ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Coinfecção por SARS-CoV-2 e S. aureus em pacientes internados em UTI pediátrica de hospital federal no Rio de Janeiro: relato de dois casos clínicos

SARS-CoV-2 and S. aureus coinfection in patients admitted to a pediatric ICU of a federal hospital in Rio de Janeiro: report of two clinical cases

RESUMO

A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 no ano de 2020 assolou o mundo desde quadros leves a fatais. Em nossa unidade de terapia intensiva pediátrica recebemos dois pacientes com síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e coinfecção por Staphylococcus aureus sensível à meticilina (MSSA). O objetivo deste artigo é discutir sobre a associação do vírus SARS-CoV-2 com o S. aureus sensível à meticilina. Estes pacientes evoluíram para SRAG, acompanhados de trombose venosa profunda (TVP) e dependência de cuidados intensivos. Foram testados para SARS-CoV-2 por PCR viral e hemocultura de sangue periférico para S. aureus (MSSA), necessitaram de ventilação mecânica invasiva, uso de aminas vasoativas, antibioticoterapia de amplo espectro e anticoagulação terapêutica. O coronavírus é um RNA vírus responsável por quadros respiratórios e gastrointestinais, pode ser transmitido por gotículas, via fecal oral, fômites e superfícies contaminadas. O S. aureus é uma bactéria responsável pelas infeções piogênicas de pele e tecidos moles, podendo evoluir com disseminação hematogênica. A incidência de trombose venosa profunda é maior em pacientes graves, imóveis e/ou restritos no leito, mesmo que em uso de anticoagulante profilático. Concluímos que a infecção estafilocócica contribuiu para a piora destes pacientes, já que na população pediátrica a COVID-19 evolui de forma branda na maioria dos quadros clínicos. Esses agentes infecciosos estão relacionados a sintomas respiratórios graves com síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS), sepse, SRAG, choque e disfunções orgânicas.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Staphylococcus aureus, Sepse, Trombose Venosa, Pediatria.

ABSTRACT

The pandemic caused by the SARS-CoV-2 virus in 2020 has plagued the world from mild to fatal. In our pediatric intensive care unit, we received two patients with severe acute respiratory syndrome (SARS) and methicillin-sensitive Staphylococcus aureus (MSSA) co-infection. The purpose of this article is to discuss the association of the SARS-CoV-2 virus with methicillin-sensitive S. aureus. These patients progressed to SARS, accompanied by deep venous thrombosis (DVT) and dependence on intensive care. They were tested for SARS-CoV-2 by viral PCR and blood culture of peripheral blood for S. aureus (MSSA), required invasive mechanical ventilation, use of vasoactive amines, broad-spectrum antibiotic therapy and therapeutic anticoagulation. Coronavirus is an RNA virus responsible for respiratory and gastrointestinal conditions, and can be transmitted by droplets, via the fecal route, fomites and contaminated surfaces. S. aureus is a bacterium responsible for pyogenic infections of the skin and soft tissues, and may evolve with hematogenous dissemination. The incidence of deep venous thrombosis is higher in critically ill patients, immobile and/or restricted in bed, even when using prophylactic anticoagulants. We conclude that staphylococcal infection contributed to the worsening of these patients, since in the pediatric population COVID-19 evolves in a mild way in most clinical conditions. These infectious agents are related to severe respiratory symptoms with systemic inflammatory response syndrome (SIRS), sepsis, SARS, shock and organ dysfunctions.

Keywords: Coronavirus Infections, Staphylococcus aureus, Sepsis, Venous Thrombosis, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

No ano de 2020, o país foi acometido pela pandemia da COVID-19, doença ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2. A maioria dos pacientes pediátricos apresenta quadros mais brandos da doença, porém não estão isentos de maior gravidade1. Em nossa UTI pediátrica foram recebidos dois pacientes gravemente enfermos apresentando coinfecção entre SARS-CoV-2 e Staphylococcus aureus sensível à meticilina (MSSA).


RELATO DE CASO

Caso 1: Paciente masculino, 12 anos, previamente hígido, transferido de outra unidade hospitalar com suspeita de estafilococcia. Relato prévio de trauma em membro inferior direito durante a realização de atividade física, apresentando edema importante e restrição à deambulação, diagnosticado com trombose venosa profunda (TVP), confirmada por exame de imagem (ultrassonografia), em veia ilíaca e femoral direita, sendo necessária terapia com anticoagulação plena, evoluiu com pneumonia associada a moderado derrame pleural bilateral, sendo submetido à drenagem torácica. Durante a internação foi confirmada a presença de SARS-CoV-2 por PCR viral e S. aureus em duas hemoculturas de sangue periférico. Apresentou síndrome respiratória aguda grave (SRAG), evoluiu com choque séptico refratário, necessitando de ventilação mecânica invasiva, posteriormente foi colocado em posição prona, aminas vasoativas, terapia de substituição renal, além de antibioticoterapia de amplo espectro. Após cinco dias de internação hospitalar evoluiu para óbito.

Caso 2: Paciente feminino, 12 anos, previamente hígida, apresentou quadro de tosse, hemoptise, anosmia e ageusia. Transferida de outra unidade hospitalar com diagnóstico de artrite séptica de quadril esquerdo com edema e paresia de membros inferiores, TVP e pneumonia com derrame pleural moderado à direita, com indicação de drenagem torácica e artrocentese de quadril. No decorrer da internação foi confirmada a presença de SARS-CoV-2 por PCR viral e MSSA em cultura de líquido sinovial e hemocultura de sangue periférico. Assim como o paciente anterior, apresentou SRAG com necessidade de ventilação mecânica invasiva, evoluiu com choque séptico refratário ao uso de aminas vasoativas. Neste caso não houve necessidade de hemodiálise e o desfecho foi favorável. Paciente recebeu alta hospitalar após 30 dias de internação.


DISCUSSÃO

A coinfecção entre SARS-CoV-2 e outros patógenos virais, como influenza e parainfluenza, já foi relatada em diversos estudos na população pediátrica, no entanto, existem poucos dados na literatura que descrevam sua associação com outros agentes infecciosos2.

O coronavírus é um RNA vírus da família Coronaviridae, altamente patogênico e responsável, principalmente, por síndromes respiratórias e gastrointestinais. Possui elevado índice de contágio e pode ser transmitido por gotículas, via fecal-oral ou através de fômites e superfícies contaminadas3.

De acordo com Ludvigsson4, em revisão sistêmica da literatura, no período de 1° de janeiro a 18 de março de 2020, os pacientes pediátricos foram responsáveis por cerca de 1% a 5% dos casos de coronavírus e destes, 55% pertenciam a faixa etária entre 10 e 15 anos. Embora a maioria dos casos da COVID-19 descritos em crianças se apresente de forma assintomática ou branda, uma pequena parcela necessita de hospitalização e destes, uma minoria requer cuidados intensivos.

O S. aureus é uma bactéria gram-positiva, aeróbia e colonizadora da pele humana. É a principal causa de infecções piogênicas de pele e tecidos moles em pediatria e pode causar complicações graves em qualquer órgão por disseminação hematogênica. O desenvolvimento da infecção estafilocócica depende da resistência do hospedeiro e da virulência da bactéria5,6. Os principais sítios de infecção são ossos, articulações, pulmões, pele e tecidos moles7.

Segundo Vanderkooi et al.8 a incidência de bacteremia por S. aureus na pediatria é de 4 a 20 por 100.000 casos, variando de acordo com a região estudada. Entre os anos 2000 e 2010 houve um aumento dos casos devido ao surgimento de S. aureus resistente à metacilina (MRSA). E entre crianças hospitalizadas, a infecção por S. aureus varia de 1,5 a 3,5 por 1.000 internações, sendo a taxa de mortalidade estimada em 4% a 9%.

A prevalência de TVP em pediatria é cerca de 80 a 114 vezes menor que nos adultos, ou seja, varia de 0,07 a 0,14 por 10.000 pacientes, enquanto nos adultos alcança taxas de 5,6 a 16 por 10.000 pacientes.9 Sua incidência é maior em indivíduos gravemente enfermos, imóveis e/ou restritos ao leito, mesmo que em uso de anticoagulação profilática. A formação de coágulos pode ser justificada pela tríade de Virchow: lesão endotelial pela invasão direta de células, estase sanguínea devido à imobilidade e estado de hipercoagulabilidade, sendo este último, amplamente correlacionado à COVID-19.10

Relatos da literatura demonstram que a maioria dos casos da COVID-19 são brandos, dessa forma poderíamos justificar a gravidade da doença apenas pela infecção estafilocócica. Ainda assim, a coinfecção entre SARS-CoV-2 e S. aureus certamente contribuiu para a piora do estado inflamatório e consequentemente a gravidade dos pacientes.


CONCLUSÃO

O objetivo com esse relato de caso é destacar que os pacientes possuíam a mesma faixa etária e não tinham comorbidades, portanto, não pertenciam aos grupos de risco relacionados ao coronavírus, porém apresentaram coinfecção entre SARS-CoV-2 e S. Aureus e evoluíram de forma grave com desfecho variável.

Os dois microrganismos, isoladamente, estão relacionados a sintomas respiratórios graves e evolução para síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS), sepse, SRAG, choque e disfunções orgânicas. O S. aureus há muito se faz presente dentre as hipóteses diagnósticas na pediatria, enquanto o coronavírus provavelmente se tornará endêmico em nosso meio, se tornando assim, tão importante quanto.

Estes pacientes admitidos no serviço de terapia intensiva pediátrica, receberam anticoagulação em dose terapêutica, visto que apresentavam quadro clínico prévio compatível com TVP. Estudos observacionais recentes correlacionam estado de hipercoagulabilidade à forma grave da COVID-19, onde coagulação intravascular disseminada (CIVD) parece estar presente na maioria dos casos fatais.11

A variedade de sinais e sintomas e a falta de informações científicas suficientes, dificultam o diagnóstico e manejo clínico da COVID-19, visto que não existem protocolos. No contexto de pacientes internados em unidades de terapia intensiva pediátrica, devemos suspeitar da coinfecção com o SARS-CoV-2 sempre que os mesmos apresentarem quadro respiratório ou até mesmo de acometimento multissistêmico, e principalmente quando caracterizar-se a SRAG, mesmo que exista outro diagnóstico suspeito ou até mesmo confirmado.

Em suma, podemos dizer que novos estudos ainda são necessários para esclarecer o real papel da coinfecção do SARS-CoV-2 com os mais diversos patógenos em pediatria e as consequências dessa associação na evolução e gravidade dos infectados.


REFERÊNCIAS

1. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento Científico de Terapia Intensiva. COVID-19: protocolo de diagnóstico e tratamento em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica. Rio de Janeiro (RJ): SBP; 2020.

2. Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB. Nelson - Tratado de Pediatria. 20ª Edição. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017.

3. Sequeira AI, Branco M, Teles A, Costa M, Sousa B, Ramalho H. Trombose venosa profunda em idade pediátrica: estudo retrospectivo de 10 anos. Nascer e Crescer. 2016 Set;25(3):147-53.

4. Tuckuviene R, Christensen AL, Helgestad J, Johnsen SP, Kristensen SR. Pediatric venous and arterial noncerebral thromboembolism in Denmark: a nationwide population-based study. J Pediatr. 2011 Out;159(4):663-9.

5. Van Ommen CH, Heijboer H, Büller HR, Hirasing RA, Heijmans HS, Peters M. Venous thromboembolism in childhood: a prospective two-year registry in The Netherlands. J Pediatr. 2001 Nov;139(5):676-81.

6. Vanderkooi OG, Gregson DB, Kellner JD, Laupland KB. Staphylococcus aureus bloodstream infections in children: a population-based assessment. Paediatr Child Health. 2011 Mai;16(5):276-80.

7. Ludvigsson JF. Systematic review of COVID-19 in children shows milder cases and a better prognosis than adults. Acta Paediatr. 2020 Jun;109(6):1088-95.

8. Son MBF, Friedman K. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): multisystem inflammatory syndrome in children. UpToDate [Internet]. 2020 Jun; [acesso em 2020 Jun 10]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/coronavirus-disease-2019-covid-19-multisystem-inflammatory-syndrome-in-children#H4291751271

9. Deville JG, Song E, Ouellette CP. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): clinical manifestations and diagnosis in children. UpToDate [Internet]. 2020 Jun; [acesso em 2020 Jun 06]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/coronavirus-disease-2019-covid-19-clinical-manifestations-and-diagnosis-in-children/print

10. Fowler Junior VG, Sexton DJ, Kaplan SL. Staphylococcus aureus bacteremia in children: epidemiology and clinical features. UpToDate [Internet]. 2020 Jun; [acesso em 2020 Jun 12]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/staphylococcus-aureus-bacteremia-in-children-epidemiology-and-clinical-features#H18

11. Kaplan SL. Staphylococcus aureus in children: overview of treatment of invasive infections. UpToDate [Internet]. 2020 Abr; [acesso em 2020 Jun 04]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/staphylococcus-aureus-in-children-overview-of-treatment-of-invasive-infections#H27










1. Hospital Federal dos Servidores do Estado, Residente de Terapia Intensiva Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Federal dos Servidores do Estado, Intensivista Pediátrica - Rio de janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
3. Hospital Federal dos Servidores do Estado, Chefe do Serviço de Terapia intensiva Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:
Victor Rocha Ribeiro de Souza
Hospital Federal dos Servidores do Estado
Rua Sacadura Cabral, nº 178, Saúde
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 20221-161
E-mail: victor_rrs@hotmail.com

Data de Submissão: 29/06/2020
Data de Aprovação: 30/06/2020