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O ensino de enfermagem em tempos de Covid-19 na América Latina: experiências do Brasil, Chile e Colômbia

O ensino de enfermagem nos países da América Latina e ao redor do mundo, durante a pandemia, teve que se reinventar. A área de conhecimento da saúde, de um modo geral, teve que se adaptar à realidade imposta pela Sars-CoV-2, ou seja, a prática do distanciamento social e as aulas remotas preconizadas garantiram a prevenção desta doença em estudantes e seus familiares. Com isso, surgiu a necessidade de uma abordagem inovadora para o desenvolvimento de currículos e de novos projetos de aprendizagem, obrigando-nos a fazer uma ressignificação do ensino.

Quando as condições educacionais mudaram, lançaram-se desafios pedagógicos e a oportunidade para os professores adaptarem-se rapidamente a essas mudanças, a fim de se facilitar a aprendizagem; contudo, esse movimento tencionou a inovação pedagógica e tecnológica frente às demandas antes impensadas11. Riegel F, Martini JG, Bresolin P, Mohallem AGC, Nes AAG. Developing critical thinking in nursing education: a challenge in times of pandemic Covid-19. Esc Anna Nery. 2021;25(spe):e20200476. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0476
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. Nesse cenário adverso, houve também a preocupação de que não é possível formar estudantes de enfermagem sem atividades práticas e essa foi uma problemática enfrentada pelas instituições de ensino do mundo todo.

As mudanças emergenciais nos modelos de ensino exigiram dos professores e alunos a utilização massiva de métodos de ensino à distância, que, em muitos momentos, foram criticados pelo seu baixo alcance, especialmente, no sistema público de ensino, dadas as dificuldades de acesso pelos estudantes. Mesmo em realidades de serviços privados, evidenciando o que é referido por alguns autores como “o enorme desafio da equidade educacional que existe mundialmente”, percebe-se a desvalorização do estudante em relação ao aproveitamento do ensino remoto e à urgência do ensino presencial, pautado na interação humana. Em razão disso, é importante refletir sobre o impacto da pandemia na educação em enfermagem e como proporcionar uma base para novos modelos de aprendizagem com suporte de tecnologias, objetivando desenvolver o pensamento crítico de modo interativo e com aproveitamento superior ao que estamos verificando na prática22. Villafuerte P. Educación en tiempos de pandemia: COVID-19 y equidad en el aprendizaje [Internet]. Observatorio, Instituto para el Futuro de la Educación; 2020 [citado 2021 jul 5]. Disponible en: https://observatorio.tec.mx/edu-news/educacion-en-tiempos-de-pandemia-covid19
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As instituições de ensino superior foram exigidas a modificar os dispositivos de estudo presencial para remoto. O uso de simulação tridimensional, palestras on-line assíncronas e síncronas, atividades e questionários, em um sistema de gerenciamento de aprendizagem, são exemplos de alternativas que oferecem flexibilidade como métodos de ensino33. Bingen HM, Steindal SA, Krumsvik R, Tveit B. Nursing students studying physiology within a flipped classroom, self-regulation and off-campus activities. Nurse Educ Pract. 2019;35:55-62. doi: https://doi.org/10.1016/j.nepr.2019.01.004
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Os programas de enfermagem estão orientados à educação para o cuidado com uma abordagem biopsicossocial, cultural e espiritual, em sua maioria atrelada a um paradigma de reciprocidade, que deve continuar a se fortalecer a partir do diálogo entre professores, estratégias pedagógicas e uma compreensão mais integral do cuidado de enfermagem44. Vargas-Escobar LM, Becerra Pabón AC. La enseñanza del cuidado de enfermería en una Facultad de Enfermería en Bogotá. Rev Cuarzo. 2020 [citado 2021 jul 2];25(2):8-20. Disponible en: https://revistas.juanncorpas.edu.co/index.php/cuarzo/article/view/424
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. Nesse sentido, torna-se este um desafio ainda maior para o ensino, a ser fortalecido a partir do alcance das competências disciplinares da enfermagem.

A partir dos seus componentes teóricos, as escolas de enfermagem latino-americanas tiveram que superar várias barreiras e descobriram algumas estratégias que facilitam o aprendizado, exigindo-se da enfermagem pensar em currículos flexíveis e parcerias internacionais com inovação e educação de ponta. Na Colômbia, generalizou-se o uso de plataformas digitais que tornam a aprendizagem uma oportunidade inestimável, como é o caso das aulas síncronas e assíncronas, com a implementação da estratégia Collaborative Online International Learning (COIL).

Essa estratégia, que vem sendo implementada no mundo há mais de duas décadas - e que para a Colômbia começa na enfermagem com a Fundação Universitária Juan N Corpas e a Escola Superior d'Infermeria del Mar na Espanha - possibilitou que se gerisse desde o tema do cuidado de enfermagem à criança até o trabalho com temas que integrem saberes culturais, sociais, políticos e de saúde, mas com sentido social. Um exemplo dessa abordagem deu-se em atividade vinculada ao cuidado à criança cardiopata, transformando as tarefas em desafios que as equipes de dois contextos programáticos distintos, nos quais se pôde demonstrar, com didática inovadora, novo modelo de aprendizagem que levasse ao desenvolvimento de competências específicas. Nesse formato, o desempenho dos alunos COIL é esperado com estudo e comprovação de que os resultados devem corresponder ao trabalho realizado por Appiah-Kubi y Annan, no qual um desempenho significativo foi observado e o trabalho do projeto melhorado com a estratégia COIL55. Appiah-Kubi P, Annan E. A review of a collaborative online international learning. Int J Eng Ped. 2020;10(1):109-24. doi: https://doi.org/10.3991/ijep.v10i1.11678
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Nesse sentido, a pandemia permitiu o desenvolvimento de habilidades interculturais, trabalho colaborativo, uso de tecnologia e produtos inovadores, que antes pareciam um pouco distantes e caros. Surge, pois, uma oportunidade para os docentes de enfermagem tirarem partido dos acordos de ensino de serviço e dos seus gabinetes de internacionalização para activar acordos com outros países, profissões e outros contextos e os convidamos a conhecer Red Latinoamericana COIL55. Appiah-Kubi P, Annan E. A review of a collaborative online international learning. Int J Eng Ped. 2020;10(1):109-24. doi: https://doi.org/10.3991/ijep.v10i1.11678
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A prática da enfermagem é um pilar fundamental no processo ensino-aprendizagem, porém, em muitos países da América Latina, havia temores, desolação, falta de proteção e riscos de retorno a hospitais, clínicas e centros de atenção primária. Poucas instituições no Chile permitiam inicialmente a entrada apenas para alunos do último ano que pudessem continuar com experiências práticas sob estritas medidas de proteção e aderindo aos protocolos das instituições para a gestão do COVID-19, mas os alunos dos menores níveis de formação não tiveram o mesmo desfecho; aqueles que entraram em 2020, na maior parte do ano, nunca tiveram aulas em salas de aula das instituições de formação e recentemente estão sendo integrados, criando uma lacuna relevante na aprendizagem prática em nosso país. Por outro lado, também na América Latina, algumas escolas suspenderam definitivamente as atividades práticas com alunos e professores.

A Teleconsulta, o tele-aconselhamento e o trabalho remoto surgiram como estratégias que conseguiram mitigar a falta de aprendizagem direta do aluno. No caso da Escola de Enfermagem da Universidade do Chile, usou-se a tele-enfermagem através de um sistema de informação abrangente chamado Rayen, criado para a gestão clínica e administrativa de centros de atenção primária à saúde, conseguindo que os alunos desta casa de estudo, em conjunto com os seus professores, abordassem os centros de saúde e a continuidade dos cuidados por meio do acompanhamento das pessoas que estiveram ausentes devido à pandemia. Esse sistema também tem sido utilizado para o atendimento de doentes com dependências graves. Estratégia que antes da pandemia não era aplicada66. Rayen Salud [Internet]. Santiago, Chile: Rayen; 2019c [citado 2021 jul 2]. Ficha Clínica Electrónica Rayen. Disponible en: https://www.rayensalud.com/productos/ficha-clnica-electrnica-rayen
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Nesse sentido, a Universidade do Chile tem compreendido esta pandemia como uma oportunidade de conhecê-la e aplicar os conhecimentos que contribuem com as competências para o uso adequado de nosso método científico, que é o Processo de Cuidar em Enfermagem, proporcionando e aproximando as pessoas de sistemas de saúde, estabelecendo-se, em primeira instância, na área da Atenção Básica à Saúde, com a inclusão de alunos acompanhados por seu professor no programa de Rastreabilidade, controle e acompanhamento epidemiológico, acompanhamento de casos e contatos de pacientes com COVID-19. A partir da realização de acompanhamento domiciliar telefônico, o aprendizado esperado era a aplicação correta da avaliação, escuta ativa, gestão do cuidado e, sobretudo, a continuidade do cuidado, integrando o uso de evidências científicas e diretrizes de boas práticas clínicas orientadas à Relação Terapêutica, Intervenção na Crise e liderança.

Embora esta pandemia tenha limitado algum aprendizado na Universidade do Chile, os estudantes de enfermagem puderam ter uma aprendizagem experiencial do que é a emergência de saúde global participando ativamente do processo de vacinação contra COVID-19 ou Influenza, na coleta de amostras por PCR e, conforme mencionado, participar da rastreabilidade.

Em meio a uma pandemia do século XXI, o melhor amigo dos alunos e professores, de início, talvez fosse a tecnologia; mas, com o tempo, é preciso avaliar esse conhecimento, essas estratégias e também aspectos de ordem de saúde ergonômica e mental, bem como de vida social e o suporte emocional de docentes e discentes, suprindo as práticas extraclasse, os horários estendidos, a conectividade antes e durante esta pandemia77. Melendez Chávez S. La importancia de la práctica en la formación de enfermería en tiempos de Covid-19: experiencias de alumnos. Dilemas Contemp Educ Política Valores. 2020;8(spe5):4. doi: https://doi.org/10.46377/dilemas.v8i.2479
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Como no processo de ensino o aluno é o centro, os professores deveriam ser melhor capacitados para a gestão de tecnologia e de projetos educacionais inovadores, que lhes permitissem ter práticas de enfermagem contextualizadas e de qualidade; também se deve somar o trabalho de monitorar os alunos nos espaços que abrem o confinamento e a busca de estratégias de ensino por meio de simulação virtual77. Melendez Chávez S. La importancia de la práctica en la formación de enfermería en tiempos de Covid-19: experiencias de alumnos. Dilemas Contemp Educ Política Valores. 2020;8(spe5):4. doi: https://doi.org/10.46377/dilemas.v8i.2479
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No transcorrer das práticas de ensino em enfermagem durante o período de ensino remoto emergencial (ERE), identificou- se que as atividades práticas obrigatórias exigiam modelos de orientação apoiados por tecnologia, permitindo que os professores realizassem feedbacks contínuos (aconselhando, acompanhado e avaliando) os estudantes de enfermagem remotamente. Esses modelos de orientação geralmente incluem aplicativos no quais os estudantes devem preencher relatórios eletrônicos diários antes de iniciar e após terminar o dia de prática clínica.

Os dados são armazenados em um servidor e disponibilizados para avaliação. Ao preencher os relatórios eletrônicos antes de iniciar as atividades no dia na prática, os estudantes aumentam a consciência sobre os objetivos de aprendizagem e se concentram na realização das suas atividades diárias. Os aplicativos apoiados por tecnologias foram amplamente utilizados ao redor do mundo; porém, no Brasil, percebeu-se a corrida por parte das instituições formadoras e docentes pelo desenvolvimento desses dispositivos que, anteriormente à pandemia, eram subutilizados e ainda pouco explorados como estratégia para qualificar o ensino na enfermagem e saúde11. Riegel F, Martini JG, Bresolin P, Mohallem AGC, Nes AAG. Developing critical thinking in nursing education: a challenge in times of pandemic Covid-19. Esc Anna Nery. 2021;25(spe):e20200476. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0476
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Em meio à pandemia de Covid-19, diferentes formatos de ensino tiveram que ser implantados para garantir uma formação sólida e de qualidade; porém, sabe-se que nada substitui o professor presencialmente, mediando a construção coletiva do conhecimento em enfermagem. É preciso saber como essa nova forma de ensinar e aprender tem impactado alunos e professores, para, dessa forma, podermos rever estratégias de curto e futuro prazo; e olhar para o cenário pós-pandêmico na formação dos profissionais de Enfermagem.

Em um estudo realizado recentemente com 2.649 alunos pertencentes a 67 instituições de formação universitária públicas e privadas do Chile, com o objetivo de compreender o impacto do COVID-19 na vida dos alunos do ensino superior, verificou-se que 72% declararam que há uma diminuição no relacionamento com os acadêmicos e 74% afirmam que a maior dificuldade para seu aprendizado não são as técnicas, mas sim manter o ritmo de estudo; e 66% têm problemas com a gestão do tempo pessoal. Isso nos convida a pensar em facilitar a aprendizagem autônoma por meio de um sistema de aprendizagem adaptável, conforme mencionado pelo Fórum Econômico Mundial88. Seguimos Virtual. #PulsoEstudiantil: impacto del COVID-19 en la vida de las y los estudiantes chilenos [Internet]. 2020 [citado 2021 jul 2]. Disponible en: https://seguimosvirtual.com/comunicadopulso/
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. Outra constatação que surpreende os pesquisadores do estudo chileno é que 23% dos alunos estariam dispostos a fazer cursos virtuais de outras universidades em cooperação com outras instituições, abrindo um novo espaço pré-pandêmico inexplorado99. Wilichowski T, Cobo C. Cómo la pandemia podría cambiar la forma de enseñar a nuestros hijos [Internet]. World Economic Forum; 2021 [citado 2021 jul 2]. Disponible en: https://es.weforum.org/agenda/2021/01/como-la-pandemia-podria-cambiar-la-forma-de-ensenar-a-nuestros-hijos/
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O Fórum Econômico Mundial propõe que a pandemia é uma oportunidade para reforçar a capacidade dos alunos em face de crises como a atual em tomar decisões informadas, resolução criativa de problemas e, acima de tudo, mencionar adaptabilidade.

Como formadores de alto nível, temos esse compromisso, entregando profissionais capazes de prestar um atendimento humano, seguro e de qualidade à sociedade, transformando realidades, com vistas à melhoria das condições de saúde e de vida da população. Hoje, mais do que antes, o ensino presencial prova seu valor.

Nesse caso, a gestão estratégica, tática e operacional dos programas educacionais em seus projetos educacionais deve considerar, para futuras situações de saúde pública, como pandemias, planos de contingência que permitam responder ao cumprimento das competências do futuro profissional de enfermagem para um mundo globalizado.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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