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A ficcionalização em meio à Covid-19

Fiction during Covid-19

RESUMO

Em 2020, a Covid-19 e a pandemia emergiram, provocando a experimentação de uma multiplici- dade de afetos e uma série de questões. As tentativas de respostas a essas questões ocorrem principalmente pelos discursos negacionista e científico, os quais estão em uma disputa na compreensão e diagnóstico de pandemia. Contudo, esses dois discursos não são a única possibilidade de respostas sobre as questões da pandemia. Nesse sentido, o presente artigo utiliza-se da ficção como estratégia de produção de narrativas sobre o acontecimento da Covid-19. Para tanto, aborda-se o tema da pandemia com a ficção de Camus, ‘A Peste’, para fazer ver novos modos de composição do acontecimento da pandemia. Essa composição aqui no artigo será feita como bricolagem de notícias de 2020 e 2021 sobre a pandemia, passagens do livro e a discussão como a ficção pode ser também um modo de compreensão, bem como um modo de produção de mundo.

PALAVRAS-CHAVE
Pandemias; Covid-19; Ficção

ABSTRACT

In 2020 Covid-19 and the pandemic emerge, provoking the experience of a multiplicity of af- fections and a series of questions. Attempts to answer these questions occur mainly through the denialist and scientific discourses, which are in dispute in the understanding and diagnosing of a pandemic. However, these two discourses are not the only possible answers to the questions of the pandemic. In this sense, this article uses fiction as a strategy to produce narratives about the event of Covid-19. For that, the theme of the pandemic is addressed together with Camus’ fiction, ‘The Plague’, to make one see new modes of composition of the pandemic event. This composition here in the article will be done as bricolage of news from 2020 and 2021 about the pandemic, passages from the book, and the discussion of how fiction can also be a mode of understanding, and moreover, a mode of producing worlds.

KEYWORDS
Pandemics; Covid-19; Ficcion

Introdução

Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(77 Saer JJ. O conceito de ficção. Revista FronteiraZ. São Paulo. 2012 [acesso em 2021 fev 17]; 8(1). Disponível em: https://www.pucsp.br/revistafronteiraz/download/pdf/TraducaoSaer-versaofinal.pdf
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No ano de 2020, marcado pela ‘acontecimentalização’ do fenômeno da pandemia de Covid-19, doença causada pelo Sars-CoV-2, ou novo coronavírus, algo rompe sem sujeito. De 2020 até 2021, houve movimentos que colocam em xeque todo um modo de vida.

Prado e Mansano22 Prado GAS, Mansano RGV. “Nada será como antes”... Provocações clínico-políticas para um por vir. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):15-27. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57079/751375151608
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afirmam que o novo coronavírus emergiu inesperadamente, provocando a experimentação de uma multiplicidade de afetos. Devido ao seu aparecimento e disseminação, todos fomos lançados em uma série de questões que, a depender de um corpo suficientemente aberto aos afetos que vêm à tona diante de tal acontecimento, geram pistas para insistir na criação de uma vida diferente daquela que tínhamos antes da pandemia. ‘Na nossa pequena cidade’, ou melhor, no Brasil - e quiçá o mundo -, já havia sinais de esgotamento e adoecimento na vida pré-pandemia.

Como acontecimento, tal fenômeno irrompe o tecido social, permitindo o desvelamento da reprodução de práticas históricas e a abertura para que outras práticas se atualizem nas relações sociais. Zourabichvili33 Zourabichvil F. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: 34; 2016. aponta que aquilo que acontece, enquanto acontece, rompe com o passado e é sempre, pelo menos, dois, pois não é somente um advento. É um devir em que o antes e o depois brotam no mesmo tempo em um moi-avant-outrement.

O efeito surpresa do Sars-CoV-2 foi capaz de colocar abaixo e de neutralizar toda a ordem constituída e todo o arsenal tecnológico de organização social. O desconhecimento que ainda se tem sobre o novo coronavírus produziu, também, uma sensação compartilhada de desamparo e pânico muito bem instrumentalizada por psicopolíticas que se valeram do negacionismo, da paranoia e da perversão para a implementação ou fortalecimento de governos autoritários, fascistas e genocidas44 Silva GE, Justo JS, Mansano SRV. Apresentação. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):01-03. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57102
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No decorrer das notícias, o discurso do negacionismo científico toma corpo em meio à pandemia, como Perini-Santos55 Perini-Santos E. Covid-19 e Terraplanismo Quando duas crises se encontram: a pandemia e o negacionismo científico. Le Monde Diplomatique Brasil. 2021. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/quando-duas-crises-se-encontram-a-pandemia-e-o-negacionismo-cientifico/
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coloca em seu artigo. Isso intensificou os números de casos e óbitos por Sars-CoV-2 que, certamente, poderiam ter sido evitados com intervenções precisas de defesa e proteção da vida44 Silva GE, Justo JS, Mansano SRV. Apresentação. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):01-03. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57102
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Por outro lado, há o discurso científico, defendido por médicos sanitaristas com apoio de instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de governadores (São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e os demais estados do Nordeste), da maioria dos governos estrangeiros (Rússia, China, Argentina, França, Alemanha, Nova Zelândia etc.), além do papa, e reproduzido, sobretudo, nas mídias tradicionais. Tal discurso privilegia o cuidado com a saúde e a sustentabilidade da vida, defendendo o isolamento social horizontal - fique em casa - e até o lockdown como melhor forma de garantir a vida e o êxito futuro em termos de sustentabilidade econômica66 Romano JO, Bittencourt TP, Balthazar PAA, et al. Cientistas e Negacionistas: A disputa de discursos sobre a pandemia. Le Monde Diplomatique Brasil. 2020. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-disputa-de-discursos-sobre-a-pandemia/
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De fato, com o acontecimento da pandemia, há múltiplos discursos em disputa. No entanto, os principais ou mais vigentes, como construção hegemônica, são os discursos negacionista e científico em disputa entre si66 Romano JO, Bittencourt TP, Balthazar PAA, et al. Cientistas e Negacionistas: A disputa de discursos sobre a pandemia. Le Monde Diplomatique Brasil. 2020. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-disputa-de-discursos-sobre-a-pandemia/
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Uma vez que os discursos negacionista e científico estão em rivalidade, há uma tentativa de dicotomização dessas possibilidades de compreensão e diagnóstico da pandemia. Diante disso, ora se encontra em um, ora em outro, de modo que apenas essas duas possibilidades aparecem como possíveis para dar respostas diante do Sars-CoV-2 e seus desdobramentos.

Contudo, a pandemia como um acontecimento recolocou em pauta a necessidade de construção de um modelo de relações internacionais alicerçado na cooperação, e não em um paradigma de competição desvairado que opõe e torna adversários os diferentes povos e países. Além disso, está colocando em cena tantos outros problemas até então silenciados ou negligenciados44 Silva GE, Justo JS, Mansano SRV. Apresentação. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):01-03. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57102
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. Para tanto, neste escrito, tenta-se expor outro tipo de discurso para produzir diagnósticos sobre a pandemia e os problemas negligenciados até então.

Entende-se que os discursos podem ser entendidos como distintas formas de compreensão-produção do mundo. Com isso, a realidade falada e os discursos dizem e criam o mundo. Assim sendo, aqui neste ensaio, será abordada a ficção como uma estratégia outra de compreensão-produção do mundo de modo que há a radicalização da postura de ficcionalização como um modo ético-estético-político de composição.

Para tal fim, a ficção aparece como um novo elemento tensionando os discursos dicotomizados de verdade entre ciência e negacionismo. Com Saer77 Saer JJ. O conceito de ficção. Revista FronteiraZ. São Paulo. 2012 [acesso em 2021 fev 17]; 8(1). Disponível em: https://www.pucsp.br/revistafronteiraz/download/pdf/TraducaoSaer-versaofinal.pdf
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, entende-se que a ficção submerge na turbulência da suposta realidade objetiva, “desdenhando a atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como essa realidade se conforma”; multiplica-se ao infinito as possibilidades de tratamento.

Assim, durante esta reflexão, será abordado o tema da pandemia com a ficção de Camus11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983., ‘A Peste’, de modo a fazer ver novos modos de composição da suposta realidade objetiva. Essa composição será feita como bricolagem de notícias de 2020 e 2021 sobre a pandemia, passagens do livro e a discussão de como a ficção pode ser também um modo de compreensão, e mais, um modo de produção de mundo.

Aqui entende-se que a ficção também se compromete de algum modo com o real, com a possibilidade infinita de uma produção de narrativas sobre o real, um real que vai para além das dimensões científicas.

O método utilizado neste texto se assemelha com o que Camus conta ser o método narrativo por meio de um de seus personagens:

É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(99 OPAS Brasil: OMS afirma que Covid-19 é agora caracterizada como pandemia. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2020. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812
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Aqui os documentos serão as notícias reportadas por veículos on-line, mas os narradores desta história, aqui contada em formato de ensaio, utilizam como ferramenta seus próprios testemunhos e de outrem que lhes convém. Esses testemunhos não serão colocados aqui diretamente, mas aparecem nos meandros da escrita como construção sensível que será explicada nos próximos parágrafos.

E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento do exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(52).

Já os trechos do livro ‘A Peste’, de Camus11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983., colocados com as notícias e conceitos, servem-nos como uma ‘ilustração estética’. Essa bricolagem aparece com o intuito de possibilitar um campo sensível às discussões e dar corpo ao conceito de ficção que se discute aqui. Assim, apresentamos outro modo de operar na pandemia, que passa pela ficcionalização, pela poética da existência e contorna os discursos negacionista e científico de diagnóstico da pandemia.

Na obra de Camus11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983., a ficção é o diagnóstico de seu tempo que ocorre pela escrita. O diagnóstico, desse modo, pode ser entendido como um instrumento de transformação epistêmica. Balbino88 Balbino LP. “Uma arte de viver para um tempo de catástrofe”: uma estética da existência em Albert Camus. [dissertação]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2015. 109 p. corrobora essa ideia dizendo que esse trabalho de diagnóstico literário deve ser entendido como um instrumento do pensamento para enfrentar o que lhe é intolerável em seu tempo.

Desenvolvimento

No dia 30 de janeiro de 2020, a OMS já havia declarado que o surto do novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (Espii) - o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. No dia 11 de março de 2020, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, anunciou que a Covid-19 se caracterizava como uma pandemia. Nesse dia, Tedros declarou que, naquele momento, existiam mais de 118 mil casos em 114 países e 4,2 mil pessoas haviam perdido a vida99 OPAS Brasil: OMS afirma que Covid-19 é agora caracterizada como pandemia. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2020. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812
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Para Prado e Mansano22 Prado GAS, Mansano RGV. “Nada será como antes”... Provocações clínico-políticas para um por vir. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):15-27. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57079/751375151608
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, talvez com a pandemia, será preciso criar e colocar em circulação outras concepções de vida que servirão para construir um porvir, abrindo passagem para outros modos de relação com a alteridade e com prevalência coletiva. Nesse sentido, a ficção pode ser uma ferramenta tática para compor estratégias de expandir novas possibilidades e construir outros mundos coletivamente, modificando as relações.

No Brasil, o Senado Federal aprovou o projeto de decreto legislativo que reconheceu, no dia 20 de março de 2020, o estado de calamidade pública em decorrência da pandemia do novo coronavírus1010 Brasil. Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União. 20 Mar 2020. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-249090982
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. Posteriormente, no dia 12 de fevereiro de 2021, o Brasil contava 237.489 mortos por Covid-19 e 9.765.455 infectados desde fevereiro de 20201111 Brasil. Ministério da Saúde. COVID19. Painel Coronavírus. Brasília, DF: MS; 2021 [acesso em 2021 fev 12]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/
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No dia 26 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde afirmou a comprovação do caso de um homem de 61 anos que testou positivo para Sars-CoV-2 no Brasil. Além desse, havia outros 20 casos em investigação1212 Oliveira E, Ortiz B. Ministério da Saúde confirma primeiro caso de coronavírus no Brasil. G1 e G1 DF. 2020 fev 26. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/26/ministerio-da-saude-fala-sobre-caso-possivel-paciente-com-coronavirus.ghtml
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A primeira pessoa infectada no Brasil

[...] marcou o fim desse período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. [...] Enquanto cada médico não tinha tido conhecimento de mais de dois ou três casos, ninguém pensara em se mexer. Mas, em resumo, bastou que alguém pensasse em fazer a soma, e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com a curiosa moléstia, que se tratava de uma verdadeira [...] [pandemia]11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(29).

O avanço da doença acelerou: foram 25 dias desde o primeiro contágio confirmado até os primeiros mil casos (de 26 de fevereiro a 21 de março). No entanto, os outros 2 mil casos foram confirmados em apenas 6 dias (de 21 a 27 de março). O Ministério da Saúde atualizou seus números no dia 31 de março de 2020, informando que o Brasil tinha 201 mortes e 5.717 casos confirmados do novo coronavírus1313 Casos de coronavírus no Brasil em 31 de março: secretarias estaduais de saúde contabilizam 5.812 infectados em todos os estados e 202 mortos. G1 São Paulo. 2020 mar 31. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/31/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-31-de-marco.ghtml
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Naquele dia,

O governo do Amazonas confirmou a terceira morte no estado e em Minas Gerais foi constatada a segunda morte pela doença. A primeira morte também foi confirmada em Alagoas. No começo da tarde, a Paraíba confirmou a primeira morte. O Distrito Federal registra três casos fatais da Covid-19 e o Mato Grosso do Sul teve seu primeiro caso. Pernambuco confirmou sete mortes. Com isso, chega a 202 o número de mortos pela Covid-19 no país. São Paulo registra 136 mortes e o Rio de Janeiro tem 23 casos fatais da doença1313 Casos de coronavírus no Brasil em 31 de março: secretarias estaduais de saúde contabilizam 5.812 infectados em todos os estados e 202 mortos. G1 São Paulo. 2020 mar 31. [acesso em 2021 fev 17]. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/31/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-31-de-marco.ghtml
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Flutuavam números na memória, era possível dizer que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(31).

Em abril de 2020, assistimos à notícia de empilhamentos de corpos em valas comuns em Manaus devido ao colapso funerário1414 Em Manaus, 18 caixões foram enterrados empilhados ante de procedimento ser cancelado [internet]. G1 AM. 2020 abr 28. [acesso em 2021 fev 18]. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/28/em-manaus-18-caixoes-foram-enterrados-empilhados-antes-de-procedimento-ser-cancelado.ghtml
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. Outra medida adotada até o presente momento é a extinção das cerimônias fúnebres para aqueles que morrem em decorrência do novo coronavírus ou na suspeita deste. Tais acontecimentos podem ser colocados ao lado da seguinte passagem de Camus11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(122-123):

Apesar desses êxitos de administração, o caráter desagradável de que se revestiam agora as formalidades obrigou a prefeitura a afastar os parentes da cerimônia, tolerava-se apenas que viessem até a porta do cemitério e nem isso era oficial. Sim, pois, no que se refere à última cerimônia, as coisas tinham mudado um pouco. Num extremo do cemitério, num local coberto de lentisco, tinham sido abertas duas enormes fossas. Havia a fossa dos homens e a das mulheres. Sob esse aspecto, as autoridades respeitavam as conveniências, e foi só muito mais tarde que, pela força das circunstâncias, este último pudor desapareceu e se enterraram de qualquer maneira, uns sobre os outros, sem preocupações de decência, os homens e as mulheres. Felizmente, essa confusão extrema marcou apenas os últimos momentos do flagelo. No período de que nos ocupamos, a separação das fossas existia, e as autoridades eram muito exigentes em relação a isso. No fundo de cada uma delas, uma espessa camada de cal viva fumegava e fervilhava. Nas bordas do mesmo buraco, um montículo da mesma cal deixava suas bolhas arrebentarem ao ar livre. Depois de acabadas as viagens da ambulância, levavam-se as macas em cortejo, deixavam escorregar para o fundo, mais ou menos ao lado uns dos outros, os corpos desnudados e ligeiramente retorcidos que, nesse momento, eram recobertos de cal viva e depois, de terra, mas só até uma certa altura, a fim de poupar espaço para os futuros hóspedes. No dia seguinte, os parentes eram convidados a assinar um registro, o que mostra a diferença que pode haver entre os homens e, por exemplo, os cães: a verificação era sempre possível.

Tal passagem, com o que aconteceu em Manaus, é capaz de produzir uma construção de um corpo sensível lhe acometendo para além do invólucro da pele. Uma vez que já é muito saber o que é um morto, depois dos longos alarmes, “parecia que o coração de todos tinha endurecido e que caminhavam ou viviam ao lado dos queixumes como se eles fossem a linguagem natural dos homens”11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(79). A ficção pode irromper criação de outras formas de relação com a vida e com a sensibilidade, ir para além dos números estatísticos, das reportagens e dos endurecimentos.

A ficção e a notícia se embaralham de modo que não se trata de dizer sobre realidade ou irrealidade. Cabe dizer que a ética da ficção não significa dizer que tudo é ficção, mas que política, arte e os saberes constroem ficções de modo que seus enunciados fazem efeito no real. O’Leary1515 O’Leary T. Foucault and Fiction: The Experience Book. New York: Continuum International Publishing Group; 2009.(87) indica que uma ficção não está necessariamente fora da verdade, “é possível que a ficção induza efeitos de verdade, assim como é possível que um discurso da verdade fabrique ou crie algo”.

Ao invés de isolar o objeto para sua simplificação, assume-se a complexidade das relações e as potencialidades existentes nas variações singulares da experiência. Então, o ‘modo de ser’ forja-se em todas as narrativas. “E, mesmo que se proclame verdadeiro ou fictício, sempre terá tendência a se tornar uma espécie de construção sensível”1616 Saer JJ. La narración-objeto. Buenos Aires: Seix Barral; 1999.(1919 Lacerda N. Por que a ideia de estabilização da covid no Brasil é uma realidade distante? País continua com infecções fora de controle, alcança recordes mundiais em 24 horas e se aproxima de 100 mil mortes. Brasil de Fato. 2020 mar 1. [acesso em 17 fev 2021]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/08/01/por-que-a-ideia-de-estabilizacao-da-covid-no-brasil-e-uma-realidade-distante
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Essa construção sensível é aludida por Rancière1717 Rancière J. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental/Editora 34; 2009., que afirma que escrever a história, escrever histórias e, talvez, até contá-las pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem a ver com a tese de realidade ou irrealidade, mas sobre o modelo de fabricação de histórias como destino comum, pois os rearranjos realizados fazem efeito no real.

Sob essa perspectiva, o regime estético da arte, ao mesmo tempo que se liberta de padrões e regras hierárquicas para a criação de outras formas de relação com a vida e com a sensibilidade, identifica a arte com as próprias formas assumidas pela vida, com as manifestações da vida em comum. Essa construção sensível, da qual a literatura faz parte, produz efeitos no real, uma vez que dão densidade às virtualidades que não cabem nos limites postos por sua representação atual.

Rancière1717 Rancière J. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental/Editora 34; 2009.(49) afirma que “a própria literatura se constitui como uma determinada sintomatologia da sociedade e contrapõe essa sintomatologia aos gritos e ficções da cena pública”. Entretanto, essa sintomatologia da sociedade realizada por meio da literatura não se trata de trazer um discurso de verdade, mas de usar a arte como uma forma de ação.

Desse modo, ultrapassa “a descrição estrita do ‘dado’ adentrando nos meandros fugidios dos acontecimentos e seu intricado campo de possibilidades”1818 Costa LA. O corpo das nuvens: o uso da ficção na Psicologia Social. Fractal: Rev Psicol. 2014 [acesso em 2021 fev 18]; 26(esp):551-576. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/qqkYCQWDZVDsBp9t8xwJZCj/abstract/?lang=pt
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. Nosso impulso com a ética da ficção é fazer um movimento de produzir rupturas, gerando arranjos nos quais fazeres e saberes de diferentes perspectivas se encontram em uma dinâmica transdisciplinar. A ficção, quando tomada como estratégia ética, estética e política para problematizar as tecnologias de subjetivação, pode multiplicar ao infinito as possibilidades da compreensão do mundo pandêmico.

Em tempos de pandemia, algumas conveniências são mantidas, e outras, pelas forças das circunstâncias, desaparecem. As mortes não impressionam mais, não importam mais as mortes. São números acumulados. Nada mudou, apenas se aceitou. Como Camus11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983. coloca, toda a cidade parecia uma sala de espera. Os que tinham uma profissão, executavam-na ao ritmo da própria peste, meticulosamente e sem brilho. Todos eram modestos.

Ninguém mais, entre nós, tinha grandes sentimentos. Mas todos experimentavam sentimentos monótonos. ‘É tempo de acabar com isso’, diziam nossos concidadãos, porque em período de flagelo é normal desejar o fim dos sofrimentos coletivos, e na verdade desejavam que aquilo acabasse. Mas tudo isso se dizia sem o calor e sem o sentimento amargo do princípio e apenas com as poucas razões que nos restavam ainda claras e que eram bem pobres. Ao grande impulso feroz das primeiras semanas, sucedera um abatimento que seria erro considerar como resignação, mas que nem por isso deixava de ser uma espécie de aquiescência provisória11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(127).

Esses são alguns retratos da tendência hegemônica do funcionamento político atual que se adapta inextrincavelmente às formas de reprodução social neoliberais, assentadas na disseminação sistemática do medo e na gestão da insegurança22 Prado GAS, Mansano RGV. “Nada será como antes”... Provocações clínico-políticas para um por vir. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):15-27. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57079/751375151608
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As informações dos noticiários não se parecem mais como novidades. Nas circunstâncias difíceis que a cidade atravessava, a própria palavra ‘novidade’ tinha perdido seu sentido. [...] Pode-se dar como exemplo o uso imoderado que nossos concidadãos faziam das profecias. Na primavera, com efeito, esperara-se, de um momento para outro, o fim da doença, e ninguém pensava em pedir aos outros detalhes sobre a duração da epidemia, já que todos estavam persuadidos de que ela não duraria para sempre. Mas, à medida que os dias passavam, começaram a recear que essa desgraça não tivesse realmente fim e, ao mesmo tempo, o término da doença tornou-se o objeto de todas as esperanças11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(153).

Com as ficções, é possível produzir o embaralhamento das legitimidades, das identidades, das atividades e dos espaços, dando a pensar uma reconfiguração do comum, uma repartilha do social. A arte é política mesmo antes de qualquer tentativa nesse sentido, mesmo quando pretende se afastar radicalmente de qualquer intervenção social, de qualquer compromisso, qualquer aliança1717 Rancière J. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental/Editora 34; 2009..

“De um dia para o outro, na verdade, o número dos mortos não aumentava”11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(163). Em agosto de 2020, o número de novos casos teve relativa estabilização em âmbito nacional, de acordo com Lacerda1919 Lacerda N. Por que a ideia de estabilização da covid no Brasil é uma realidade distante? País continua com infecções fora de controle, alcança recordes mundiais em 24 horas e se aproxima de 100 mil mortes. Brasil de Fato. 2020 mar 1. [acesso em 17 fev 2021]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/08/01/por-que-a-ideia-de-estabilizacao-da-covid-no-brasil-e-uma-realidade-distante
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. No entanto, a estabilização ocorreu em patamares considerados muito acima do nível já considerado muito alto. Ainda assim, parecia que a pandemia

tinha instalado confortavelmente no seu paroxismo e incorporava aos seus assassinatos diários a precisão e a regularidade de um bom funcionário. Em princípio, segundo a opinião de pessoas competentes, era bom sinal11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(163).

O tempo cronológico passou, é 2021. Carnaval. A vacinação para o Sars-CoV-2 teve início no dia 18 de janeiro. O Ministério da Saúde confirmou a entrega de 6 milhões de doses da vacina para todos os estados e o Distrito Federal. A vacinação teve início pelos grupos prioritários: trabalhadores de saúde, pessoas institucionalizadas que residem em asilo ou com deficiência e população indígena aldeada2020 Cristaldo HC, Brandão M. Vacinação contra a covid-19 começa em todo o país. Agência Brasil. 2021 jan 19. [acesso em 2021 fev 18]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/vacinacao-contra-covid-19-come%C3%A7a-em-todo-o-pais
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Toda a cidade lançou-se às ruas, para festejar esse minuto em que acabava o tempo dos sofrimentos e ainda não começara o tempo do esquecimento [...]. Os lugares de prazer transbordavam e os cafés, sem se preocuparem com o futuro, distribuíam seus últimos álcoois11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(205).

É notável que as respostas mais conservadoras dadas à pandemia - que vão desde o negacionismo até o clamor cego pelo denominado ‘novo normal’ - não se sustentam22 Prado GAS, Mansano RGV. “Nada será como antes”... Provocações clínico-políticas para um por vir. Rev Espaço Acadêmic. 2021 [acesso em 2021 fev 17]; 20(esp1):15-27. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/57079/751375151608
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. Para tanto,

[...] nega-se tranquilamente, contra toda a evidência, o conhecimento desse mundo insensato em que o assassinato de um homem é tão cotidiano quanto o das moscas [...]. negavam, enfim, que tivéssemos sido esse povo atordoado de que todos os dias uma parte, empilhada na boca de um forno, se evaporava em fumaça gordurosa, enquanto a outra, carregada com as cadeias da impotência e do medo, esperava sua vez11 Camus A. A peste. São Paulo: Círculo do Livro; 1983.(205).

Conclusões

A ética ficcional, em meio à história contada, é empregada como forma de compreensão-produção do mundo, de modo que há a radicalização da postura de ficcionalização como um modo ético-estético-político de composição do acontecimento pandêmico.

Neste trabalho, a ficção aparece como instrumento de rupturas à dicotomização do discurso negacionista e científico. Apesar de, nessa dicotomização, entender que o discurso científico produz ações menos nocivas no que tange à proteção à vida, também se entende que tal dicotomização dos discursos não é suficiente para dar respostas ao que acomete.

A ação de ficcionalizar ocorre neste artigo com a estratégica de bricolagem como criações estéticas para possibilitar um campo sensível às narrativas expostas pelas reportagens. Desse modo, servem para dar corpo aos conceitos e discussões que trabalhamos durante a escrita.

De certa maneira, aposta-se que os textos literários oferecem problematizações sobre a questão epidemiológica no contexto que passamos agora, e podem introduzir discussões interessantes sobre o que somos, como nos constituímos como subjetividades, o que fazemos de nossa saúde. A literatura para além da medicina, da economia e das estatísticas nos coloca reflexões para pensar nas subjetividades em tempos de crise.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2021
  • Aceito
    01 Fev 2022
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