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Condições socioeconômicas e impactos da pandemia da Covid-19 na região da Sub-Bacia do Canal do Cunha, Rio de Janeiro

Socioeconomic conditions and impacts of the COVID-19 pandemic in the Canal do Cunha Sub-Basin region, Rio de Janeiro municipality

RESUMO

O Município do Rio de Janeiro (MRJ) estava entre as cidades com altas taxas de mortalidade ao longo da pandemia de Covid-19. Neste estudo, analisamos as taxas de incidência, de mortalidade e letalidade por Covid-19 nas áreas com predominância de Aglomerados Subnormais (ASN). Foram considerados todos os 36 bairros da Sub-Bacia do Canal do Cunha (SBCC) associadas às características demográficas, socioeconômicas e epidemiológicas, com estatística espacial de Moran. A taxa de incidência nos bairros da SBCC foi de 621,5/10.000 habitantes. Complexo do Alemão, Mangueira, e Maré tiveram maiores proporções de casos e mortes. A menor incidência (33,6/10.000 habitantes) e mortalidade (8,3/10.000 habitantes), mas com maior taxa de letalidade (24,7%) foi registrada no Complexo do Alemão. Foi observado correlação negativa entre a taxa de mortalidade e a proporção de habitantes nos bairros com ASN (rho= -0,433; p=0,023). Na estatística espacial, houve correlação inversa para a incidência da Covid-19 (índice Moran, -0,155863; p=0,02). Conclui-se que incidência e mortalidade nas áreas de ASN estão significativamente relacionadas com as estruturas sociodemográficas, demandando o reforço dos sistemas de vigilância e de controle da Covid-19 em territórios de favelas. As recomendações não farmacológicas e a Atenção Primária à Saúde em favelas desempenham relevante papel na redução da transmissão, mortalidade e iniquidades em saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Áreas de favelas; Incidência; Mortalidade; Estatística espacial

ABSTRACT

Along COVID-19 pandemics, Rio de Janeiro (MRJ) has figured among the Brazilian cities with the highest mortality rates. In this study, we explored COVID-19 incidence and mortality in areas with a predominance of subnormal population clusters (SNC) in MRJ. We analyzed 36 neighborhoods of Canal do Cunha Sub-basin (CCSB) and the associations between demographic, socioeconomic, and epidemiological features, and the cumulative incidence, mortality, and lethality rates, and Moran’s spatial statistics were performed. The incidence rate in CCSB neighborhoods was 621.5/10,000 inhabitants. Complexo do Alemão, Mangueira, and Maré had the highest proportions of cases and deaths. And the lowest incidence (33.6/10,000 inhabitants), mortality (8.3/10,000 inhabitants), but with the highest lethality rate (24.7%) was recorded in Complexo do Alemão. There was a negative correlation between mortality and the proportion of inhabitants in neighborhoods with ASN (rho= -0.433; p=0.023). In spatial statistics, there was an inverse correlation for the incidence (Moran index, -0.155863; p=0.02). It is concluded that incidence and mortality in SNC areas are significantly related to their sociodemographic structures, highlighting the need to strengthen the surveillance and control systems of COVID-19 in slums territories. Non-pharmacological recommendations and suitable Primary Health Care in slums areas play a relevant role in reducing viral transmission, mortality, and health inequities.

KEYWORDS
COVID-19; Population subnormal clusters; Incidence; Mortality; Spatial statistics

Introdução

Em dezembro de 2019, foram relatados em Wuhan, China, os primeiros casos de pneumonia atípica de origem desconhecida, os quais foram posteriormente associados à infecção por um novo coronavírus11. Zhou P, Yang XL, Wang X-G, et al. A pneumonia outbreak associated with a new coronavirus of probable bat origin. Nature. 2020. [acesso em 2020 abr 1]; 579 (7798):270-273. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2012-7.
https://www.nature.com/articles/s41586-0...
,22. Wu F, Zhao S, Yu B, et al. A new coronavirus associated with human respiratory disease in China. Nature. 2020. [acesso em 2020 abr 1]; 579(7798):265-269. Disponível em: http://www.nature.com/articles/s41586-020-2008-3.
http://www.nature.com/articles/s41586-02...
, o Sars-CoV-233. Grupo de Estudo Coronaviridae do Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus. The species severe acute respiratory syndrome-related coronavirus: classifying 2019-nCoV and naming it SARS-CoV-2. Nat Microbiol. 2020. [acesso em 2020 abr 1]; 5(4):536- 544. Disponível em: http://www.nature.com/articles/s41564-020-0695-z.
http://www.nature.com/articles/s41564-02...
. No ser humano, o Sars-CoV-2 pode causar desde infecção assintomática até doença multissistêmica, com envolvimento respiratório, gastrointestinal, hepático e neurológico44. Di Gennaro F, Pizzol D, Marotta C, et al. Coronavirus Diseases (COVID-19) Current Status and Future Perspectives: A Narrative Review. Int J Environ Res Public Health. 2020. [acesso em 2020 abr 14]; 17(8):2690. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32295188/.
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,55. Ge H, Wang X, Yuan X, et al. The epidemiology and clinical information about COVID-19. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2020. [acesso em 2020 abr 14]; (39):1-9. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7154215/.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
. O vírus é transmitido principalmente por gotículas infectadas pelo Sars-CoV-2 libertadas por indivíduos infectados66. World Health Organization. Modes of transmission of virus causing COVID-19: implications for IPC precaution recommendations. 2020. [acesso em 2020 abr 1]. Disponível em: https://www.who.int/publications--detail/modes-of-transmission-of-virus-causing-covid-19-implications-for-ipc-precaution-recommendations.
https://www.who.int/publications--detail...
; evidências crescentes sugerem um papel da transmissão viral pelo ar, via aerossóis, particularmente em ambientes fechados e em aglomerações77. Liu Y, Ning Z, Chen Y, et al. Aerodynamic analysis of SARS-CoV-2 in two Wuhan hospitals. Nature. 2020 [acesso em 2020 abr 27]; (582):557-560. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2271-3.
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,88. National Academies of Sciences, Engineering and Medicine. Rapid Expert Consultation on the Possibility of Bioaerosol Spread of SARS-CoV-2 for the COVID- 19 Pandemic. Washington, D.C.: National Academies Press; 2020. [acesso em 2020 dez 13]. Disponível em: https://www.nap.edu/catalog/25769.
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,99. Santarpia JL, Rivera DN, Herrera VL, et al. Aerosol and surface contamination of SARS-CoV-2 observed in quarantine and isolation care. Sci Rep. 2020 [acesso em 2020 dez 13]; 10(1):12732. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41598-020-69286-3.
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,1010. Morawska L, Milton DK. It Is Time to Address Airborne Transmission of Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). Clin. Infect. Diseases. 2020 [acesso em 2020 jul 6]; 71(9): 2311-2313. Disponível em: https://academic.oup.com/cid/advance-article/doi/10.1093/cid/ciaa939/5867798.
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,1111. Rangel EF, Afonso MMS, Sotero-Martins A, et al. Can Climate and Environmental Factors Putatively Increase SARS-Cov2 Transmission Risks? AJBSR. 2021 [acesso em 2021 mar 28]; 11(4):294–199. Disponível em: https://biomedgrid.com/fulltext/volume11/can-climate-and-environmental-factors-putatively--increase-Sars-cov2-transmission-risks.001647.php.
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. A exposição viral pode ocorrer através do contato com superfícies contaminadas1212. Van Doremalen N, Bushmaker T, Morris DH, et al. Aerosol and Surface Stability of SARS-CoV-2 as Compared with SARS-CoV-1. N Engl J Med. 2020 [acesso em 2020 mar 17]; (382):1564-1567. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmc2004973.
https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/ne...
, embora não seja uma via importante de propagação viral. Como o Sars-CoV-2-RNA tem sido sistematicamente detectado em águas residuais e superficiais1313. Aguiar-Oliveira ML, Campos A, R. Matos A, et al. Wastewater-Based Epidemiology (WBE) and Viral Detection in Polluted Surface Water: A Valuable Tool for COVID-19 Surveillance—A Brief Review. Inter. J. Env. Res. Public Health. 2020 [acesso em 2020 dez 14]; 17(24):9251. Disponível em: https://www.mdpi.com/1660-4601/17/24/9251.
https://www.mdpi.com/1660-4601/17/24/925...
, o potencial de transmissão fecal-oral tem sido debatido1414. Heller L, Mota CR, Greco DB. COVID-19 faecal-oral transmission: Are we asking the right questions? Sci Total Environ. 2020 [acesso em 2020 abr 25]; (729):138919. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32353720/.
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, apesar de não haver relatos de contaminação por água ou alimentos1515. World Health Organization. Water, sanitation, hygiene, and waste management for SARS-CoV-2, the virus that causes COVID-19. 2020. [acesso em 2020 ago 19]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/WHO-2019-nCoV-IPC-WASH-2020.4.
https://www.who.int/publications-detail-...
.

Após os casos na China, o Sars-CoV-2 rapidamente se disseminou pela Ásia e Europa, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar a pandemia de Covid-19 em março de 20201616. World Health Organization. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19. [acesso em 2020 jul 3]. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general--s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020.
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. O cenário epidemiológico variou em diferentes países, de acordo com a sua fase epidêmica e as intervenções adotadas, incluindo a vacinação1717. World Health Organization. Coronavirus disease 2019 (COVID-19) - Situation Report 190. [acesso em 2020 jul 29]. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200728-covid-19-sitrep-190.pdf?sfvrsn=fec17314_2.
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,1818. Johns Hopkins University. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE). [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html.
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,1919. World Health Organization. WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. [acesso em 2020 dez 13]. Disponível em: https://covid19.who.int/?gclid=CjwKCAiAlNf-BRB_EiwA2osbxf2YVBBShJRY610JmZv8P6toMq8RwfOzrhgn5P2fxhzBS4x2mDGWrxoCYt8QAvD_BwE.
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.

No início de fevereiro de 2020, o Brasil declarou a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). Em 26 de fevereiro, foi registrado o primeiro caso importado de Covid-19 em São Paulo e, desde então, o cenário epidemiológico evoluiu segundo as especificidades regionais2020. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico N 32 - Doença pelo coronavirus COVID-19. [acesso em 2020 out 8]. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/September/23/Boletim-epidemiologico-COVID-32-final-23.09_18h30.pdf.
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,2121. Oliveira Andrade R. Covid-19: Brazil now has third highest number of cases behind US and Russia. BMJ. 2020 [acesso em 2020 maio 21]; (369):m2059. Disponível em: https://www.bmj.com/content/369/bmj.m2059.
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,2222. Oliveira WK, Duarte E, França GVA, et al. Como o Brasil pode deter a COVID-19. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020 [acesso em 2020 out 8]; 29(2). Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_rttext&pid=S2237-96222020000200200&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.
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,2323. Oliveira MLA, Abreu AL, Siqueira MM. A organização da vigilância laboratorial e a rede de laboratórios de Saúde Pública no contexto da pandemia de COVID-19. In: Profissionais de Saúde e Cuidados Primários. Brasília, DF: Coleção COVID-19; 2021. v. 4. [acesso em 2021 mar 12]. Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/volume-4-profissionais-de-saude-e-cuidados-primarios/
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. No início de 2021, ocorreu um recrudescimento da pandemia em todo território nacional, alcançando 12.534.688 de casos confirmados e 312.206 óbitos em março2424. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Painel CONASS - COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.
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. As taxas nacionais de incidência e mortalidade eram da ordem de 5.964/100.000 habitantes e 148,6/100.000 habitantes, respectivamente, e estão ainda em ascensão em março de 2021, em todas as regiões do País. A taxa de letalidade foi estimada em 2,5%2424. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Painel CONASS - COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.
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. Em nível nacional, o aumento significativo do número de casos graves e mortes exerceu grande impacto no Sistema Único de Saúde, que se encontra no limite da sua capacidade de atendimento.

No estado do Rio de Janeiro, o primeiro pico epidêmico ocorreu em maio de 2020. Contudo, desde janeiro de 2021, observou-se um novo aumento das taxas de incidência e mortalidade, atingindo 3698,1 casos/100.000 habitantes e 208,7 mortes/100.000 habitantes em março de 20212424. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Painel CONASS - COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.
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. Em abril, a cidade do Rio de Janeiro contabilizou um total de 245.106 casos confirmados e 22.477 mortes, com taxas de incidência, mortalidade e letalidade de 3679,5/100.000 habitantes, 337,4/100.000 habitantes, e 9,2%, respectivamente, exibindo a 5ª maior taxa de mortalidade no Brasil2525. Rio de Janeiro. Prefeitura do Município. Painel Rio COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/38efc69787a346959c931568bd9e2cc4.
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Na cidade do Rio de Janeiro, 22% da população vive em áreas de favelas2626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. [acesso em 2022 maio 3]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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. A região da Sub-Bacia do Canal do Cunha (SBCC) possui o maior contingente de pessoas morando em favelas no município. A SBCC ocupa um território de 7.015,99 hectares, compreendendo 36 bairros que abrigam 133 comunidades e 24 loteamentos irregulares2626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. [acesso em 2022 maio 3]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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. Esses territórios cresceram desordenadamente ao longo do tempo. Assim, as infraestruturas urbanas são precárias, possuem condições de moradia e de saneamento básico – abastecimento de água, tratamento de esgotos, coleta de resíduos e drenagem – inadequadas e sofrem frequente desabastecimento de água2727. Handam NB, Santos JAA, Moraes Neto AHA, et al. Sanitary quality (bacteriological and physical-chemical) of drinking water in urban slums in Rio de Janeiro, RJ, Brazil. J. Wat. Sanit. Hyg. Develop. 2021 [acesso em 2021 abr 17]; 10(3):413-24. Disponível em: https://iwaponline.com/washdev/article/10/3/413/74896/Sanitary-quality-bacteriological-and-physical.
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. Além disso, a alta densidade populacional, número de agregados familiares e baixa renda per capita são características comuns das comunidades2828. Prieto GFT. A sede do capital: o abastecimento de água em favelas da periferia da cidade do Rio de Janeiro. [dissertação]. [São Paulo]: Universidade de São Paulo; 2011. [acesso em 2020 abr 17]. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-28022013-104911/.
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, favorecendo a incidência de doenças, especialmente as associadas à vulnerabilidade social2929. Ferreira A. Favelas no Rio de Janeiro: nascimento, expansão, remoção e, agora, exclusão através de muros. Biblio3W Ver. Biblio. Geog. Cienc. Soc. 2009 [acesso em 2021 abr 17]; (14). Disponível em: https://revistes.ub.edu/index.php/b3w/article/view/25822.
https://revistes.ub.edu/index.php/b3w/ar...
, tais como a Covid-193030. Souza CDF, Carmo RF, Machado MF. The burden of COVID-19 in Brazil is greater in areas with high social deprivation. J. Travel Med. [acesso em 2020 nov 27]; 27(7):145. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/doi/10.1093/jtm/taaa145/5899713.
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As pandemias têm sido um desafio em países que apresentam profundas desigualdades sociais, como o Brasil3131. Estrela FM, Soares CFS, Cruz MA, et al. Covid-19 Pandemic: reflecting vulnerabilities in the light of gender, race and class. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 mar 28]; 25(9):3431-3436. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-81232020000903431&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
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. Nesse cenário, as mortes por Covid-19 em locais como Nova York e outras áreas metropolitanas dos Estados Unidos têm sido associadas a questões étnicas e a disparidades sociais e de saúde, incluindo as comorbidades associadas ao Covid-193232. Laurencin CT, McClinton A. The COVID-19 Pandemic: a Call to Action to Identify and Address Racial and Ethnic Disparities. J Rac. Ethn Health Disp. 2020 [acesso em 2020 jun 25]; 7(3): 398-402. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7166096/.
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Nesse sentido, o objetivo deste trabalho foi o de avaliar os aspectos epidemiológicos da Covid-19 por meio das dimensões demográficas e socioeconômicas da região da SBCC, área com o maior percentual de Aglomerados Subnormais (ASN) e um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano da cidade do Rio de Janeiro3333. Instituto Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por Áreas de Planejamento (AP), Regiões de Planejamento (RP), Regiões Administrativas (RA), Bairros e Favelas do Município do Rio de Janeiro – 2010. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://www.data.rio/datasets/fa85ddc76a524380ad7fc60e3006ee97.
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. Tais informações são relevantes para adequar as políticas e estratégias de saúde para o controle e prevenção da Covid-19 em bairros com alta concentração de favelas.

Material e métodos

Trata-se de estudo observacional, ecológico e analítico que contempla as taxas de incidência, mortalidade e letalidade no território de abrangência da SBCC. Essa área compreende 36 bairros da cidade do Rio de Janeiro3333. Instituto Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por Áreas de Planejamento (AP), Regiões de Planejamento (RP), Regiões Administrativas (RA), Bairros e Favelas do Município do Rio de Janeiro – 2010. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://www.data.rio/datasets/fa85ddc76a524380ad7fc60e3006ee97.
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e, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 20102626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. [acesso em 2022 maio 3]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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, há áreas de ASN em 27 bairros (figura 1). De acordo com dados oficiais, 207.175 casos confirmados de Covid-19 foram notificados para os 36 bairros da SBCC no período de 13.3.2020 a 5.2.20212525. Rio de Janeiro. Prefeitura do Município. Painel Rio COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/38efc69787a346959c931568bd9e2cc4.
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.

Figura 1
Mapa da localização da Sub-Bacia do Canal do Cunha (SBCC) no Município do Rio de Janeiro, Brasil, destaque para a quantidade de Aglomerados Subnormais (ASN) por bairros, 2010

Os bancos de dados foram construídos em Sistema de Informação Geográfica (SIG) e os registros sobre a Covid-19 foram consultados no portal da Prefeitura do Rio de Janeiro, Painel Rio Covid-192525. Rio de Janeiro. Prefeitura do Município. Painel Rio COVID-19. [acesso em 2021 mar 28]. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/38efc69787a346959c931568bd9e2cc4.
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, como arquivo CSV criado em 22.4.2020, atualizado até 4.3.2021.

Para efeitos do estudo, a taxa de incidência acumulada por 10.000 habitantes corresponde a número de novos casos acumulados por número de habitantes no bairro *10.000. A taxa de mortalidade acumulada por 10.000 habitantes é calculada pelo número de mortes acumuladas por número de habitantes no bairro *10.000. E a taxa de letalidade acumulada é igual ao número de mortes acumuladas por número de casos *100. Estas três taxas foram consideradas as variáveis dependentes.

As variáveis independentes foram definidas como bairros de residência; proporção de ASN por bairro, percentual de grupos étnicos, idade; razão de renda (em BRL), e indicadores de saneamento, medido pelo acesso à água e coleta de esgoto. Os dados foram obtidos a partir de bases de dados públicos, como o IBGE, o Instituto Pereira Passos do Rio de Janeiro (IPP) e o Sistema Nacional de Saneamento (SNIS), todos para o ano de 2018.

As análises descritivas e bivariadas (correlação Spearman) foram realizadas utilizando o software BioEstat®. A significância foi estabelecida em 5% (p < 0,05). Para criar os mapas temáticos, foi utilizado o programa QGIS 2.18.4. E a estatística espacial de Moran foi realizada no programa TerraView Social Policies versão 4.2.2. Calcularam-se os índices globais (Box Map) e locais (Moran Map) de Moran a fim de medir a intensidade da autocorrelação espacial, ou seja, com que as taxas de incidência e de mortalidade Covid-19 foram correlacionadas no do espaço geográfico.

Resultados

Na SBCC, 71% dos bairros possuem ASN no seu território e cerca de metade (34%) da população total da SBCC vive nessas áreas2626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. [acesso em 2022 maio 3]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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. Portanto, embora não seja a maioria da população da SBCC, a população dos bairros com ASN é a que possui condições socioeconômicas mais baixas, exibindo renda média de 7,8 vezes inferior à renda média da população não residente nessas áreas. Esses dados corroboram os encontrados para o município do Rio de Janeiro, que tinha cerca de 763 áreas de ASN, com 68,8% da população residindo em regiões de ASN3434. Sotero-Martins A, Carvajal E, Salles MJ, et al. Incidência da COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro e a relação da vulnerabilidade do acesso ao saneamento nas áreas de favelas. In: Silva MED, organizadora. Interfaces entre Desenvolvimento, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ponta Grossa: Atena Editora; 2021. p. 53-62. [acesso em 2021 abr 18]. Disponível em: https://www.atenaeditora.com.br/post-ebook/3914.
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Dentre os 36 bairros da SBCC, o Méier apresentou o maior número de casos confirmados por Covid-19 (N=2641) e de mortes (N=180). Dentre os bairros que possuem ASN no seu território, Bonsucesso apresentou o maior número de casos confirmados (N=1765), enquanto a Maré que teve o maior número de óbitos (N=169). O número mais baixo de casos absolutos foi observado em Vasco da Gama (N=60), com uma relação entre casos e mortes de 56,6%. O número absoluto mais baixo de óbitos foi observado em Engenheiro Leal, um bairro sem ASN. A proporção mais elevada entre casos e mortes foi observada no Complexo do Alemão, Mangueira e Maré (100,0%), bairros com muitos ASN. Em contraste, nove bairros da SBCC apresentaram taxa de letalidade de 0,0%: Abolição, Cavalcante, Engenheiro Leal, Maria da Graça, Méier, Quintino, Riachuelo, Rocha e Todos os Santos. Até 2010, as áreas de ASN não tinham sido descritas nesses bairros2626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. [acesso em 2022 maio 3]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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. A distribuição dos casos de Covid-19 e óbitos de moradores dos bairros da SBCC está representada na figura 2.

Figura 2
Distribuição espacial na cidade do Rio de Janeiro (MRJ) para: taxa de incidência da Covid-19 (A), taxa de mortalidade (B), taxa de letalidade (C), período de 13/03/2020 – 05/02/2021; áreas de ASN nos bairros da SBCC (D), dados IBGE de 2010

O grupo mais acometido pela infecção da Covid-19 na SBCC e nos bairros com ASN da SBCC foi a faixa etária de 30 a 39 anos (21%), seguido pelas pessoas com idades de 40 a 49 anos (19,9%). As duas faixas etárias foram responsáveis pela média de 40,1% dos casos, compondo um grupo etário com maior potencial transmissor em comparação as outras faixas etárias. Nota-se que nestas mesmas faixas etárias o percentual de pessoas que evoluem a óbito foi de 2,5% e 6,5%, respectivamente. Porém nos bairros com ASN chama atenção o percentual de infecção nas faixas de 20 a 29 anos, 30 a 39 anos e 40 a 49 anos foram sempre maiores do que os da SBCC como um todo, sendo 13,6%, 21.5% e 20,1%, respectivamente. Ao analisar os grupos que compõem as faixas etárias mais avançadas, observa-se que o percentual de óbito foi mais alto. Na faixa etária entre 70 e 79 anos os infectados representaram 7,3% do total de casos de Covid-19, porém o percentual de óbitos foi de 26,7%, e uma taxa de letalidade de 34,2%. Em relação ao sexo, dentre as pessoas infectadas as mulheres apresentam um percentual maior que os homens, representando 52,9% do total de casos registrados, percentuais que variaram muito pouco ao longo de toda epidemia, sugerindo que o sexo não foi uma exposição ao risco de infecção por Sars-CoV-2.

A taxa de incidência acumulada na população dos 36 distritos da SBCC foi de 621,5 casos por 10.000 habitantes, com uma mediana de 333,4 casos por 10.000 habitantes. Os valores mais elevados de incidência acumulada e mortalidade foram registados em Bonsucesso, com 5091,8 casos por 10.000 habitantes e 364,3 mortes por 10.000 habitantes, respectivamente, retificando relatórios anteriores3434. Sotero-Martins A, Carvajal E, Salles MJ, et al. Incidência da COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro e a relação da vulnerabilidade do acesso ao saneamento nas áreas de favelas. In: Silva MED, organizadora. Interfaces entre Desenvolvimento, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ponta Grossa: Atena Editora; 2021. p. 53-62. [acesso em 2021 abr 18]. Disponível em: https://www.atenaeditora.com.br/post-ebook/3914.
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. Nesse contexto, é relevante salientar que moradores de ASN de bairros no entorno podem estar se declarando como residentes desse bairro, que possui maior projeção social nesse território, introduzindo supostos enviesamentos no sistema de notificação relativos ao local de residência na notificação.

Curiosamente, a menor incidência acumulada (33,6 por 10.000 habitantes) e a menor mortalidade (8,3 por 10.000 habitantes), embora com a maior taxa de letalidade (24,7%), foram registradas no Complexo do Alemão, bairro com todo território ocupado por ASN. Números semelhantes para as duas primeiras taxas foram encontrados no bairro Vasco da Gama, região com baixa quantidade de ASN. Em contraste, as mais baixas taxas de mortalidade foram registadas no Jacarezinho (7,4 por 10.000 habitantes). Os bairros de Bonsucesso e Higienópolis apresentaram a taxa de letalidade mais baixa (7,2%), bairros da SBCC com melhores condições socioeconômicas em relação aos demais.

Considerando as características socioeconômicas dos casos de Covid-19 em moradores dos bairros da SBCC com ASN, não houve correlação significativa quando se considerou a proporção de pretos e pardo. Em contraste, para os valores médios de renda em Reais (R$), ficou evidenciada a diferença entre grupos populacionais: cidade do Rio de Janeiro (R$1.234,83 ± 164,24), na SBCC (R$524,71±9,28) e nos bairros da SBCC que possuem ASN (R$380,91±5,78). No entanto, essa variável não foi estatisticamente correlacionada com os resultados da Covid-19 nestas análises (tabela 1). Finalmente, foi encontrada uma correlação negativa e significativa entre a taxa de mortalidade Covid-19 e a proporção de habitantes nos bairros com ASN (rho = -0,433; p = 0,023).

Tabela 1
Correlação entre indicadores de casos e óbitos por Covid-19 e características socioeconômicas da população de bairros da SBCC. Rio de Janeiro, Abril 2020 – Abril 2021

As análises espaciais basearam-se, inicialmente no índice global de Moran, fornecendo um valor único como medida de associação espacial para todo o conjunto de dados, ou seja, em toda SBCC. Para a taxa de incidência acumulada de Covid-19, o índice Moran foi de -0,155863 (p = 0,02), evidenciando correlação inversa significativa e baixo índice de associação. Encontraram-se valores semelhantes, mas não significativos, quando a taxa de mortalidade acumulada foi considerada espacialmente (índice global de Moran = -0,153886, p = 0,07).

Os resultados da avaliação espacial global (BoxMap) para as taxas de incidência e de mortalidade da Covid-19 na SBCC são mostrados na figura 3. Para a taxa de mortalidade, foi encontrada uma autocorrelação espacial positiva apenas no bairro de Cascadura (grupo preto com pontos branco, +/+). Os bairros na macrorregião sul da SBCC (em cinza escuro) mostraram uma associação espacial positiva tanto para a incidência acumulada (figura 3 – A) como para as taxas de mortalidade (figura 3 – B). Para as áreas restantes, principalmente as localizadas no Norte e Sudeste da SBCC, foram encontrados outros bairros com associação espacial negativa (cinza claro e preto).

Figura 3
Análise espacial do tipo BoxMap (Global) para Taxa de Incidência (A) e Taxa de Mortalidade (B) de Covid-19 nos bairros da SBCC, Rio de Janeiro, até abril de 2020

Além disso, o índice local de Moran (Moran Map) foi utilizado para explorar as correlações espaciais específicas dos bairros da SBCC. Esse indicador decompõe a análise global em contribuições individuais, permitindo a identificação de agrupamentos com dependência espacial. Valores significativamente elevados indicam elevada probabilidade de associação espacial entre os bairros. Após a decomposição, não foi possível tirar conclusões para a maioria dos bairros da SBCC (N = 34 para taxas acumuláveis). Na análise para a taxa de incidência, os bairros de Engenho da Rainha, Complexo do Alemão e Maria da Graça mostraram uma dependência espacial intermediária. Na análise espacial da taxa de mortalidade acumulada, foram observados valores semelhantes para os bairros do Complexo do Alemão e de Bonsucesso, demostrando associação espacial nessas áreas (figura 4).

Figure 4
Análise espacial do tipo Moran Map (Local) para Taxa de Incidência (A) e Taxa de Mortalidade (B) de Covid-19 nos bairros da SBCC, Rio e Janeiro, até abril de 2020

Discussão

Neste estudo, investigamos a incidência e a mortalidade por Covid-19 na SBCC, uma área do município do Rio de Janeiro que compreende bairros com alta concentração de ASN, áreas de baixo padrão socioeconômico, alta densidade populacional e condições precárias de habitação e saneamento3333. Instituto Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por Áreas de Planejamento (AP), Regiões de Planejamento (RP), Regiões Administrativas (RA), Bairros e Favelas do Município do Rio de Janeiro – 2010. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://www.data.rio/datasets/fa85ddc76a524380ad7fc60e3006ee97.
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. Dados históricos têm evidenciado que a pobreza, as desigualdades e os determinantes sociais de saúde favorecem a propagação de doenças infecciosas, contribuindo significativamente para a morbilidade e mortalidade3535. Singu S, Acharya A, Challagundla K, et al. Impact of Social Determinants of Health on the Emerging COVID- 19 Pandemic in the United States. Front Public Health. 2020 [acesso em 2020 jul 21]; 8:406. Disponível em: https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpubh.2020.00406/full.
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.

Na SBCC, cerca de 41,0% dos indivíduos acometidos pela Covid-19 se encontravam na faixa etária de 30 e 49 anos. Entre os residentes das áreas de ASN, no entanto, pôde ser percebida uma mudança de idade para adultos mais jovens, dado que se chegou a 13,6% de casos em indivíduos na faixa de adultos jovens de 20 e 29 anos. Além disso, apenas 7,3% das infecções virais foram notificadas em indivíduos mais velhos (70-79 anos), mas com uma taxa de letalidade mais elevada, como esperado3636. Pedreañez A, Mosquera-Sulbaran J, Muñoz N. SARS- -CoV-2 infection represents a high risk for the elderly: analysis of pathogenesis. Arch Virol. 2021 [acesso em 2021 mar 22]; 166(6):1565-1574. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33751241/.
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. Esse padrão etário poderia explicar parcialmente a baixa mortalidade acumulada em parte dos bairros que abrigam áreas com ASN, como o Complexo do Alemão, Jacarezinho e Manguinhos. É também relevante salientar que esses bairros compõem uma das zonas mais violentas da cidade do Rio de Janeiro, o que pode contribuir significativamente para a subnotificação devido ao acesso ou admissão desafiadora ao Sistema de Único de Saúde, o que impede um diagnóstico real.

De acordo com essas observações, a maior taxa de casos fatais foi encontrada em localidades como Complexo do Alemão, Mangueira e Maré (100,0%), ao contrário de bairros da SBCC que quase não abrigam favelas, como o Cachambi (1,6%). Sob perspectiva complementar, foram observadas taxas mais elevadas de incidência acumulada, mortalidade e letalidade pela Covid-19 em bairros com menor renda per capita e maior proporção de habitantes em áreas de ASN, revelando o impacto desproporcional das pandemias sobre grupos populacionais socialmente desfavorecidos.

Em Salvador, Bahia, foi relatada uma proporção mais elevada de casos fatais, equivalente a 1,42 vezes, em municípios com alta privação social em comparação às suas contrapartes (2,2% e 1,5%, respectivamente)3030. Souza CDF, Carmo RF, Machado MF. The burden of COVID-19 in Brazil is greater in areas with high social deprivation. J. Travel Med. [acesso em 2020 nov 27]; 27(7):145. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/doi/10.1093/jtm/taaa145/5899713.
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. Resultados semelhantes foram relatados para outras viroses respiratórias.

Em estudo conduzido na Inglaterra sobre as variações na mortalidade por Influenza A (H1N1) em 2009 entre grupos socioeconômicos distintos, os autores evidenciaram que indivíduos no quintil mais carente da população apresentavam uma taxa de mortalidade padronizada por idade e sexo três vezes maior que a do quintil menos carente (RR = 3,1, 95% CI 2,2-4,4)3737. Rutter PD, Mytton OT, Mak M, at al. Socio-economic disparities in mortality due to pandemic influenza in England. Int J Public Health. 2012 [acesso em 2021 mar 28]; 57(4):745-750. Disponível em: http://link.springer.com/10.1007/s00038-012-0337-1.
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.

As conclusões deste estudo salientam a face social das pandemias em curso e estão de acordo com a literatura nacional e internacional sobre o papel dos determinantes sociais nesse contexto3030. Souza CDF, Carmo RF, Machado MF. The burden of COVID-19 in Brazil is greater in areas with high social deprivation. J. Travel Med. [acesso em 2020 nov 27]; 27(7):145. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/doi/10.1093/jtm/taaa145/5899713.
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,3131. Estrela FM, Soares CFS, Cruz MA, et al. Covid-19 Pandemic: reflecting vulnerabilities in the light of gender, race and class. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 mar 28]; 25(9):3431-3436. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-81232020000903431&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,3535. Singu S, Acharya A, Challagundla K, et al. Impact of Social Determinants of Health on the Emerging COVID- 19 Pandemic in the United States. Front Public Health. 2020 [acesso em 2020 jul 21]; 8:406. Disponível em: https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpubh.2020.00406/full.
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,3838. Bambra C, Riordan R, Ford J, et al. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health. 2020 [acesso em 2020 nov 25]; 74(11):964-968. Disponível em: http://orcid.org/0000-0002-1294-6851.
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,3939. Mishra V, Seyedzenouzi G, Almohtadi A, et al. Health Inequalities During COVID-19 and Their Effects on Morbidity and Mortality. JHL. 2021 [acesso em 2021 mar 27]; (13):19-26. Disponível em: https://www.dovepress.com/health-inequalities-during-covid-19--and-their-effects-on-morbidity-and-peer-reviewed--article-JHL.
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,4040. Kopel J, Perisetti A, Roghani A, et al. Racial and Gender- Based Differences in COVID-19. Front Public Health. 2020 [acesso em 2020 jul 28]; (8):418. Disponível em: https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpubh.2020.00418/full.
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. É também relevante salientar que os grupos vulneráveis mostram geralmente maior frequência de fatores de risco que contribuem significativamente para o aumento da gravidade e mortalidade por Covid-19 tais como hipertensão, diabetes, asma, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), doença cardiovascular, obesidade3535. Singu S, Acharya A, Challagundla K, et al. Impact of Social Determinants of Health on the Emerging COVID- 19 Pandemic in the United States. Front Public Health. 2020 [acesso em 2020 jul 21]; 8:406. Disponível em: https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpubh.2020.00406/full.
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,3838. Bambra C, Riordan R, Ford J, et al. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health. 2020 [acesso em 2020 nov 25]; 74(11):964-968. Disponível em: http://orcid.org/0000-0002-1294-6851.
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,3939. Mishra V, Seyedzenouzi G, Almohtadi A, et al. Health Inequalities During COVID-19 and Their Effects on Morbidity and Mortality. JHL. 2021 [acesso em 2021 mar 27]; (13):19-26. Disponível em: https://www.dovepress.com/health-inequalities-during-covid-19--and-their-effects-on-morbidity-and-peer-reviewed--article-JHL.
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,4141. Jordan RE, Adab P, Cheng KK. Covid-19: risk factors for severe disease and death. BMJ. 2020 [acesso em 2021 mar 28]; m1198. Disponível em: https://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.m1198.
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. Outras condições também favorecem a transmissão viral em ambientes de baixo padrão socioeconômico tais como a aglomeração doméstica; utilização de transportes públicos4242. Mendonça FD, Rocha SS, Pinheiro DLP, et al. Região Norte do Brasil e a pandemia de COVID-19: análise socioeconômica e epidemiológica/ North region of Brazil and the COVID-19 pandemic: socioeconomic and epidemiologic analysis/ Región Norte de Brasil y la pandemia de COVID-19: análisis. J. Health NPEPS. 2020 [acesso em 2020 maio 1]; 5(1):20-37. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/jhnpeps/article/view/4535.
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e nível de educação inferior, o que dificulta a correta compreensão das orientações em saúde e o efetivo reconhecimento das situações de risco, comprometendo a capacidade de tomar decisões e o atendimento oportuno dos serviços de saúde4343. Saadi A, Himmelstein DU, Woolhandler S, et al. Racial disparities in neurologic health care access and utilization in the United States. Neurology. 2017 [acesso em 2020 jun 13]; 88(24):2268-2275. Disponível em: https://n.neurology.org/content/88/24/2268.
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.

Os resultados não revelaram correlação entre incidência e taxas de mortalidade na população dos bairros com ASN e raça. Nos Estados Unidos, foi relatada elevada incidência e mortalidade na população negra. Em alguns estados dos EUA, mais de 70% das mortes na Covid-19 ocorreram entre afro- -americanos4444. Morrow-Howell N, Galucia N, Swinford E. Recovering from the COVID-19 Pandemic: A Focus on Older Adults. J Aging Soc Policy. 2020 [acesso em 2020 out 25]; 32(4-5):526-535. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32336225/.
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. Em Chicago, 59,2% dos óbitos por Covid-19 ocorreram entre negros, sendo a taxa de mortalidade da ordem de 34,8 por 100.000 habitantes vs. 8,2 por 100.000 habitantes brancos3838. Bambra C, Riordan R, Ford J, et al. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health. 2020 [acesso em 2020 nov 25]; 74(11):964-968. Disponível em: http://orcid.org/0000-0002-1294-6851.
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. Entretanto, cabe destacar que cerca de um terço dos registros (32,4%) não apresentava a informação sobre raça, ressaltando a necessidade de completude das bases de dados.

Casos que ocorreram nos ASN da SBCC podem ter sido notificados em outros bairros tais como em Bonsucesso, um bairro do Rio de Janeiro com ASN e cercado por áreas de favelas. Além disso, casos de Covid-19 de residentes da comunidade podem estar sendo subnotificados em razão do estigma e do preconceito a eles atribuído3434. Sotero-Martins A, Carvajal E, Salles MJ, et al. Incidência da COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro e a relação da vulnerabilidade do acesso ao saneamento nas áreas de favelas. In: Silva MED, organizadora. Interfaces entre Desenvolvimento, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ponta Grossa: Atena Editora; 2021. p. 53-62. [acesso em 2021 abr 18]. Disponível em: https://www.atenaeditora.com.br/post-ebook/3914.
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. Os vulneráveis à Covid-19, moradores de favelas e periferias, pessoas que vivem nas ruas e o grupo com maior prevalência de morbidades específicas são compostos expressivamente por negros4343. Saadi A, Himmelstein DU, Woolhandler S, et al. Racial disparities in neurologic health care access and utilization in the United States. Neurology. 2017 [acesso em 2020 jun 13]; 88(24):2268-2275. Disponível em: https://n.neurology.org/content/88/24/2268.
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,4545. Bernardes JA, Arruzzo RC, Monteiro DMLV. Geografia e Covid-19: neoliberalismo, vulnerabilidades e luta pela vida. Rev. Tamoios. 2020 [acesso em 2020 maio 1]; 16(1). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tamoios/article/view/50645.
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. A correlação negativa, nas avaliações espaciais de Moran, entre a taxa de mortalidade por Covid-19 e a proporção de habitantes dos bairros com ASN, confirmam que esses territórios estão sob risco mais elevado de doença grave e de morte.

A associação espacial positiva tanto para a incidência acumulada como para as taxas de mortalidade entre os bairros da macrorregião sul da SBCC sugere que essas áreas sejam prioritárias para o controle da Covid-19, salientando a necessidade de uma política adaptada às populações e aos territórios vulneráveis. Nas áreas de ASN, onde a pobreza urbana é mais acentuada e o acesso ao saneamento é deficitário, o Sars-CoV-2 espalhou-se mais rapidamente, uma vez que esses territórios não têm acesso a políticas públicas que possam apoiar a proteção coletiva.

Ainda assim, a eficácia das intervenções não farmacológicas recomendadas durante a pandemia4646. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico N. 06 – Ampliação da Vigilância, Medidas não Farmacológicas e Descentralização do Diagnóstico Laboratorial. 2020. [acesso em 2020 abr 1]. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/images/PDF/2020_03_13_Boletim-Epidemiologico-05.pdf.
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tais como o distanciamento social, o uso de uma máscara e as medidas de higiene adequadas exerceu menor impacto nesses territórios, dadas as suas dificuldades de implantação. Para a maioria dos bairros da SBCC, contudo, não foi possível extrair inferências espaciais após a análise de decomposição. Não ficou claro se era devido à ausência de incidência associada à mortalidade entre bairros ou se era consequência da baixa notificação de casos confirmados e óbitos atribuídos a Covid-19.

A adoção de estratégias individuais de prevenção tem sido dificultada pela falta de comunicação, falta de coordenação e atuação conjunta entre autoridades e instituições, gerando desconfiança e enfraquecendo a aderência ao distanciamento social e ao lockdown4747. Garcia LP, Duarte E, Garcia LP, et al. Intervenções não farmacológicas para o enfrentamento à epidemia da COVID-19 no Brasil. Epid. Serv. Saúde. 2020 [acesso em 2020 maio 1]; 29(2). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2237--96222020000200100&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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. O mesmo se pode dizer da lavagem das mãos nas favelas, onde ocorre a maioria das doenças transmissíveis pela água, mas cuja adoção é dificultada pela falta de acesso à água tratada em qualidade e quantidade suficiente para suprir as necessidades diárias4848. Ignacio CF, Silva MEC, Handam NB, et al. Socioenvironmental conditions and intestinal parasitic infections in Brazilian urban slums: a cross-sectional study. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 2017 [acesso em 2020 ago 7]; (59):e56. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1678-9946201759056.
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,4949. Handam NB, Santos JAA, Moraes Neto AHA, et al. Sanitary quality of the rivers in the Communities of Manguinhos´ Territory, Rio de Janeiro, RJ. Rev. Amb. & amp Água. 2018 [acesso em 2021 maio 1]; 13(1). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1980-993X2018000100308&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
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. A situação atual de declínio econômico significativo impacta substancialmente as populações de baixa renda, que não podem escolher entre ficar em casa ou correr o risco sem manter o isolamento, porque precisam sair todos os dias para manter seu sustento3131. Estrela FM, Soares CFS, Cruz MA, et al. Covid-19 Pandemic: reflecting vulnerabilities in the light of gender, race and class. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 mar 28]; 25(9):3431-3436. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-81232020000903431&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
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.

Portanto, o distanciamento social como medida relevante de intervenção de saúde pública destinada a minimizar o risco de transmissão viral é um desafio para essa população. A capacidade de se isolar, trabalhar à distância com acesso totalmente digital e manter o rendimento mensal são inacessíveis às populações de baixa renda5050. Webb HM, Nápoles AM, Pérez-Stable EJ. COVID-19 and Racial/Ethnic Disparities. JAMA. 2020 [acesso em 2021 mar 28]; 323(24):2466. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2766098.
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, tais como as que habitam as áreas dos ASN na SBCC.

Assim, defendemos o reforço das parcerias entre os setores público e privado, organizações sociais e esforços locais, para desempenhar um papel central na construção de capital social, promovendo a resiliência, cultivando a determinação política e desafiando eficazmente políticas e práticas discriminatórias que afetam de forma desproporcional as populações vulneráveis5151. Gray DM, Anyane-Yeboa A, Balzora S, et al. COVID-19 and the other pandemic: populations made vulnerable by systemic inequity. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2020 [acesso em 2021 mar 27]; 17(9):520- 2. Disponível em: http://www.nature.com/articles/s41575-020-0330-8.
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.

Esperamos que esta informação possa contribuir e subsidiar, reforçando a vigilância de monitoramento da Covid-19 nos territórios vulneráveis da SBCC.

Considerações finais

No conjunto, conclui-se que as taxas de incidência e de mortalidade acumulada na população dos bairros com áreas de ASN estão significativamente relacionadas com as estruturas socioeconômicas e demográficas, realçando a necessidade de uma política orientada às populações e territórios vulneráveis. Recomendações não farmacológicas e adequados cuidados primários de saúde em áreas de favelas desempenham um papel relevante na redução da transmissão viral, mortalidade e iniquidades de saúde. Além disso, a vigilância deve ser melhorada nessas áreas, especialmente nos bairros com ASN.

  • Suporte financeiro: Fundação Oswaldo Cruz; Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS); Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – MCTI/CNPq/ FNDCT/MS/SCTIE/Decit (N. 402547/2020-0) e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), projeto número E-26/210.196/2020.
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2021
  • Aceito
    06 Dez 2021
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