírus e uma população de risco para desenvolver quadros mais graves em decorrência desse histórico. Os primeiros artigos sobre a casuística da China, mostraram algo bem diferente, onde a população pediátrica praticamente não apresentou casos2,3. Acreditou-se, naquele momento, que a faixa etária daquela casuística era em decorrência da fonte do vírus ser provavelmente em um local onde crianças não tinham tanto acesso.

Com a disseminação do vírus pelo restante do mundo conseguiu-se perceber que a faixa etária pediátrica realmente não apresentava letalidade para a doença como em outras faixas etárias e começou-se a questionar o que estava ocorrendo e como deveríamos lidar com isso4-7. Várias hipóteses foram levantadas para essa provável proteção relacionada à pediatria, desde o menor número de receptores ECA2 e até mesmo uma reação cruzada de anticorpos de outros coronavírus, que comumente fazem quadros de resfriados em crianças8. Em determinado momento, questionou-se se a doença estava ocorrendo em crianças, pois até o mês de abril praticamente não havia óbitos nessa faixa etária. Com estudos epidemiológicos realizados com o intuito de avaliar a circulação do vírus demonstrou-se que sim, as crianças estavam adquirindo o vírus; porém, em menor escala quando comparadas aos adultos.

Dados da cidade de Vo, na Itália, onde a maioria da população foi testada para a doença, não encontraram crianças menores de 10 anos com sorologia positiva9. O mesmo foi observado na Islândia, estudo de prevalência por amostragem da população daquele país, observou a presença de anticorpos na metade das crianças em comparação aos adultos e não houve positividade em menores de 10 anos também10. Desta maneira, hoje conseguimos concluir que a faixa etária de até 18 anos é de certo modo privilegiada, porém não imune ao vírus. Outro dado que corrobora com a ocorrência da doença nas crianças são as internações, embora a maioria dos casos seja de formas leves e com taxa de letalidade bem inferior à observada nos adultos; dados do CDC, até o dia 2 de abril, mostraram que a faixa etária até 18 anos representava 1,7% do total de casos confirmados, com uma taxa de internação em enfermaria de 5,7% e de UTI de 0,58% desses casos, considerando o total de casos notificados11.

Na China observou-se que os lactentes apresentavam doenças mais graves, porém um único óbito foi relatado em uma criança de 14 anos na casuística inicial de 2.143 crianças5. Estudo estatístico de projeção de casos em crianças da população americana, considerou que este mesmo trabalho da China ainda superestimava a situação das crianças, pois considerava apenas os casos detectados, deste modo seriam ainda menos frequentes as internações e mesmo ainda a necessidade de UTI12. Dados atuais do CDC, até 30 de maio de 2020, mostram uma taxa acumulada de internações para COVID-19 de 4,9 e de 2,4 para 100.000 habitantes, nas faixas etárias de 0 a 4 anos e de 5 a 17 anos, respectivamente. Ao mesmo tempo essa taxa atinge 254 para 100.000 habitantes acima de 65 anos13. Comparando-se aos dados da Influenza, também obtidos pelo CDC, até 25 de abril de 2020, as taxas de internação foram 95,3 e 24,8, nas faixas etárias de 0 a 4 anos e de 5 a 17 anos, respectivamente; o que é muitas vezes superior à COVID-19 até o momento14.

A partir desses dados, questiona-se o papel da criança nesse contexto, se não poderia ser importante de forma positiva. Se as crianças adquirem o vírus com maior dificuldade que os adultos em formas mais graves e mesmo internações têm frequência muitas vezes inferior, poderia ser uma maneira de adquirir proteção de rebanho para a população? Desse modo, teríamos um faixa da população imune e com redução da circulação do vírus, protegendo as faixas etárias que são mais susceptíveis à infecção. Ainda devemos questionar outro fato importante sobre as infecções em crianças que vem sendo relatado nos últimos dias. Em geral, durante qualquer quadro viral nas crianças há maior dificuldade na eliminação do vírus, persistem com cargas virais que podem infectar outras pessoas por semanas e são verdadeiros espalhadores de vírus1. Agora quando falamos de SARS-CoV-2 temos uma situação aparentemente diferente, a taxa de ataque em crianças é baixa, ou seja, as crianças transmitem pouco este vírus. Na verdade, alguns questionam se a criança poderia transmitir o vírus, com relatos de casos de crianças infectadas que entraram em contato com várias outras pessoas e nenhum destes contatos apresentou doença15-17.

Na China, inicialmente, se acreditou na possibilidade das crianças transmitirem a doença, porém em revisões posteriores não se conseguiu observar casos em que a criança fosse o índice na família15. Em outra publicação questiona-se exatamente esse ponto de vista, se as crianças adquirem o vírus, têm quadros mais leves, têm menor letalidade e não são disseminadores, não deveríamos incentivar a volta às aulas desses grupos?18 Neste ponto, devemos lembrar que as crianças não vão apresentar uma doença importante, na maioria das vezes, mas os responsáveis que levam as crianças às escolas, podem ter doenças mais sérias. Esse é um importante item que deve ser manejado de forma racional para que não ocorra aglomeração de cuidadores na entrada e saída das aulas. Além disso, crianças muitas vezes são acompanhadas e cuidadas em casa por pessoas de grupos de risco e isso deve ter uma atenção especial nesse momento. E, cabe ainda racionalizar a situação dos professores, em especial os que pertencem aos grupos de riscos.

Outro ponto relevante e que deve ser levado em consideração, é o papel social da escola, onde temos um importante motivo para incentivar o funcionamento no que se refere às merendas escolares, onde em algumas regiões é a base da alimentação das crianças e, muitas vezes, a única refeição adequada que ela realizará no dia. Desta maneira, o retorno às aulas seria benéfico para elas, principalmente as mais carentes, que poderiam voltar a ter essa ajuda importante à sua sobrevivência.

A reabertura das atividades da sociedade é algo que deverá ser planejado e, neste momento, baseado nas evidências atuais, parece razoável se pensar nas escolas como um dos primeiros locais a se liberar o funcionamento. É crucial frisar que outras doenças não deixarão de ocorrer, logo seria de extrema prudência e racionalidade, a realização de vacina contra a influenza para todas as crianças que retornarem às aulas, pois esta sim apresenta maior risco em pediatria. Além disso, crianças que apresentarem sintomas gripais não devem frequentar a escola enquanto estiverem doentes. E, por último, não podemos esquecer dos grupos de risco na faixa pediátrica que devem manter-se em isolamento até que tenhamos uma circulação do vírus na comunidade considerada segura ou o surgimento de uma vacina eficaz e segura para a doença.


REFERÊNCIAS

1. Burns DAR, Lopez FA. Tratado de pediatria. Barueri: Editora Manole; 2017.

2. Chen N, Zhou M, Dong X, Qu JM, Gond F, Han Y, et al. Epidemiological and clinical characteristics of 99 cases of 2019 novel coronavirus pneumonia in Wuhan, China: a descriptive study. Lancet. 2020 Feb;395(10223):507-13.

3. Choi SH, Kim HW, Kang JM, Kim DH, Cho EY. Epidemiology and clinical features of coronavirus disease 2019 in children. Clin Exp Pediatr. 2020 Apr;63(4):125-32.

4. Cruz AT, Zeichner SL. COVID-19 in children: initial characterization of the pediatric disease. Pediatrics. 2020 Mar;145(6):e20200834.

5. Dong Y, Mo X, Hu Y, Qi X, Jiang F, Jiang Z, et al. Epidemiology of COVID-19 among children in China. Pediatrics. 2020 Jun;145(6):20200702.

6. Hagmann SHF. COVID-19 in children: more than meets the eye. Travel Med Infect Dis. 2020 Mar;34:101649.

7. Bi Q, Wu Y, Mei S, Ye C, Zou X, Zhang Z, et al. Epidemiology and transmission of COVID-19 in 391 cases and 1286 of their close contacts in Shenzhen, China: a retrospective cohort study. Lancet Infect Dis. 2020 Apr 27; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30287-5

8. Brodin P. Why is COVID-19 so mild in children?. Acta Paediatr. 2020 Mar;109(6):1082-3.

9. Lavezzo E, Franchin E, Ciavarella C, Cuomo-Dannenburg G, Barzon L, Del Vecchio C, et al. Suppression of COVID-19 outbreak in the municipality of Vo, Italy. MedRxiv. 2020 Apr 18; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1101/2020.04.17.20053157

10. Gudbjartsson DF, Helgason A, Jonsson H, Magnusson OT, Melsted P, Norddahl GL, et al. Spread of SARS-CoV-2 in the Icelandic Population. N Engl J Med. 2020 Jun;382:2302-15.

11. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Coronavirus Disease 2019 in Children - United States, February 12-April 2, 2020. MMWR Rep. 2020 Apr;69(14):422-6.

12. Pathak EB, Salemi JL, Sobers N, Menard J, Hambleton IR. COVID-19 in children in the United States: intensive care admissions, estimated total infected, and projected numbers of severe pediatric cases in 2020. J Public Health Manag Pract. 2020 Apr;26(4):325-33.

13. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Coronavirus Disease 2019 - Hospitalizations [Internet]. Atlanta: CDC; 2020; [access in 2020 Jun 11]. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/covid-data/covidview/index.html#hospitalizations

14. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Laboratory-confirmed influenza hospitalizations [Internet]. Atlanta: CDC; 2020; [access in 2020 Jun 11]. Disponível em: https://gis.cdc.gov/GRASP/Fluview/FluHospRates.html

15. Jing QL, Liu MJ, Yuan J, Zhang ZB, Zhang AR, Dean NE, et al. Household secondary attack rate of COVID-19 and associated determinants. MedRxiv. 2020 Apr 15; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi. org/10.1101/2020.04.11.20056010

16. Mizumoto K, Omori R, Nishiura H. Age specificity of cases and attack rate of novel coronavirus disease (COVID-19). MedRxiv. 2020 Mar 13; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1101/2020.03.09.20033142

17. Zhu Y, Bloxham CJ, Hulme KD, Sinclair JE, Tong ZWM, Steele LE, et al. Children are unlikely to have been the primary source of household SARS-CoV-2 infections. MedRxiv. 2020 Mar 30; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1101/2020.03.26.20044826

18. Munro APS, Faust SN. Children are not COVID-19 super spreaders: time to go back to school. Arch Dis Child. 2020 May 5; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1136/archdischild-2020-319474










Universidade Federal do Tocantins, Saúde da Criança e do Adolescente - Palmas - Tocantins - Brasil

Endereço para correspondência:
Jandrei Markus
Universidade Federal do Tocantins
Quadra 109 Norte, Av. NS 15, ALCNO-14, Bloco BALA II, sala 22. Plano diretor Norte
Palmas - TO - Brasil. CEP: 77001-090
E-mail: jandreimarkus@gmail.com

Data de Submissão: 11/06/2020
Data de Aprovação: 14/06/2020