Resumo
O uso e prescrição de plantas medicinais e fitoterápicos na Estratégia Saúde da Família enfrenta novos e velhos desafios no contexto pós-pandemia de Covid-19. No mundo, o modelo biomédico se fortaleceu como principal paradigma orientador do cuidado. No Brasil, o aumento da pobreza e o desinvestimento em políticas de saúde se somaram ao fenômeno da desinformação. O artigo discute como a oferta de fitoterapia e outras práticas integrativas e complementares foram afetadas nesse contexto a partir de dados de duas pesquisas anteriores à pandemia. A primeira, realizada com profissionais de saúde no município do Rio de Janeiro, identifica os conflitos entre categorias profissionais no uso e prescrição. A segunda, uma abordagem etnográfica, descreve como grupos populares têm reivindicado o reconhecimento de saberes sobre plantas medicinais como patrimônio cultural imaterial. A fim de evitar a categorização dessas práticas como desinformação em saúde, é necessário compreender o uso tradicional em contextos locais.
Palavras-chave:
plantas medicinais; desinformação em saúde; estratégia saúde da família; pós-pandemia de Covid-19
Abstract
The use and prescription of medicinal plants and herbal medicines within the Family Health Strategy faces new and old challenges in the post-pandemic COVID-19 context. Globally, the biomedical model has strengthened as the main guiding paradigm of care. In Brazil, the increase in poverty and the disinvestment in health policies have compounded the phenomenon of misinformation. This article discusses how the availability of herbal medicine and other integrative and complementary practices have been affected in this context, based on data from two studies conducted prior to the pandemic. The first, carried out with healthcare professionals in the municipality of Rio de Janeiro, identifies conflicts between professional categories in the use and prescription of these treatments. The second, an ethnographic approach, describes how popular groups have been claiming the recognition of knowledge about medicinal plants as intangible cultural heritage. In order to avoid categorizing these practices as health misinformation, it is necessary to understand their traditional use in local contexts.
Keywords:
medicinal plants; health misinformation; family health strategy; post-COVID-19 pandemic
De janeiro de 2020 a maio de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência em saúde pública devido à Covid-19. Nesse período, a pandemia causada pelo novo coronavírus impactou a maneira de cuidar e de ser cuidado. Colocou à prova os sistemas de saúde, de proteção social e demandou ações conjuntas da sociedade civil, governos, organismos internacionais e empresas privadas.
No cenário pós-pandêmico, entre os muitos aspectos que podem ser investigados em seus desdobramentos na vida social, política e econômica, proponho um olhar sobre os novos e velhos desafios que os saberes populares sobre uso de plantas medicinais e fitoterápicos enfrentam para obter reconhecimento na Estratégia Saúde da Família (ESF), o principal modelo estruturante da atenção primária à saúde (APS) no Brasil.
Parte desses desafios foram impostos para todas as políticas de saúde, alguns semelhantes aos experimentados por outros países desenvolvidos e em desenvolvimento (como o aumento do desemprego, da pobreza, da insegurança alimentar, do afastamento das mulheres do mercado de trabalho), outros, mais específicos, relativos ao cenário de desinvestimento em políticas públicas e ao aumento da desinformação em saúde. A desinformação é um fenômeno anterior à pandemia de Covid-19 que alcançou escala massiva e se tornou um desafio global na saúde a partir disseminação de falsas informações sobre as vacinas. Pode ser definida como “informação falsa, imprecisa ou enganosa que é comunicada independentemente da intenção de enganar” (Oliveira et al., 2024). Na área da saúde, as ações de desinformação têm o objetivo de desacreditar políticas de saúde de governos ou de autoridades sanitárias como a OMS e também se caracterizam por conteúdos sobre falsos medicamentos, tratamentos milagrosos e receitas para emagrecer (como chás ou pílulas compostas por misturas de plantas que prometem perda de peso, perigosos por provocarem desidratação e intoxicação graves, por vezes, fatais), que podem ser originados em crenças e visões de mundo. É nesse aspecto que reside o risco de o combate à desinformação, com a ênfase em evidências científicas de caráter exclusivamente biomédico, tornar-se mais um desafio para o uso de plantas medicinais.
A pandemia de Covid-19 também tornou ainda mais evidente a hegemonia do modelo biomédico, um velho desafio. Conforme afirma E. Menéndez (2021), todas as ações de prevenção e cuidado foram orientadas pelo modelo biomédico, até mesmo em países com medicinais tradicionais bem estruturadas, como a Índia, a China e o Japão. As diversas medicinas tradicionais existentes no mundo, assim como as latino-americanas, não foram destacadas como formas de atenção e prevenção do novo padecimento (Menéndez, 2021), nem mesmo quando ainda não havia vacinas. Isso não significa que os saberes e medicinas tradicionais não foram mobilizados nos cuidados por sujeitos e microgrupos de diferentes setores sociais.
Observar e analisar os desafios que se impõem ao uso de plantas medicinais e fitoterapia no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de uma abordagem baseada em direitos humanos respaldada na Constituição de 1988, implica problematizar de que maneira as políticas públicas estão em conformidade com o princípio da integralidade,1 assegurando, ou não, a cidadania e o reconhecimento dos grupos formadores da sociedade brasileira. Nesse sentido, proponho refletir sobre esses desafios com base em duas situações de pesquisa anteriores à pandemia de Covid-19. A primeira é uma investigação com os profissionais de saúde da Estratégia Saúde da Família do município do Rio de Janeiro que buscava identificar o uso e a prescrição a partir de uma análise temática de entrevistas semiestruturadas, cujos resultados mostram hierarquias e conflitos entre diferentes categorias de profissionais de saúde quando se trata de uso de plantas medicinais e fitoterápicos. A segunda aponta para a compreensão sobre como esses saberes são mobilizados por quem os detém, em diferentes estratégias institucionais e individuais, em uma etnografia a cujo objetivo era investigar o “resgate” e a transmissão de saberes tradicionais ao acessar políticas culturais e de meio ambiente.
A reflexão sobre os novos desafios aos cuidados com plantas medicinais no SUS é parte de um processo de investigação que teve início fora do campo da saúde, com etnografias realizadas com grupos populares, no Rio de Janeiro (nos períodos 2005-2007 e 2009-2103 e 2014-2108), e trabalhadoras rurais do agreste paraibano (2009-2103).2 Ambas as experiências promoviam ações de “resgate de plantas medicinais” para finalidades distintas de mobilização social e reivindicavam o acesso a políticas públicas.3 A chegada no SUS foi motivada pela atuação como docente em cursos de formação superior de profissionais de saúde e só ocorreu a partir da expansão da APS carioca.
Tratar de políticas públicas na atenção primária à saúde torna inevitável a abordagem das dimensões econômica e política que atravessam o tema. No Brasil, o (não) enfrentamento da pandemia de Covid-19, que provocou cerca de 700 mil mortes, se notabilizou pelas ações de um governo negacionista que não só se omitiu do papel de autoridade sanitária nacional, como propagou informações falsas e tratamentos comprovadamente ineficazes. Outra característica foi o desmonte dos serviços públicos, processo de desinvestimento na atenção básica que já vinha em curso anteriormente, reforçando o viés neoliberal global (Cesarino, 2021b).
Para além dos danos causados pelas mortes, restam muitas urgências, como o aumento da pobreza e da desigualdade, cujo efeito mais emblemático foi o reingresso do Brasil no mapa da fome, com 33,1 milhões de brasileiros passando fome e 125,2 milhões, mais da metade da população, com algum grau de insegurança alimentar (Rede Penssan, 2022). Houve piora dos indicadores que já vinham se deteriorando desde 2016, como: redução da taxa de coberturas vacinais, com alto risco de reintrodução de doenças como a poliomielite; queda acentuada de consultas, cirurgias, procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados pelo SUS, na atenção básica, especializada e hospitalar, atrasando o início do tratamento de doenças crônicas; retorno de internações por desnutrição infantil provocadas pela fome; estagnação na trajetória de queda da mortalidade infantil; e aumento de mortes maternas (Gabinete de Transição Governamental, 2022, p. 11).
Diante do aumento da demanda assistencial, o cotidiano dos profissionais de saúde que atuam na atenção básica permanece sob efeito das múltiplas crises da Covid-19 e seus desdobramentos, em especial do desmonte (Freire; Castro, 2022) e da desinformação. O aumento da circulação da desinformação em saúde gerou uma maior tensão entre o conhecimento científico e o senso comum, dificultando o diálogo entre diferentes racionalidades médicas.4
Evidências científicas contra a desinformação
Durante a pandemia, a defesa das evidências científicas para orientar políticas públicas de saúde reuniu diferentes segmentos da sociedade brasileira diante de um governo negacionista (Cesarino, 2021a) que seguiu o caminho contrário ao recomendado pela Organização Mundial da Saúde, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da ONU, como garantir que as medidas para conter a disseminação do vírus assegurassem do direito humano à saúde e ao amparo social. O negacionismo teve a colaboração de diversos atores na difusão de desinformação, desde apoiadores do governo Bolsonaro a conselhos de medicina e profissionais de saúde. Esse fenômeno não é novo e tem se manifestado em diferentes situações como reações orquestradas por grupos que buscam deslegitimar fatos e consensos científicos com finalidades políticas (Böschemeier; Almeida, 2023). Alguns exemplos são a negação do holocausto, das mudanças climáticas e o terraplanismo (Almeida, 2023).
No contexto da pandemia no Brasil, S. Caponi (2020) ressalta que o negacionismo adotado pelo governo Bolsonaro já era evidente desde a campanha eleitoral.5 A difusão de desinformação durante o processo eleitoral de 2018 teve continuidade durante a pandemia de Covid-19 e tornou ainda mais evidente o fenômeno do populismo digital e a crise de confiança nos sistemas peritos, na qual as redes sociais possuem papel determinante (Cesarino, 2021a).
O governo brasileiro atuou ativamente na promoção da desinformação, tanto dificultando o acesso à informação oficial e a dados nacionais sobre o avanço da Covid-19 quanto na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes,6 como o chamado “tratamento precoce” (cujo principal medicamento era a hidroxicloroquina).
Quando o Ministério da Saúde deixou de apresentar dados diários sobre óbitos e contaminações para a divulgação na imprensa, em junho de 2020, três grandes empresas7 de comunicação organizaram um consórcio para consolidar dados a partir da consulta direta às secretarias estaduais de saúde e redes de colaboração científica nacionais e internacionais. Especialistas como epidemiologistas, biólogos, biomédicos e infectologistas, que representavam instituições públicas e privadas de pesquisa, universidade e sociedades médicas, entre outros, ganharam espaço diário nos jornais impressos e telejornais para explicar as medidas recomendadas pela comunidade científica para a prevenção e tratamento da Covid-19 (como o distanciamento social, uso de máscaras, testagem, rastreamento de contatos e vacinação em massa). Alguns se destacaram nas redes sociais, travando um combate direto com os que difundiam desinformação. As “boas evidências” foram acionadas pelos cientistas comunicadores para desconstruir informações falsas sobre o “tratamento precoce”, riscos da vacinação e medidas comportamentais (uso adequado de máscaras, distanciamento social e higiene, todas modalidades de autocuidado). Antes restrita a circuitos acadêmicos e científicos, a “medicina baseada em evidências” (MBE) ganhava espaço nos meios de comunicação e nas redes sociais.
A MBE é um movimento para mitigar as incertezas na tomada de decisões médicas, que se baseia na análise crítica e na aplicação das melhores evidências científicas disponíveis. Com o auxílio de “boas evidências” visando à efetividade (senão também a eficácia e a eficiência), espera-se que o médico possa escolher por terapias confiando em dados epidemiológicos, e não em sua própria experiência clínica (Pinheiro; Nogueira, 2021). Segundo essa abordagem, há uma hierarquia de evidências, uma evidência científica é considerada de alta qualidade e confiável se obtida por meio de estudos clínicos bem conduzidos, como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises. Ao longo de sua história, a MBE tem se transformado e seus limites discutidos pela comunidade científica (Pinheiro; Nogueira, 2021), pois não elimina riscos como conflito de interesses que podem influenciar pesquisas e práticas clínicas. Os Estudos Clínicos Randomizados (ECR), o padrão-ouro das evidências científicas, não apreendem adequadamente características singulares e clinicamente relevantes dos pacientes tomados individualmente; tais variáveis são diluídas estatisticamente nas médias, pois estas jamais se ajustam suficientemente às particularidades de uma situação individual (Pinheiro; Nogueira, 2021, p. 20).
Os autores ressaltam como a ideia da MBE tem transcendido o campo da saúde, e da tomada de decisões clínicas, e influenciado a elaboração de políticas públicas, sobretudo a partir da década de 1990, e defendem uma ampla e profunda discussão sobre a escolha dessa abordagem, seus riscos e limites.
Recorrer a evidências clínicas tem sido uma estratégia adotada por grupos de ativistas em defesa de práticas mais humanizadas em saúde. No campo das práticas integrativas e complementares, por exemplo, essa busca tem mobilizado pesquisadores e profissionais de saúde a mapear conteúdos relativos ao tema, o que inclui a fitoterapia e plantas medicinais.
Em 2021, o Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN), em parceria com a OPAS e a OMS, criou uma plataforma digital onde é possível consultar os “mapas de evidência para efetividade clínica” para plantas medicinais e outras práticas integrativas e complementares, como yoga, homeopatia, meditação, etc. Já o projeto Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS) do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz Pernambuco) criou o Boletim Evidências como parte de suas ações de comunicação.
Outro exemplo é a disputa entre médicos defensores de partos cirúrgicos e ativistas que defendem o parto humanizado, as evidências clínicas são acionadas por ambos os lados para embasar argumentos e críticas, conforme demonstra J. Ferreira (2023, p. 3), revelando “um jogo de saber e poder pautados em categorias científicas (as evidências) e políticas (as ideologias)”. Enquanto as ativistas acusam os médicos pela escolha por cesáreas não por indicação clínica, mas pela melhor remuneração ou comodidade do procedimento em horários e dias marcados, os médicos acusam as ativistas de basearem seus argumentos em ideologias políticas e defendem sua autonomia em decidir qual a via do parto de acordo com as evidências científicas (Ferreira, 2023).
Mas o que fazer quando não se encontram as evidências consideradas satisfatórias? No conflito parto cirúrgico versus parto humanizado, existe um consenso científico de que, no Brasil, ocorrem cesarianas em excesso (Victora et al., 2011). Quando se trata de plantas medicinais e de fitoterápicos, nem sempre existem estudos que garantam a construção de “boas evidências”, haja vista que para reunir os ECR é necessário viabilizar esses estudos, o que ocorre quando se trata de demonstrar a segurança, a eficácia e qualidade de medicamentos para fins de comercialização, normalmente custeados pelos próprios laboratórios farmacêuticos (Petryna, 2021).
A estratégia de reunir as evidências para uso de plantas medicinais e prática integrativa e complementar (PIC) é inevitável no novo contexto na qual se creditam a crenças e visões de mundo como as fontes de desinformação.8 Silenciar usuários sobre suas concepções sobre corpo, saúde e doença, caso não estejam enquadrados nos protocolos e normas biomédicos, é entrar em conflito com o princípio da integralidade em sua dimensão cidadã.
Marcos importantes de políticas públicas no uso das plantas medicinais e fitoterápicos no SUS
Embora a fitoterapia e o uso de plantas medicinais sejam oferecidos na saúde pública brasileira desde antes mesmo da criação Sistema Único de Saúde (SUS) e, atualmente, sejam reconhecidos como uma PIC, foi a partir de 2006, após a vigência das Políticas Nacionais de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) e de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) que os programas de fitoterapia em municípios brasileiros aumentaram significativamente. Em 2004, eram 116 municípios, 346 em 2008 e 815 em 2012 (Ribeiro, 2019). Enquanto desde meados da década de 1980 a 2008 predominavam programas fundamentados em hortos comunitários e farmácias públicas de manipulação, que possuem um caráter mais regional, político, pedagógico e plural, a partir de 2008 cresceu a industrialização e verticalização da fitoterapia, com base predominante na compra e dispensação de fitoterápicos industrializados. Esse não foi um efeito inesperado, já que a PNPMF tem como objetivo promover o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional (Brasil, 2006b). A dispensação de fitofármacos se resume a uma prescrição terapêutica e se contrapõe ao modelo considerado mais adequado, o da farmácia viva, que compreende o plantio de plantas medicinais e a preparação de medicamentos fitoterápicos manipulados, além de ações de promoção e educação em saúde. Essa modalidade é fomentada pelo Ministério da Saúde por meio de editais abertos aos municípios para implantação de farmácias vivas e de arranjos produtivos locais.
Em 2022, segundo o mapeamento realizado por P. Carlessi e I. Sousa, a oferta de fitoterapia foi identificada em 39% dos municípios pesquisados. Os serviços estão organizados em cinco categorias técnico-operacionais: a primeira é composta por serviços que realizam o plantio de plantas medicinais e a preparação de medicamentos fitoterápicos: 35% dos municípios. A segunda são serviços que se dedicam exclusivamente ao plantio de plantas medicinais: 25%. A terceira é o plantio com atividades de beneficiamento, como desidratação e fracionamento de plantas medicinais: 16% do total. A quarta se caracteriza pela dispensação de medicamentos fitoterápicos, industrializados ou manipulados em farmácias terceirizadas: 13%. A quinta é composta por serviços de manipulação de medicamentos fitoterápicos, sem envolver o plantio de plantas medicinais: 11% (Carlessi; Sousa, 2022).
Mesmo diante de tantas urgências para as políticas de saúde no cenário pós-pandemia, as PIC resistem, ainda que de forma tímida. No Plano Nacional de Saúde (2024-2027),9 a meta é ampliar em três vezes o registro da oferta de PIC na APS, na qual também se incluem as plantas medicinais e fitoterápicos, conforme a meta 1310 do objetivo número 1.11
Um retrato antes da pandemia: fitoterapia na Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro
É preciso contextualizar que, no município do Rio de Janeiro, a implantação da Estratégia Saúde da Família como modelo de atenção primária à saúde foi mais lenta do que no resto do país, ficou restrita a áreas de pobreza extrema, com alto índice de violência e vazios assistenciais (Campos; Brandão; Cohn, 2016). Em 2008, apenas 3,5% da população estava coberta pela ESF. Até então, o município organizava exclusivamente a APS em centros de saúde de formato tradicional (com médicos de especialidades básicas, sala de vacinação, curativos, um leque limitado de serviços). A partir do primeiro mandato do prefeito Eduardo Paes (2009-2012), acelerou-se a implantação das clínicas de família. Em 2014, a ESF alcançava cerca de 45% da população, chegando a 70% em 2016 (Costa et al., 2021).
A expansão da atenção primária carioca ocorreu por meio de um modelo de gestão realizado por Organizações Sociais de Saúde (OSS), modelo de gestão pública originado na reforma do Estado de 1995, que teve grande aceitação em governos estaduais e municipais, sobretudo na gestão de hospitais, por ser uma “solução” ao risco de descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita os gastos com servidores contratados por Regime Jurídico Único (Costa et al., 2021).
Entre 2017 e 2020, o prefeito Marcelo Crivella realizou uma profunda mudança vetando a terceirização sob a justificativa de déficit no orçamento. O resultado foi redução da força de trabalho, com diminuição de equipes ESF, Núcleo de Apoio a Saúde da Família e Saúde Bucal. A cobertura da estratégia caiu para 50,5% em dezembro de 2019 (Costa et al., 2021; Fernandes; Ortega, 2020). Em março de 2020, foi declarada a emergência sanitária da Covid-19. Em 2020 e 2021, o Programa de Plantas Medicinais e Fitoterápicos foi suspenso no município.
A crise da saúde do Rio de Janeiro já estava anunciada antes da chegada do coronavírus. Além das reviravoltas no modelo de gestão, o processo de desfinanciamento das políticas de saúde se agravou com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 (conhecida como “teto de gastos” (Brasil, 2016), que congelava por 20 anos a destinação de recursos públicos federais), e com a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2017, que modificou o financiamento federal para a saúde ao conceder maior autonomia ao gestor municipal para elencar os serviços ofertados, sem a obrigatoriedade de agente comunitário de saúde (ACS) nas equipes. A presença dos ACS na ESF passou a estar em risco (Fernandes; Ortega, 2020), o que compromete diretamente a continuidade de uma série de processos instituídos nos territórios, como o cadastramento de usuários, atividades de prevenção e promoção da saúde, e o acompanhamento por meio de visitas domiciliares (Mendonça et al., 2023). Com uma atenção primária à saúde mais restritiva, fica comprometida uma abordagem mais coletiva, e a prioridade do serviço acaba se voltando para a assistência individual, sobretudo de grupos vulneráveis, como gestantes, idosos e crianças de 0 a 5 anos, entregando o serviço de uma APS seletiva, desestabilizando o compromisso com diretrizes fundantes do SUS como universalidade e integralidade (Fernandes; Ortega, 2020). Em agosto de 2023, o “teto de gastos”, foi substituído pela Lei do Arcabouço Fiscal (Brasil, 2023), que instituiu um novo regime para o orçamento público federal menos prejudicial ao crescimento da economia e à oferta de serviços públicos.
Foi em um cenário de incertezas quanto à manutenção das políticas públicas em saúde, entre dezembro de 2016 e março de 2018, que a pesquisa Fitoterapia na Atenção Primária à Saúde e o Programa Mais Médicos (Rodrigues; Campos; Siqueira, 2020) foi realizada, com 98 médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde que responderam a um questionário fechado, tipo survey, e outros 47 profissionais dessas mesmas categorias que participaram de entrevistas individuais semiestruturadas.12
A partir da análise temática das respostas, destacaram-se alguns desafios: formação insuficiente, medo e insegurança na prescrição e quanto ao respaldo por protocolos profissionais. Para os 83,3% dos enfermeiros e 85,7% dos médicos brasileiros houve contato insuficiente com essa terapêutica na graduação. Já a familiaridade com os materiais normativos e educativos produzidos pelos Ministério da Saúde variou conforme a categoria profissional. Entre todos os entrevistados, a PNPMF só é conhecida por 27,8% (Gráfico 1), enquanto os Cadernos de Atenção Básica sobre PIC, material elaborado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2012), é conhecido por 38,1% (Gráfico 2). Ainda pouco conhecidos, a política e os materiais educativos são fonte de informação que podem embasar orientações e prescrições pelos profissionais de saúde, além de contrapor desinformação. Ainda assim, as plantas medicinais e fitoterápicos estão presentes no cotidiano da atenção básica, seja no uso pelos pacientes, seja pelos próprios profissionais de saúde (Gráfico 3).
Conhecimento sobre a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Rodrigues; Campos; Siqueira, 2020, p. 35).
Conhecimento sobre material educativo produzido pelo Ministério da Saúde (Rodrigues; Campos; Siqueira, 2020, p. 35).
Uso pessoal de fitoterápicos e plantas medicinais (Rodrigues; Campos; Siqueira, 2020, p. 36).
As entrevistas semiestruturadas revelaram que, além da formação, outros aspectos podem comprometer a prescrição, como a disponibilidade na rede de assistência farmacêutica e a insegurança em relação à legitimidade da prescrição pelos enfermeiros. Diante da deficiência da formação profissional na graduação, já relatada em estudos anteriores (Feitosa et al., 2016; Nascimento et al., 2018), destacou-se o papel da educação permanente até mesmo entre os médicos que afirmaram ter aprendido sobre fitoterapia na graduação.
Os enfermeiros apresentaram respostas divergentes quanto ao respaldo no protocolo da enfermagem. O medo de prescrever e insegurança sobre a orientação foram recorrentes. A prescrição ocorre de forma reativa, realizando orientações sobre o “uso correto” quando questionados por usuários.
Eu não sei nada, nunca li nada sobre e nem sei se a minha profissão de enfermeiro, o que baseia e me respalda legalmente é o protocolo de enfermagem, não tem nada sobre fitoterapia, então não vou iniciar uma prática exclusiva da medicina, porque aí seria exercício ilegal da profissão. Não está no meu protocolo, fica até meio quadrado isso, meu conselho não é forte. […]. Se eu fizer algum ferimento em um curativo, que eu faça errado, sou processado, perco o conselho, meu conselho não está do meu lado, entendeu? Então não posso fugir do meu quadrado, tenho que ficar aqui e seguir o que está o meu protocolo (Enfermeiro 7).
Sim, no protocolo de enfermagem na atenção básica tem algumas opções de fitoterápicos… A gente tem isso respaldado no protocolo (Enfermeiro 13).
Ainda que exista insegurança em relação à prescrição, o tema do uso de plantas medicinais se impõe na prática cotidiana dos enfermeiros:
Eu, como enfermeira, não. A gente dificilmente indica um fitoterápico. Mas a população traz muito para a gente coisas que eles ouvem falar, cultura popular, que eles trazem para a gente te e perguntam se seria indicado o uso. Eu nunca rejeito, porque não vejo problema algum, mas eu não indico. Mas, quando me trazem, sempre procuro pesquisar, ver do que se trata. Se eu achar que não tem nenhum problema, a gente libera o uso, mas não por prescrição nossa, mas sim por uma cultura popular que eles trazem para a gente (Enfermeira 3).
A gente utiliza o que a gente tem até aqui disponível na farmácia, que é o xarope de guaco, que é bem usado para a tosse. […]. Tem umas orientações corretas, o uso responsável, porque algumas plantas podem ser tóxicas, então a gente orienta as pessoas. Por exemplo, eu tenho um grupo de gestantes no WhatsApp, elas perguntaram: “Posso tomar chá de num sei quê?” Fui buscar a informação, infelizmente, não pude deixar. […] Mas fora da gestação, a gente deixa a critério do paciente (Enfermeira 1).
Já os agentes comunitários de saúde foram a categoria profissional que mais mencionou o uso de plantas medicinais pela população, por meio do preparo de chás, pois questionar o uso faz parte do roteiro de perguntas das visitas domiciliares. Embora não façam nenhum tipo de prescrição, os ACS são responsáveis pelo acompanhamento dos usuários, entre outras atribuições. A formação em PIC oferecida pelos programas de formação da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro possibilitou um papel mais ativo do ACS no cuidado direto com o paciente, por meio da realização de grupos e das hortas medicinais comunitárias cultivadas em algumas clínicas.
Quando eu estou aqui como PIC, […] eu ensino isso, mas em visita domiciliar não, porque tudo que eu falar depois vai ser perguntado para o profissional da equipe técnica, e aí o profissional da equipe técnica pode não concordar, porque o raciocínio da medicina chinesa é totalmente diferente da medicina ocidental. Aí, isso é um conflito muito grande. Se o profissional que tiver na retaguarda não aderir, ficam duas informações (Agente Comunitário de Saúde 7).
As oportunidades de formação no serviço lhes garantiam legitimidade para falar sobre outras abordagens terapêuticas e também possibilitaram a identificação, com maior clareza, dos conflitos entre as diferentes racionalidades médicas e categorias de profissionais de saúde que muitas vezes acompanham a aplicação das PIC.
Tanto ACS quanto enfermeiros relataram uma relação desigual entre as diferentes categorias profissionais das equipes. Por um lado, os médicos estão pouco ou mal preparados para utilizar plantas medicinais e fitoterápicos. Os enfermeiros relatam medo e desconhecimento das possibilidades de prescrição e tendem a “não fugir do seu quadrado”. Entre a experiência e a insegurança, os ACS ficam restritos às atribuições da função de mediação com os usuários. Nesse contexto, a formação no serviço ganha papel fundamental para possibilitar o uso da fitoterapia para criar espaços e oportunidades para a troca de saberes entre diferentes profissionais e a população.
As plantas medicinais e fitoterápicos estão presentes no cotidiano da APS, são demandadas pelos usuários, seja pela experiência individual de uso no autocuidado, seja como alternativa a terapias medicamentosas que oferecem demasiado risco.13
O modelo biomédico dominante está baseado em três pressupostos fundamentais: a doença como uma ruptura do funcionamento do corpo humano, fruto da causalidade de um agente; o corpo doente não constitui o indivíduo em sua totalidade, pode ser tratado separadamente; os especialistas médicos são os únicos com legitimidade para tratar doenças (Giddens, 2008). Esse modelo se impôs ao longo dos últimos dois séculos, respaldado pelas transformações sociais modernas. Caracteriza-se por seu biologismo, pragmatismo e individualismo, entre outros traços, e por cumprir não apenas funções curativas e preventivas, mas também funções de normatização, controle e legitimação (Menéndez, 2020). As críticas a ele ressaltam o exagero na eficácia da medicina cientifica. O aumento da expectativa de vida, do acesso à prevenção e ao tratamento de doenças infectocontagiosas, a diminuição de mortes infantis e de mulheres em decorrência do parto são atribuídos exclusivamente ao modelo biomédico, sem levar em conta que as mudanças sociais e ambientais (como universalização do saneamento, da educação e da alimentação) teriam tido mais efeito na melhora global da saúde do que o acesso a fármacos, como antibióticos e vacinas. Apesar da permanente crise e das críticas de que constrói sujeitos dependentes de fármacos, inventa novas doenças e contribui para a destruição do planeta Terra, o modelo biomédico continua expandindo-se devido, principalmente, à sua eficácia comparativa, ao seu pragmatismo, ao aumento da demanda, ao seu papel cada vez maior na reprodução do capital e ao seu papel como legitimador das forças sociais dominantes (Menéndez, 2020). Em relação a outras formas de atenção à saúde, biomédicas ou não, consegue exercer um papel de controle e normatização, incorporando-as, regulando-as, subalternizando-as, a exemplo do que aconteceu com a acupuntura (Menéndez, 2020).
É interessante notar que a crítica ao modelo biomédico e sua incapacidade em promover a saúde dos sujeitos de forma integral, a chamada “crise da saúde e da medicina” (Luz, 2005), tenha ganhado maior visibilidade a partir da década de 1970 em nível global, sobretudo a partir da Declaração de Alma-Ata, em 1978 (Giovanella et al., 2019). Esse documento é um marco para que sistemas públicos de saúde se organizem a partir de modelos de atenção primária à saúde e que levem em consideração a diversidade de práticas tradicionais.14 Foi a partir desse evento que a noção de “medicina tradicional” foi propriamente estabelecida e instituída na OMS. Nos anos seguintes, foram oficializadas as chamadas Medicinas Alternativas e Complementares (MACS), hoje denominadas Medicinas Tradicionais Integrativas Complementares (MTCI). No Brasil, a implementação da PNPIC renomeou as modalidades terapêuticas antes denominadas “tradicionais, “alternativas” ou “complementares” (Brasil, 2006a). A mudança facilitou o processo de legitimação, evitando disputa com o domínio dos médicos, e a situando como complementar à biomedicina, em uma relação hierárquica (Toniol, 2016).
O autocuidado é outro tema ambivalente na perspectiva do modelo biomédico. Segundo o conceito ampliado de saúde (bem-estar físico, mental e social), é a capacidade do indivíduo e comunidades em promover a saúde e prevenir doenças e manter a saúde com ou sem o apoio de um profissional. Essa abordagem enfatiza demasiadamente a responsabilidade do indivíduo nos processos de saúde-doença, isolando fatores culturais e sociais,15 e estigmatiza as medicinas tradicionais (Menéndez, 2021). O modelo de autoatenção seria uma contraposição mais inclusiva, pois é pensado em termos coletivos e relacionais e não só individuais, baseado nos saberes e práticas de diferentes microgrupos onde os sujeitos desenvolvem suas vidas, remetendo não só aos grupos familiares, mas também aos diferentes grupos em que se vive. É com esses saberes que os sujeitos e microgrupos não só enfrentam as doenças, sofrimentos e incapacidades, como se relacionam de forma direta e/ou indireta com os saberes dos curadores tradicionais, alternativos e biomédicos existentes em seus contextos, realimentando continuamente formas de autoatenção (Menéndez, 2021). Todas as atividades de cuidado de si e do coletivo, do medicamento alopático ao chazinho, fazem parte de uma mesma estrutura de autoatenção para os sujeitos e microgrupos.
O caminho da cultura na busca por legitimação dos saberes populares em saúde: o caso da Rede Fitovida
Os remédios caseiros com plantas medicinais são parte da cultura alimentar e de cuidados com a saúde de grande parte da população brasileira. Em comunidades tradicionais, como remanescentes de quilombolas, populações indígenas e ribeirinhos, constituem sistemas de cura integrados a sistemas alimentares e a laços de reciprocidade. Para além dos territórios de populações tradicionais, há diversas experiências de movimentos populares atuando pelo reconhecimento desses saberes por meio de políticas públicas culturais, ambientais e de desenvolvimento social. Alguns exemplos são a Articulação Pacari - Plantas Medicinais do Cerrado, formada por 45 organizações dos estados de Minas Gerais, Tocantins, Maranhão e Goiás, e que reivindica o reconhecimento do ofício de raizeiro do Cerrado como patrimônio imaterial; e o Centro Nordestino de Medicina Popular, coordenado pelo médico Celerino Carriconde, e que, desde 2001, desenvolve trabalhos de apoio e disseminação de práticas curativas com plantas medicinais, defendendo que grupos populares organizados em cooperativa forneçam fitoterápicos para o SUS. Outros exemplos são o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e sindicatos de trabalhadores rurais articulados em prol de uma agricultura sustentável, tais como os do Polo Sindical da Borborema, na Paraíba e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais.
No Rio de Janeiro, a Associação de Amigos da Rede Fitovida16 é uma organização da sociedade civil, formada por dezenas de grupos em diversas regiões do estado, que reivindica o reconhecimento dos saberes sobre plantas medicinais como um patrimônio cultural imaterial com base no Decreto 3.551/2000 (Brasil, 2000).17 A busca da Rede Fitovida para obter o registro de suas práticas teve início em 2004 e segue inconclusa (Simão; Rodrigues, 2019).
Localmente, os grupos atuam organizados em torno de pessoas com notáveis saberes sobre cuidados com a saúde com plantas medicinais, mas sempre em conexão com outras ações de assistência social, seja movida pela Igreja Católica (como Pastoral da Criança e da Saúde), seja por meio de organizações não governamentais. Em sua maioria, formados por mulheres idosas, aposentadas ou pensionistas, com baixa escolaridade, são grupos heterogêneos, organizados em momentos, locais e contextos diferenciados, que foram buscar na manipulação e uso das plantas medicinais uma forma de promover a melhoria na qualidade de vida da população de baixa renda circunvizinha. A partir de 2000, esses grupos iniciaram um processo de formação em rede promovendo encontros e discutindo estratégias de legitimação.
Em 2004, seus representantes procuraram apoio junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para compreender de que maneira a legislação sobre patrimônio cultural imaterial poderia respaldar suas atividades. Após algumas reuniões, iniciaram um processo de autoinventariamento fazendo uso da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).18 Na época, o IPHAN estava em processo de implementação da política, tendo apenas quatro bens registrados até então: o ofício das paneleiras de Goiabeiras no Espírito Santo (2002) e a arte kusiwa - pintura corporal e arte gráfica dos Wajãpi do Amapá (2002); o samba de roda do Recôncavo Baiano (BA) (2004) e o Círio de Nossa Senhora de Nazaré no Pará (2004) (Simão; Rodrigues, 2019). A obtenção de um Registro como bem cultural imaterial tem como consequência a responsabilização do Estado e da comunidade em garantirem a continuidade, conforme definida pelas diretrizes da política, também está prevista a revisão desse registro a cada dez anos. Para as representantes da Rede, seria uma “saída” para a formalização de suas práticas sem ter que seguir os critérios adotados pelo Ministério da Saúde, que exigiam uma adequação de processos produtivos, o que não seria possível segundo as características dos grupos.
Oficina de “pomada milagrosa”, Rede Fitovida: coleta (no alto, à esquerda) e cozimento da pomada (no alto, à direita) e seleção de plantas (acima), Japeri, Rio de Janeiro, 2013.
O processo de inventário da Rede Fitovida foi o primeiro em que um grupo popular propunha uma inventariação de suas próprias atividades. A primeira etapa foi concluída em 2007, apresentou os levantamentos preliminares e produtos como uma cartilha, um CD-Rom, folhetos e banners com detalhes do projeto: a identificação dos bens culturais, a identificação das guardiãs dos saberes tradicionais e algumas das receitas consagradas. A resposta do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan à solicitação só ocorreu em 2011: embora o material entregue tivesse grande riqueza de detalhes sobre o processo de organização dos detentores de saberes, havia informações e descrições insuficientes sobre os elementos históricos, sociais e geográficos. Portanto, era necessário aprimorar a metodologia e aprofundar a pesquisa, a fim de caracterizar melhor o universo dos sujeitos sociais (Simão; Rodrigues, 2019). Somente em 2013, a Rede Fitovida decidiu retomar o inventário, concluído em 2018.
Ainda que não tenha obtido êxito no pedido de registro, a experiência modificou as atividades da Rede Fitovida, pois, além de continuar a se dedicar à transmissão dos saberes sobre plantas medicinais por meio da ação assistencial dos grupos (como mutirões de combate à desnutrição, feiras de saúde e doação de remédios caseiros), também começou a refletir sobre a identidade coletiva, com seus integrantes passando a se autodenominar “agentes do conhecimento tradicional”.19 A elaboração de materiais de comunicação (como os folhetos, cartazes, cartilha, livro e documentários), resultado do acesso a editais públicos ao longo dos anos, modificou a forma original de transmissão dos saberes. Nessa trajetória, a Rede tornou-se uma associação sem fins lucrativos, com CNPJ, sede própria, diretoria e conselho fiscal a fim de acessar diretamente políticas públicas por meio de editais de patrocínio cultural, como Lei Rouanet e Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Entre 2011 e 2016, conquistou prêmios e a participação em editais. Em 2016, iniciou a realização do “Protocolo Comunitário Biocultural dos Agentes do Conhecimento Tradicional da Rede Fitovida”, publicado em 2017.20
Encontro Estadual da Rede Fitovida, Cachoeira de Macacu, RJ, 2016: discussão para criação do protocolo comunitário biocultural.
O caso da Rede Fitovida nos convida a refletir sobre a relação de grupos populares com o Estado.21 Se os editais e prêmios viabilizaram a realização de eventos e projetos, não chegaram a garantir todos os recursos necessários para o custeio do espaço próprio, da secretaria e das atividades rotineiras da associação. Foram as alianças firmadas pela Rede Fitovida, seja na vizinhança dos grupos, seja em outros espaços de interação, como os órgãos públicos, movimentos sociais e universidade, que viabilizam suas atividades.
Preservar e transmitir os saberes sobre cuidados com a saúde com plantas medicinais, costuma mobilizar a simpatia de colaboradores, mas não é suficiente para uma ampla salvaguarda de saberes, para além da experiência da Rede Fitovida. A perspectiva de ter saberes reconhecidos seja em políticas de saúde, como a PNPMF, ou como patrimônio cultural imaterial, ainda carrega um viés autoritário e etnocêntrico em relação às culturas populares, como se estas estivessem sujeitas a um inexorável processo de perda (Gonçalves, 2007), e somente a intervenção (do Estado, das ONGs ou da universidade) fosse capaz de salvá-las.
É curioso, mas compreensível, que a busca por reconhecimento por meio de políticas de saúde não tenha avançado nas discussões da Rede Fitovida. Muitos integrantes dos grupos são agentes comunitários de saúde, não só conhecem como atuam na ESF. São a categoria profissional que mais conhece o uso de plantas medicinais, mas estão silenciados na equipe. A PNPMF e a PNPIC foram elaboradas para definir de que maneira essas práticas de cuidado devem ser utilizadas na atenção primária à saúde. A PNPMF respalda atividades como as da Rede Fitovida, reconhece o papel do conhecimento tradicional e até mesmo de seus mecanismos de salvaguarda como o INRC, mas, ao mesmo tempo, ressalta em seus objetivos garantir “acesso seguro” e “uso racional” (Brasil, 2006b), isto é, o uso pela tradição não é suficiente para comprovar os efeitos terapêuticos das plantas medicinais e há a necessidade de validação com evidências científicas.
Embora a Rede Fitovida não tenha apostado nas políticas de saúde, observá-las em nível local provoca a imaginação de como seria se grupos como esse estivessem presentes na ESF. A contribuição que poderiam dar seria alargar os limites do uso dessas plantas para além das prescrições (e das evidências científicas reunidas) e introduzir nos espaços de interação e diálogo as experiências dos sujeitos em múltiplas dimensões de sua existência, que costumam ser categorizadas nas políticas de saúde como biopsicossociais (Bonet, 2014). As plantas não se resumem aos elementos da natureza, matéria-prima para o preparo de remédios caseiros, são fundamentais para estabelecer relações, ativar memória e equalizar relações desiguais entre usuários e profissionais de saúde.
A perspectiva de um pensamento relacional, como propõe T. Ingold, pode contribuir para superar a oposição entre conhecimento tradicional e ciência que costuma constar nas políticas públicas e reconciliar as ciências humanas e naturais, rumo a uma ecologia da vida. Pois a vida humana é conduzida simultaneamente em dois campos: o social, campo das relações interpessoais, e o ecológico, campo das relações entre os organismos (Ingold, 2000, p. 172).22 Carlessi e Sousa (2022, p. 52) identificaram em sua cartografia que os gestores e trabalhadores do SUS reconhecem um conjunto diversificado de grupos, indicando que o entendimento do conceito de “tradição” tem sido feito de modo contextual aos territórios em que atuam, criando referência direta a grupos autorreferidos. Essa compreensão mais ampla do que é tradição é importante, uma vez que o termo “conhecimento tradicional” assume diferentes significados nos campos da antropologia, meio ambiente e na sociedade. Ingold e Kurttila (2000) destacam a divergência entre os parâmetros local e moderno, sendo este último preferido por cientistas, burocratas e advogados. Duas perspectivas são delineadas: o Conhecimento Tradicional Moderno (MTK), influenciado pelo discurso da modernidade, e o Conhecimento Tradicional Local (LTK), surgido das práticas locais. O discurso moderno sugere que o conhecimento das pessoas é organizado por conceitos compartilhados e transmitidos pela educação, em um modelo genealógico, com o saber nativo sendo definido em oposição à ciência. Os autores argumentam que o sentido de tradição para as pessoas locais (LTK) não é recebido como parte de um modelo cultural, mas é moldado pelos contextos interativos nos quais as pessoas se tornam conscientes de sua própria sabedoria. Enquanto que, para a perspectiva moderna, a continuidade do conhecimento tradicional é assegurada pela adequação de mecanismos institucionais, como museus e pesquisa folclórica, para as pessoas locais, esse conhecimento está intrinsecamente ligado às práticas contemporâneas de viver na terra.
A pandemia de Covid-19 teve um grande impacto nas atividades da Rede Fitovida. Além da diminuição do financiamento público, a necessidade de distanciamento social suspendeu atividades dos grupos e os encontros periódicos, e muitos de seus integrantes foram vítimas fatais da Covid-19. A experiência dessa associação mostra a descontinuidade de políticas públicas de preservação cultural, seus limites, e como se mostraram ainda mais instáveis quando comparadas às políticas de saúde. Em 2016, o Ministério da Cultura foi extinto e recriado e, novamente extinto, em 2019, para ser recriado somente em 2023.
Considerações finais sobre algumas pedras e sementes nos jardins de plantas medicinais
A pandemia de Covid-19 explicitou a fragilidade e a volatilidade das políticas públicas, acelerando o processo de desmonte, aproximando a oferta de serviços de saúde do modelo neoliberal, com investimentos mínimos. Ao histórico subfinanciamento do SUS, somou-se o processo de desfinanciamento.
Diante de novas urgências, são priorizadas as tecnologias duras, também aquelas que reúnem as “boas evidências”. Recompor serviços de saúde depende não somente da retomada de investimentos públicos, mas também da retomada de espaços de participação social. As plantas medicinais e fitoterápicos podem possibilitar terapias medicamentosas eficazes e têm grande potencial de promover encontros, de ocupar espaços. Os materiais educativos, de formação e informação, elaborados por governos federal, estaduais e municipais são recursos que já estão disponíveis tanto para profissionais de saúde quanto para usuários, mas precisam circular, ganhar visibilidade, entrar na rotina.
Com menos plantas frescas, menos hortas, menos produção local de fitoterápicos, menos rodas de conversa, há menos humanização no cuidado e a autonomia do usuário é menor. O usuário também não pode tomar decisões, não pode escolher um fitoterápico com base nas indicações terapêuticas, mecanismos de ação, interações medicamentosas e possíveis riscos, pois os profissionais de saúde não estão preparados para orientá-lo.
Promover o cuidado com plantas medicinais e fitoterápicos pode ampliar a presença dos profissionais de saúde nos territórios e contribuir para uma abordagem mais integral e coletiva, em que o outro não se resuma a um sujeito doente, objeto de intervenções. Na linha de frente do cuidado, os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros e ACS, podem realizar um trabalho vivo a partir de um inescapável encontro com o outro, recuperando a dimensão cuidadora sem deslegitimar todos os outros saberes sobre saúde.
Plantas medicinais e fitoterápicos, embora não tenham sido objeto de desinformação em larga escala durante a pandemia de Covid-19 no Brasil, são um tema propenso a promover choques de racionalidades médicas. Nesse sentido, é preciso ampliar os processos e formação no serviço, para apresentar o que são e para que servem as “boas evidências”, mas também para produzir um cuidado mais horizontal, aberto à escuta, não só entre o profissional de saúde e o paciente, mas entre os próprios profissionais de saúde. Se essas terapias estão presentes o cotidiano da ESF, seja como possibilidade de prescrição, seja como autocuidado dos usuários, é necessário que sejam reconhecidas.
As novas modalidades de circulação de (des)informação surgiram como mais um desafio. Será necessário recuperar a credibilidade junto à população das informações oficiais produzidas pelo Ministério da Saúde, estabelecendo uma comunicação mais transparente que possa ser replicada em níveis estaduais e municipais. Nesse sentido, a experiência da Rede Fitovida na produção de conteúdos e materiais de comunicação pode ser inspiradora. E, para tanto, será preciso desenhar políticas que envolvam tecnologias de informação e comunicação que levem em conta a diversidade de infraestrutura dos municípios voltadas para a educação permanente dos profissionais da Estratégia Saúde da Família. Facilitar o acesso aos conteúdos produzidos tanto pelo Ministério da Saúde quanto por estados e municípios sobre plantas medicinais e fitoterápicos, jardins terapêuticos e farmácias vivas, é fundamental para fortalecer a pluralidade de saberes que envolvem esses cuidados e estabelecer uma nova dinâmica de circulação de informação.
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1
Esse princípio fundador do SUS possui muitos significados; aqui adotarei a abordagem de M. Luz, que resguarda uma dimensão ética e política de um sistema de saúde universal que promova o desenvolvimento e a inclusão social e afirme a saúde como um bem público, reconhecendo saberes e práticas da sociedade em sua diversidade política, cultural e epistemológica (Luz; Tesser, 2008).
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Uma característica dessas pesquisas foi o amplo uso de imagens, fotografias e vídeos, não só como forma de registro de atividades de campo, mas para a melhor compreensão dos fatos sociais e, não menos importante, dar concretude à devolutiva para os participantes das pesquisas. A relação de pesquisa de longo prazo resultou em uma colaboração na produção de um acervo com centenas de imagens e seis documentários curtos que foram utilizados para compor os relatórios de atividades dos projetos realizados pelos grupos.
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3
Ao assumirem a missão de resgatar esses saberes, tanto os grupos da Rede Fitovida quanto os de trabalhadoras rurais buscavam um lugar público de reconhecimento, seja alçando seus conhecimentos à categoria de patrimônio cultural imaterial ou implementando e transmitindo práticas de cuidados com a saúde para melhorar as condições de vida da população e a segurança alimentar na agricultura familiar. Ao transmitirem seus conhecimentos, os grupos de mulheres atualizavam suas práticas; o que antes era compreendido como ato de solidariedade, ao indicarem uma planta medicinal ou prepararem um remédio para um vizinho ou parente, tornava-se ação de reivindicação de direitos, modificando a forma como atuavam tanto individualmente quanto coletivamente. Ao perceberem o risco da perda de seus saberes sobre plantas medicinais, esses grupos criaram novas estratégias de transmissão, nas quais a relação com os mais jovens passou a ser objeto de reflexão. A perspectiva teórica adotada nessa investigação orientou a construção de categorias a partir de elementos definidos pelos próprios agentes sociais, buscando uma “descrição densa” (Geertz, 1989) como uma tradução possível sobre os fenômenos observados.
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A fitoterapia, em si, não se constitui como uma racionalidade médica. Uma racionalidade médica engloba práticas e conhecimentos interligados: anatomia, fisiologia, diagnóstico, terapia e explicação da doença, fundamentados em uma cosmologia. Isso diferencia sistemas médicos complexos (biomedicina, medicina chinesa) de métodos isolados (florais de Bach, iridologia), comuns na cultura alternativa pós-anos 1960 e nova era (Luz; Tesser, 2008, p 196).
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“[…] com seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa científica, pelos direitos das populações vulneráveis, pelas comunidades indígenas, LGBT, populações de rua, mulheres em situação de violência etc.” (Caponi, 2020, p. 210).
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Sobre essa “solução”, L. Cesarino (2021b, p. 14) destacou “na ausência de uma política pública de cuidado, resta a lógica do livre mercado e suas formas de acolhimento, encapsuladas no ‘kit covid’ enquanto ‘política rápida’ (fast policy) neoliberal que alcança ampla circulação”.
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A fim de garantir transparência sobre o impacto do coronavírus e sua vacinação, o consórcio de imprensa formado pelos jornais do grupo O Globo, Folha e Estadão apurou dados diretamente com secretarias estaduais de saúde de junho de 2020 a janeiro de 2023.
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Por exemplo, na cartilha Desinformação sobre saúde: vamos enfrentar esse problema? (Sacramento et al., 2024), entre as estratégias sugeridas para os profissionais de saúde destaca-se apresentar evidências, dados de pesquisa e, se necessário, consultar especialistas.
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Elaborado a partir das contribuições da 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2023.
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Ampliar o registro da oferta de procedimentos de PIC na Atenção Primária à Saúde de 11 (dez/2022) para 28, a cada mil habitantes cadastrados na APS (Brasil, 2024, p. 265).
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O Objetivo 1, do PNS 2024-2027 é:” Fortalecer a atenção primária, ampliando a cobertura da Estratégia Saúde da Família e da Saúde Bucal, com vistas à universalização do acesso, à abrangência do cuidado integral, à promoção da saúde, à prevenção de doenças e agravos e à redução de desigualdades de raça/etnia, de gênero, regionais e sociais” (Brasil, 2024, p. 264).
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Foram entrevistados profissionais que trabalhavam em Clínicas da Família da Área de Planejamento 3.1 do Município do Rio de Janeiro, uma região densamente povoada, com bairros suburbanos de camadas médias e de baixa renda, com grande demanda assistencial. Engloba os bairros de Ramos, Penha, Vigário Geral, Ilha do Governador, Complexo do Alemão e Complexo da Maré.
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Médicos e enfermeiros entrevistados também relataram a orientação do uso de plantas medicinais para evitar a medicalização excessiva para controle da dor e melhora do sono, evitando o uso continuado de analgésicos e de benzodiazepínicos, por exemplo.
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R. Toniol (2022, p. 48) recupera o histórico da legitimação das medicinas tradicionais nas conferências promovidas pela OMS ressaltando o entendimento de que se tratava de “medicina dos outros”, englobando uma dimensão espiritual, integrando “corpo, mente e espírito”, vinculadas com sistemas culturais, não ocidentais e distantes da linguagem biomédica.
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Em uma perspectiva exclusivamente biomédica, alguns exemplos de autocuidado são desejáveis, como a autoaplicação de insulina por pacientes diabéticos e o autoexame das mamas para prevenção de câncer; outros são indesejáveis, como a automedicação e o uso autônomo de antibióticos.
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A origem da Rede Fitovida se remete a grupos comunitários de saúde, que começaram a se formar na década de 1980, como iniciativa da Igreja Católica, a partir da Campanha da Fraternidade promovida pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, em 1981, cujo tema era “Saúde para todos”.
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O Decreto 3551/2000, de 4 de agosto de 2000, que institui a figura jurídica do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, dessa natureza, é considerada uma legislação sobre o patrimônio cultural e está em consonância com as diretrizes da Unesco e de outras organizações internacionais de preservação.
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O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é a metodologia adotada pelo Iphan para a produção e sistematização do conhecimento sobre os bens culturais. O antropólogo Antônio Augusto Arantes foi o responsável pela elaboração do manual de aplicação do INRC, que é composto por extensos questionários e fichas de identificação, fichas de campo, de sítio e localidade e anexos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000).
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Tornar-se “agente do conhecimento tradicional” foi uma tentativa de estabelecer uma nova forma de se relacionar com o Estado; o que era “do tempo dos mais velhos” foi reelaborado como um patrimônio e pode se tornar uma propriedade, ou seja, um bem de valor simbólico e econômico.
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Seguindo o exemplo da Articulação Pacari, que elaborou um documento semelhante junto ao Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Patrimônio Genético a fim de proteger os saberes tradicionais do Cerrado e também reivindicava o registro como bem imaterial.
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O rico debate sobre como a interação como as políticas públicas de saúde, cultura e meio ambiente podem se concretizar em mecanismos de proteção do conhecimento tradicional e garantia de direitos aos seus detentores (Bensusan, 2021; Carlessi; Sousa, 2022; Cunha, 2009) não poderá ser aprofundado aqui.
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A proposta de T. Ingold para superar a razão dualista cartesiana, que separa a existência humana em dois níveis, o natural e o social, se organiza a partir de três fontes de conhecimento: a biologia do desenvolvimento, que se contrapõe à corrente neoevolucionista; a psicologia ecológica, perspectiva que compreende a percepção e a ação de forma distinta da hegemônica na psicologia; e a fenomenologia, partindo da noção do agente em seu ambiente, o conceito de ser no mundo. Essas três perspectivas somadas permitem reverter a ordem “normal” de prioridade da forma sobre o processo. A vida não é revelação da forma preexistente, mas o próprio processo no qual a forma é gerada e ocupa lugar no espaço.